A dança, para ele, parece ter sido sempre destino – e, como tudo que tem a força do inevitável, revelada de maneira inesperada, prosaica. Aos nove anos de idade, Dielson Pessoa comemorava a permissão da mãe em deixá-lo sair para se divertir com os amigos, longe da tutela da família e no calor do asfalto do Recife. Naquele verão de 1994, ele era mais um entusiasmado menino entre os adolescentes que se punham a imitar as coreografias dos trios elétricos do Recifolia, extinto carnaval fora de época à beira-mar da Praia de Boa Viagem. Os movimentos intensos e incomuns do garoto chamaram a atenção de um dos trios. De fã, ele virava uma repentina atração da folia: Dielson foi convidado, de súbito, para dançar ao lado dos bailarinos, em cima do Pisa na Fulô. Começava ali, de maneira improvável, a nascer um dos principais nomes da dança contemporânea brasileira.
“Dielson é uma força da natureza”, diz Deborah Colker, a carioca que, ao levar a energia do esporte, a imagética do videoclipe e dos grandes cenários e a música pop para a dança, reinventou a relação entre espaço e movimento no Brasil. Alguns anos depois daquele Recifolia, Dielson se tornaria um dos protagonistas da companhia que leva o nome da única brasileira a receber (em 2001) o prêmio britânico Laurence Olivier, considerado uma espécie de Oscar da dança mundial.
Criado pela mãe – enfermeira e, desde sempre, sua grande incentivadora –, Dilma Maria Pessoa de Melo, Dielson foi uma criança extremamente hiperativa. Não se concentrava numa única atividade, a cabeça parecia estar em todos os lugares. “Eu tomava calmantes, e a psicóloga da escola me mandava fazer atividades esportivas”, recorda. Para liberar energia, lembra também, dançava muito nas festinhas. Até não mais poder. “Eu dançava nas quadrilhas, fazia imitações de Sandy & Junior, dançava em qualquer lugar que tivesse uma música tocando”, ri.
Naquele carnaval fora de época, Andrea Carvalho brincava no trio. Impressionada com o vigor do garoto, convidou Dielson para ter aulas na sua escola. Seria bolsista. Começou como par, na dança de salão, da filha da dona da Gafieira Etc. e Tal, a hoje atriz de novelas Raiana Carvalho. A escola de danças traria encontros definitivos para Dielson, e algum sossego para dona Dilma: o filho parecia encontrar com alegria uma forma de extravasar sua energia excessiva.
Dielson no início de tudo... Foto: Acervo pessoal
Empresário do ramo e idealizador do Festival de Dança do Recife, Luiz Tamashiro o viu na escola. Aconselhou o menino a fazer aulas de vários estilos, não apenas salão. Previu que o Recife se tornaria pequeno para ele. “Shiro foi meu grande incentivador, me patrocinava com roupas e sapatilhas numa época em que eu não sabia de nada, não tinha nada, ia dançar de tênis tipo Conga.”. No começo dos anos 2000, vítima da violência na cidade, Shiro seria assassinado perto da sua loja, no bairro do Pina. Seu incentivo, contudo, traria consequências longevas a Dielson e à cena recifense de dança.
Como se soubesse que o Recife ficaria, de fato, pequeno para aquele jovem bailarino, Shiro e a amiga Mônica Lira conseguiram um estágio de dois meses para Dielson na referenciada companhia de balé clássico Cisne Negro, em São Paulo. Logo em seguida, veio um novo estágio, com o Balé Jovem do Rio de Janeiro, num programa de capacitação de novos talentos mantido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. O menino ficou dois meses na capital paulista e mais três no Rio – o suficiente para se frustrar o bastante e quase abandonar a dança. Achou o rigor obsessivo do clássico enlouquecedor e a competitividade entre os colegas cariocas, mediocrizante. Voltou, sem esperanças, ao Recife. Já íntimo dos ritmos populares de Pernambuco, sentia falta também de diversidade na linguagem.
A dança já quase ficava em seu passado quando, por acaso, encontrou a também bailarina Renata Muniz na Praia do Pina. Ao ouvir do colega a sua frustração, ela insistiu: ele não poderia desistir do próprio talento. Dielson foi de novo acolhido por Mônica Lira no seu Grupo Experimental, no qual fizera um período inicial de aulas de dança contemporânea antes de seus estágios entre o Rio e São Paulo.
Em ensaio fotográfico no Recife, em 2020. Foto: Roberto Pereira/Divulgação
Na época, Mônica não tinha ainda projetos sociais, mas já tinha o hábito de acolher talentos em busca de oportunidades. “Ele tinha essa energia da juventude, essa vontade de querer chegar no lugar, eu lembro de ele dizer que queria ser o melhor bailarino do mundo”, lembra a coreógrafa sobre o Dielson que conheceu e apoiou nos primeiros tempos. “Ele era muito disciplinado, fazia muitas aulas, e tinha uma força física e vigor impressionantes, com potencial de passar nas audições de qualquer grande grupo”, recorda a fundadora do Experimental. Tutora voluntária, Mônica chegou a acompanhar o menino de então 14 anos na sua primeira incursão de formação pelo Sudeste. “Se tem gente com brilho no olhar, podemos dizer que Dielson tem brilho no corpo.”
ASCENSÃO A mãe havia se separado do pai de Dielson quando ele era ainda um bebê. As relações foram mantidas – cordiais e distantes – até que, aos 17 anos, o filho pediu para conhecer o pai. Ao chegar a Petrolina, onde morava o militar Jorge Rodrigues da Silva, Dielson ficou impressionado com as semelhanças, não apenas físicas, mas de personalidade. “Naquele momento, meu pai ouviu minha história de vida e disse: ‘Obedeça a seu talento’.” “E, naquele momento, eu obedeci. Nos vemos pouco, mas estamos sempre juntos, mesmo distantes”, conta Dielson.
Ligada afetivamente ao Recife, onde chegou a morar rapidamente, em 2003, Deborah Colker passava pela cidade numa turnê com vários espetáculos de seu repertório. Ao promover um aulão coletivo com bailarinos da cidade, ficou especialmente magnetizada com o vigor e a inteligência cênica de Dielson. Tão jovem, o rapaz tinha uma capacidade de dialogar de igual para igual com ela em cena, uma veterana de reconhecimento internacional. “Acho que foi isso que fez a Debinha me chamar”, analisa ele, à época com apenas 17 anos quando ouviu da loira o convite para se mudar com ela e companhia para o Rio de Janeiro.
“Desde o começo”, diz Deborah, por telefone, do Rio, à reportagem de Continente, “percebi em Dielson um bailarino incrível, com técnica e personalidade, intensidade, dinâmica e histórias pra contar na sua dança”. De promessa, Dielson viraria realidade em muito pouco tempo. O que se chama, no clichê, de ascensão meteórica. Logo depois de chegar ao Rio, estava escalado para turnês internacionais com destaque, em pequenos solos e coreografias coletivas, nos espetáculos antológicos de Colker. Em 4x4, seu espetáculo de estreia com a companhia carioca, Dielson era apontado já no ano seguinte pela crítica d’O Globo como a grande revelação da companhia. Daí, passou a integrar o elenco de outros espetáculos do repertório como Rota e Velox.
O bailarino no espetáculo Tatyana (2011), da Cia. de Dança Deborah Colker. Foto: Walter Carvalho/Divulgação
Após dois anos e meio, foi passar uma “chuva” no Balé da Cidade de São Paulo. Com a companhia histórica, fez seu primeiro grande solo. Apenas o corpo, sem música, se comunicava com a plateia de três mil pessoas do Theatro Municipal de São Paulo. Com o espetáculo, chamado Dicotomia, ganhou, em 2007, o Prêmio de Bailarino Revelação da criteriosa Associação Paulista dos Críticos de Arte – APCA.
Seu coração, contudo, estava ainda no Rio. “Minha relação com Deborah sempre foi muito intensa”, lembra Dielson, que voltou para a roda-viva da companhia carioca, alternando turnês entre o Brasil e o mundo, com Rota, Mix, Nó, 4x4.
O SURTO E O CAOS Corria o ano de 2010. Dielson vinha de uma turnê de três meses pela Europa com Deborah quando, depois de uma temporada de mais três meses no João Caetano, teatro centenário no centro do Rio de Janeiro, saiu diferente de uma sessão do espetáculo Cruel, um ensaio em movimento sobre crueldades familiares e cotidianas. Trazia um sentimento diferente, uma sensação de perseguição e pensamentos misturando memórias e “revoltas contra as injustiças do mundo”.
Inquieto, chegou a invadir um quartel do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), em Laranjeiras. Pegou um avião e foi para Brasília. Tentava invadir o planalto. Não conseguiu. Voltou para São Paulo, onde veria o jogo de estreia do atacante Ronaldinho pelo Corinthians. Usando dinheiro do bolso para pagar as passagens, fez tudo em 48 horas. No Bope, lembra Dielson, “queria discutir com os soldados a Revolução Iraniana”.
Contido, o bailarino foi diagnosticado com bipolaridade. Por sugestão do próprio psiquiatra, resolveu tratar da questão com sua arte. Surgiu, então, O silêncio e o caos. Solo vigoroso sobre os estágios de um surto psicótico, o espetáculo estreou no Recife, em 2015, e percorreu outras cidades do Brasil, sempre com trilha executada ao vivo por DJs – já participaram, por exemplo, Da Mata, da Silva, Buguinha e Lucas Ferraz.
Imagens do solo O silêncio e o caos (2015), criado e dançado pelo artista. Fotos: Renata Pires/Divulgação
Depois daquele primeiro surto, Dielson passou a se entender melhor. E a fazer das limitações pontos de partida para novos objetivos. Retomou a rotina com a companhia de Deborah. Já em 2011, por exemplo, estreava Tatyana, obra na qual Colker traduzia em movimentos o clássico romance em versos Evguêni Oniéguin, do russo Púchkin, considerado o pai da moderna literatura russa. Sob a trilha de Rachmaninov, Tchaikovsky, Stravinsky e Prokofiev, Dielson – cabelos cuidadosamente platinados como os da diretora – dividia com a própria Deborah o papel do protagonista, como se fosse seu duplo. Um espetáculo sobre duelos e tensões sociais em que o próprio Púchkin é representado interagindo com quatro personagens de seu livro.
Há pouco mais de quatro anos, Dielson estava já nos ensaios de um dos últimos espetáculos de Colker quando teve uma ruptura no joelho. Se viu convencido a abandonar a montagem de O cão sem plumas, adaptação do poema de João Cabral de Melo Neto. “Com o incidente, tive que reaprender a viver e, mais do que isso, a sentir menos as dores do mundo.” Mais que o espetáculo, Dielson resolveu encerrar seu ciclo na companhia de Colker. Era a hora de voltar ao Recife de vez.
Na cidade, driblando os humores do mercado e dos incentivos às artes, vai mantendo uma companhia com seu nome. Quer descobrir e potencializar o trabalho de talentos jovens e anônimos como ele mesmo já foi. Com uma dezena de intérpretes em cena, estreou em 2019, no Teatro Luiz Mendonça, no Parque Dona Lindu, o primeiro espetáculo de sua companhia. Chama-se Diário das frutas, um exercício sobre a sensualidade nordestina a partir de crônicas escritas pelo autor deste texto para uma exposição em parceria com a pintora Tereza Costa Rêgo no ano de 2013. “São textos que sugerem imagens potentes”, ele diz.
Ainda em planejamento, o outro espetáculo será sobre a obra do artista plástico Abelardo da Hora. “Agora, estou só, com a minha companhia: é a conquista de um novo território, um novo público. Estou começando do zero, como todo artista”, reflete. Mais do que espetáculos profissionais, o bailarino quer cooptar gente que nunca teve contato com o universo da dança contemporânea.
Na última semana de outubro de 2020, os números da Covid-19 pareciam mostrar um certo arrefecimento, possibilitando a volta gradual de serviços. O bailarino Dielson Pessoa, então, percorria as ruas de Água Fria, o bairro recifense onde nasceu e, como diz, para sempre talhado na geografia do seu afeto.
Ensaio do espetáculo Diário das frutas (2019), criado por ele. Foto: Divulgação
Sob o sol das cercanias do grande mercado público local, Dielson procurava convencer meninos e meninas, com tempo livre ou mesmo em situação de rua, a entrar no curso que ministra. Era já um dos professores escalados para o programa Juventude Presente, implementado pelo Governo de Pernambuco a partir da investigação de iniciativas bem-sucedidas em outros estados. A ideia é oferecer capacitação artística, em diversas linguagens, a jovens com graus diferentes de vulnerabilidade.
O bailarino estava entusiasmado por ter sido convidado para dar àquelas crianças e jovens o que ele mesmo tivera muito cedo: a iniciação na dança como possibilidade de uma futura vida profissional. “Não foi fácil entrar nas comunidades no meio da pandemia, eu quase desisti e uma das coordenadoras disse: ‘Não desista, é nosso primeiro mês, continue’."
Ele continuou. Hoje tem quase 200 alunos de vários bairros da zona norte do Recife, de 12 a 19 anos, em aulas de dança na Escola Técnica da Macaxeira e no Teimoso Esporte Clube, também no bairro. “Já dei aulas para públicos pagantes, sempre de maior poder aquisitivo. Com jovens de vulnerabilidade social, é a primeira vez”, conta. “A dificuldade agora é ter energia para dar aulas para todo mundo. Tem pessoas ultra talentosas, gente com ansiedade, que tentou cortar os pulsos. Eu realmente tenho que ser um professor de arte e tirar o melhor deles.”
NOVA FASE Em 2020, Dielson havia chamado atenção quando dirigiu um espetáculo sui generis na abertura do carnaval do Recife. Com ritmos que iam do brega funk à ciranda, ao frevo e ao samba, impressionava a confiança depositada no jovem diretor por aqueles mais de 100 jovens dançarinos de comunidades do Recife, diante do público gigantesco do Marco Zero da cidade. Alguns, ele conhecera em programas de um dos dois Centros Comunitários da Paz, o Compaz, mantido pela Prefeitura do Recife como equipamento para formação de cidadania. Dielson havia ministrado oficinas de dança, de modo que, quando o Juventude Presente foi lançado, seu nome foi imediatamente lembrado. De alguma forma, ele diz se ver naqueles alunos e alunas: “Claro que tem muitos com histórias tristes, de drogas, abusos e que estão ocupando a vida com a dança. Eu os entendo. De certa forma, a dança também me salvou”.
Com uma certeza entre tantas dúvidas, ele afirma: “Quando houver a volta dos espetáculos, os teatros não serão suficientes para tanta demanda reprimida. Teremos que usar as ruas. E quero muito estar ao lado de uma nova geração de dançarinos que eu tenha ajudado a formar”.
Nos morros do Recife, no ano passado. Foto: Roberto Pereira/Divulgação
Entre os planos para a pós-pandemia, está trazer de novo o espetáculo O silêncio e o caos aos palcos de sua cidade. “Surgiu minha vontade de viver tecnicamente esse surto. E quero voltar porque a gente vive isso recorrentemente, o caos, o surto. Quero estetizar isso: comentar, desmistificar. Muita gente diz ter vergonha da depressão, da esquizofrenia. E todo mundo que passa por essa condição de vida, tão estressante, tão brasileira, tão desigual, está sujeito a isso”, diz ele, consciente de que, de volta ao Recife, zerou sua fase de participação nas grandes companhias.
Agora tão professor quanto coreógrafo, Dielson Pessoa segue sendo, sob quaisquer aspectos, o que não desconfiava que se tornaria quando subiu eufórico naquele trio-elétrico: um verbete obrigatório da história da dança brasileira.
BRUNO ALBERTIM é jornalista e antropólogo. Autor de, entre outros, Tereza Costa Rêgo – uma mulher em três tempos (Cepe Editora, 2019) e Nordeste – identidade comestível (Massangana/Fundaj, 2020). Também ganhador de um Prêmio Esso de Jornalismo.