Perfil

Celebração aos 80 anos de Naná

A trajetória do músico e compositor pernambucano, falecido em 2016, que completaria oito décadas de nascimento na sexta-feira (2)

TEXTO José Teles

30 de Julho de 2024

Imagem integra a Ocupação Naná Vasconcelos, em cartaz até 27 de outubro no Itaú Cultural SP

Imagem integra a Ocupação Naná Vasconcelos, em cartaz até 27 de outubro no Itaú Cultural SP

Foto André Seiti / Divulgação

Naná Vasconcelos estava num quarto de hotel em algum país da Europa, participava da banda do saxofonista argentino Gato Barbieri e tinha feito mais um concerto naquela noite. Apanhou uma cerveja, ligou a TV. Não entendia o idioma, olhava as imagens e, de repente, veio-lhe à cabeça Sítio Novo, o bairro da periferia de Olinda onde cresceu. Viu-se numa gafieira não muito distante de sua casa, já tocando bongô e maracas, num conjunto de baile. Sorriu, ao se lembrar de Erasto, irmão mais novo, dependurado no muro do clube vendo o baile. Não permitiam crianças no recinto.

Os pensamentos passavam como num filme, a 24 quadros por segundo. Influenciado pelo pai músico, Seu Pierre, tornou-se ritmista (o termo percussionista só surgiria no final dos anos 1950). Adolescente, ia com ele para o Batutas de São José, de cujo conjunto Seu Pierre era integrante, e conseguiu uma brechinha para Naná tocar e descolar uns trocados. Entrosou-se com músicos. Conseguiu um emprego burocrático na Banda Municipal do Recife. Juntou dinheiro e comprou uma bateria usada. Logo estava dominando o instrumento, e acabou admitido como músico na banda. Uma colocação de respeito. Um status que lhe estendeu os horizontes de trabalho.

Nas folgas da banda, tocava com algum dos muitos grupos, tanto de baile, quanto de samba jazz, que pipocavam pelo Recife na primeira metade dos anos 1960. De repente, estava cruzando o Atlântico com o Quarteto Yansã, para tocar em Portugal. Lá acabaram gravando três EPs com Agostinho dos Santos, um das vozes mais elogiadas da música brasileira. Os EPs foram reunidos em um LP lançado pela Rozenblit, gravadora recifense. Já em 1965, ele foi considerado pelo crítico e músico Mário Griz, que escrevia no Diário da Manhã, o melhor baterista do ano, e o Sambossa Trio, no qual ele tocava, o melhor grupo instrumental.

O BERIMBAU

Um momento culturalmente muito rico e agitado na capital pernambucana. Entrou para o grupo Construção, um coletivo que trabalhava com música e teatro, política e socialmente engajado. Em 1967, participou de um musical de grande sucesso, o Memória de Dois Cantadores, com Terezinha Calazans, Edi Souza (depois conhecido como Edy Star), Marcelo Melo (depois do Quinteto Violado), Paulo Guimarães e Geraldo Azevedo. Foi um sucesso. O roteiro era como um mapa da música nordestina. Quando chegava a Salvador, ele, o ritmista, empunhava um berimbau sempre identificado com a Bahia, e a capoeiragem.

Porém, em Pernambuco, no noticiário dos jornais do Recife, pelo menos desde o século 19, o instrumento é citado em bailes e festas populares, sobretudo no Carnaval. Claro, pela sua origem africana não era levado em alta conta. Havia até um ditado que ratifica isto: “Tá pensando que berimbau é gaita?”. No carnaval de 1887, o Jornal do Recife anunciava que haveria transporte para quem quisesse brincar em Apipucos: “Passagem de ida e volta para Apipucos, festa, maracatu, bumba meu boi, pastoril, samba, cavalhada, Zé Pereira, berimbau, mamulengo, fandango...” Nos anos 1920 e 1930, era comum troças carnavalescas com berimbau no grupo que as animavam. Em 1928, por exemplo, o Jornal Pequeno, numa nota sobre um pastoril carnavalesco, lista os instrumentos da sua orquestra. Entre harmonium, bombo, reco-reco, triângulo, pífano, faz-se presente um berimbau de barriga.

Naná e seu icônico berimbau. Foto: Itamar Crispim/Divulgação

É bem provável que o berimbau tenha sumido do Carnaval com o predomínio do frevo e orquestras de metais poderosos tocando com os clubes e troças. Em Pernambuco, o berimbau passou a ter cada vez menos relevância como instrumento musical, limitando-se à capoeira. Porém, curiosamente não como complemento do capoeira.

Os integrantes do Construção cantavam ou tocavam na TV Jornal do Commercio, onde Geraldo Azevedo e Terezinha Calazans apresentavam um programa de MPB. Naná se tornou bastante conhecido para que, em 1968, Capiba convidasse a ele e a Edi Souza para defender uma composição sua classificada no festival O Brasil Canta no Rio. A canção era “Um Dia Cheio de Ogum”, uma das mais obscuras de Capiba.

Viajaram de ônibus, passagens pagas por Capiba. Arrumava a mala, a mãe ajudando, dando conselhos, pedindo que tomasse cuidado porque o Rio de Janeiro era muito grande e muito longe, e vaticinando: “Este não volta mais”. Nem sabe bem por que colocou o berimbau na bagagem junto com os instrumentos que costumava tocar. A corrente de pensamentos foi interrompida. Levantou-se da cama, foi até um canto do quarto onde estava um saco de lona com a percuteria, tirou o berimbau lá de dentro, pegou uma vareta, um moedinha, nem sabia de que país, tinham passado por tantos naquela turnê com Barbieri. Começou a tocar. Mas não o toque monótono da capoeira. Não era de repetir o que outros inventaram, de mais do mesmo. Descobriu-se dotado do dom da alquimia de sons no Rio, quando passou a tocar em shows e discos de nomes como Som Imaginário, Mutantes, Equipe Mercado, este um grupo udigrudi da MPB.

Quando saiu do Brasil, continuava explorando o berimbau, experimentando timbres, ritmos. Aquele rio tinha peixe, muito. Enquanto batia na corda de arame do instrumento, voltou a navegar nas memórias.

Depois da apresentação no festival, decidiu continuar no Rio. Um amigo músico que fazia parte do grupo Construção, que tocara no musical com ele, também estava no Rio, trazido pela cantora Eliana Pittman. Também para o Rio, saíra do Recife um baixista e pianista com quem até chegou a tocar em grupos de bossa jazz, Djair, conhecido por Novelli, porque fundou um conjunto, de curta duração, batizado de Nouvelle Vague. Ia se ajeitando aos poucos. Por meio desses amigos, foi conhecendo gente da efervescente cena musical carioca naquele 1968. Foi a uma festa na casa de Milton Nascimento, empatia à primeira vista.

A certa altura, Bituca pegou um violão para mostrar aos amigos. Quando tocou Sentinela, o pernambucano entrou apartamento adentro, foi na cozinha e voltou para a sala com panelas, caçarolas, frigideiras, colher de pau, talheres e tome a batucar. Alcançou seu objetivo. Passou a tocar com Milton Nascimento. Chegou a ir para Belo Horizonte com ele, e hospedou-se na casa da família Borges, no bairro de Santa Tereza.

Em pouco tempo tornou-se o ritmista mais requisitado do Rio, conhecido por Naná da Tumbadora. Tão requisitado que precisou se desdobrar para tocar com duas estrelas da MPB que faziam temporadas, no Rio, com shows na mesma noite, mas em horários diferentes. Naná riu ao se lembrar de como corria da Sucata, na Lagoa, onde Gal Costa apresentava sua primeira temporada solo, para o show de Milton, no Teatro Opinião, em Copacabana, que começava uma hora depois.

Voltou ao berimbau. Tocou um pouco mais e foi dormir.

Durante a turnê, Naná continuou extraindo sons do berimbau, de possibilidades que lhe pareciam infinitas. Passou a usá-lo no palco, no estúdio. Ousou incluí-lo na trilha sonora de um dos mais polêmicos filmes da história do cinema, O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci (1972), música assinada por Gato Barbieri. Mas dois anos antes, numa gravação com Milton teve a certeza de que o berimbau não era apenas “Uma moeda, um arame/e um pedaço de pedaço de pau”, como cantou Jackson do Pandeiro em “O Assunto É Berimbau” (Antonio Barros, 1965). Bituca compôs a trilha do filme “Tostão, A Fera de Ouro”, de Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite. O berimbau de Naná estreou na música-tema, lançada em disco.

QUEM SABE FAZ A HORA

1968, no ano em que vivemos perigosamente, Naná Vasconcelos foi tocar com Geraldo Vandré, então badaladíssimo, por causa da guarânia Caminhando (Pra Não Dizer que Não Falei das Flores), defendida no Festival Internacional da Canção daquele ano, e que irritaria profundamente os militares. Um episódio de que Naná falava pouco, daquele momento em que sua vida e liberdade correram riscos.

Vandré desentendeu-se com o Trio Marayá, e com o Quarteto Novo, que o acompanhavam. Pediu para um amigo montar um grupo com músicos jovens. Surgiu assim o Quarteto Livre, formado por Nelson Ângelo, Franklin da Flauta, Geraldo Azevedo e Naná. Estar com Vandré nessa época era pegar em bomba. A primeira temporada, depois do festival, aconteceu no Teatro Opinião, com título dúbio de Dei Uma Flor Para o Meu Amor, no tijolinho de divulgação publicado nos jornais, seguiram-se três versos, e, abaixo, o nome da música proibida. Uma concorrida temporada de um mês. Naná contou, em entrevista ao Jornal do Commercio, do Recife, que depois de um ensaio, mal deixaram o teatro, uma bomba explodiu lá dentro. O alvo talvez fosse Geraldo Vandré, ou uma advertência, nunca se soube o objetivo real do atentado. Se tivessem demorado a sair o teatro, talvez não vivessem para contar a história.

“Caminhando” teve os discos recolhidos nas lojas, sua execução proibida em todo o território nacional, criando uma situação kafkiana. O artista e seu grupo foram contratados para uma série de shows no Centro Oeste por estar com uma música nas paradas, porém não poderia cantá-la em público. No segundo show em Goiás, na cidade de Anápolis, souberam que naquele dia, 13 de dezembro, a junta militar baixara o artigo institucional nº 5, o AI-5, que extinguia garantias individuais, e concedia poderes ilimitados ao governo. Seria o derradeiro show de Vandré no Brasil no século 20. A turnê terminaria em Brasília. O show foi cancelado, claro.

Políticos foram cassados, funcionários públicos aposentados, muita gente presa, e Geraldo Vandré agora passou a ser um foragido. Mas um foragido que dirigia um chamativo e enorme Landau, carro de luxo da época, quase uma limusine: “Vandré não queria pegar a estrada principal. Foi uma loucura a viagem, durou o dia inteiro, um sufoco. Todo mundo em pânico, porque Vandré não deixava olhar para o lado. A gente parava para comer, e ele não descia do carro. Não queria nem botar gasolina, dizia que tínhamos cara de artista e seríamos reconhecidos”, relato de Naná Vasconcelos, numa entrevista ao Correio Braziliense, em 2008.

Provavelmente por serem os dois pernambucanos ilustres desconhecidos, e Franklin da Flauta e Nelson Ângelo mal saídos da adolescência, os agentes do Dops não lhes deram importância. Naná nunca foi de se envolver com política, mas, naqueles tempos, tudo estava envolvido pela política. Sentiu novamente isto, tocando com Milton Nascimento sob cerco da censura federal. Na gravação do álbum Milagre dos Peixes, foram tantas as letras vetadas que parte das canções foram gravadas como instrumentais.

Naquele início dos anos 1970, com a classe artística, em sua maioria, posicionada em oposição ao regime, Naná Vasconcelos circulava no grupo cujo epicentro era Milton Nascimento. Desde a Bossa Nova, nenhum músico brasileiro teve as portas do exclusivista mercado americano tão facilmente abertas quanto Bituca. No entanto, mesmo com convites para fazer a América, ele optou por permanecer no Brasil.

Milton formou um supergrupo, o Som Imaginário. Na verdade, seria adjetivado de supergrupo anos depois. Quase todos ainda eram iniciantes. Os músicos que o formavam: Wagner Tiso, Robertinho Silva, Tavito, Zé Rodrix, Fredera, Luiz Alves e Naná da Tumbadora. As qualidades do Som Imaginário fizeram com que o grupo não ficasse à sombra majestosa de Milton Nascimento. Seguiria seu próprio caminho. E aí se revela o Naná Vasconcelos que requer autonomia em seu trabalho. Ele está com a banda mas não na banda. Quando o Som Imaginário estreou em disco, Juvenal de Holanda Vasconcelos não fazia parte do grupo.  Assim como não foi sócio do Clube da Esquina, ou de qualquer movimento ou agrupamento musical, aqui ou no exterior. “Nunca fui do Clube da Esquina. Nunca fui do Som Imaginário. Eu sou eu. Sou Naná”, enfatizou numa entrevista ao Estado de Minas, em 2012 (a Ana Clara Brant, sobrinha de Fernando Brant, parceiro de Milton Nascimento). Porém pontuou sua carreira com parcerias e participações nos mais variados projetos.

Incorporou-se a uma das experiências mais lisérgicas e quase esquecidas da música brasileira, o grupo Luiz Eça e a Sagrada Família para uma temporada de dois meses no México, onde gravou um disco em 1970 (só lançado no Brasil em 1978). Trabalho influenciado pelos novos ventos que sopravam na música popular, tanto com o tropicalismo no Brasil, quanto soprados pelos os Beatles no pop rock, mais o rock e blues amplificados, lisérgico, de Cream e Jimi Hendrix. Tanta liberdade levou Naná Vasconcelos a gravar seu primeiro solo de berimbau, na faixa que abre o álbum, O Homem da Sucursal/Barravento (Milton Nascimento/Fernando Brant/Sérgio Ricardo).

Com Maurício Maestro e Joyce, Nelson Ângelo, Novelli, todos procedentes do grupo com Luiz Eça, mais Toninho Horta, trazido de Minas, Naná participou do grupo A Tribo, banda de rock, com jazz, e influências de Milton Nascimento, sem colar na música inglesa ou americana. A Tribo teve duração fugaz, nem gravou um álbum. Participou apenas de uma coletânea de nomes alternativos da MPB. A passagem de Naná pela Tribo foi mais célere do que o tempo de vida da banda. Mais tarde, já estabelecido na França, gravaria discos com os ex-companheiros no grupo de Luiz Eça.

Naná tirou o passaporte da gaveta e juntou-se à banda do saxofonista argentino Gato Barbieri, um dos mais importantes nomes do jazz da época. Ele foi ao Rio para se apresentar no IV FIC, e trabalhar na trilha do filme Isabel das Mortes, coprodução ítalo-brasileira, e ainda faz solo de sax num tema da trilha de Pindorama, estreia de Arnaldo Jabor como diretor.

NO OCO DO MUNDO

Naná Vasconcelos tampouco pretendia se acomodar como coadjuvante de Barbieri, Ron Carter e outros músicos com quem tocava em Nova York, onde morava Gato. No concerto do saxofonista, Naná tinha direito a um solo de três minutos, quase sempre com o berimbau. Essa foi sua primeira estadia na cidade onde, depois de uma temporada em Paris, viveria duas décadas, até voltar em definitivo para Pernambuco. Em Nova York, reencontrou dois amigos do Brasil, o cineasta Gláuber Rocha e o artista plástico vanguardista Hélio Oiticica, os dois em auto-exílio. Dividiram apartamento e, vez por outra, hospedavam Lygia Clark, pintora e escultura, também de vanguarda, que trocou o Brasil pela França. Um apartamento muito bem frequentado, pois.

Estavam em Paris quando ele saiu do grupo do argentino. Sentia-se suficientemente pronto para formar sua própria banda. Teve dificuldades em arregimentar músicos, e assumiu a carreira solo, o berimbau efetivado como instrumento protagonista – o que começara a acontecer em Nova York. O instrumento atraiu a atenção da imprensa, que se deparava com sons que ignorava poderiam vir de algo tão aparentemente rudimentar. Uma cineasta, Toby Talbot, em 1971, dirigiu um curta, com Naná, intitulado Berimbau.

Paris foi a cidade onde seus rumos seriam definidos. Ali gravou o álbum solo de estreia, Africadeus pelo Saravah, do músico e produtor Pierre Barouh, fissurado por música brasileira. Lá, começaria a trabalhar em um hospital, com crianças especiais. Fez isto durante dois anos e meio. Na capital francesa, encetou com Egberto Gismonti a parceria que marcou a carreira de ambos. Em 1977, gravaram Dança das Cabeças. O disco deu-lhes um Grammy, a unanimidade da crítica, e os levou a mares nunca dantes navegados.

O acaso perpetrando das suas. Os dois, até então, não comungavam de maiores afinidades, confirma Gismonti: “Uma vez nós tocamos em Berlim, num festival de jazz, Naná, Hermeto e eu, com Palle Danielson no baixo. Dentro da sala, estava o Manfred Eicher, da ECM. Passados uns anos, recebi um convite de Eicher: ‘Quer gravar um disco, na Noruega?’ Teoricamente, seria Robertinho Silva, Nivaldo Ornelas, o grupo com quem eu tocava. Se fosse Naná, seriam os músicos com quem ele tocava. Antes de ir para a Noruega, parei em Paris. Eu não tinha nada que encontrar com Naná, ou melhor, não esperava que isto acontecesse porque não podia esperar que iria acontecer. Aí sentei num restaurante que eu conhecia muito, o La Coupole. Tô sentado, me aparece um ator brasileiro, Zózimo Bulbul, e perguntou: ‘Já viu Naná?’. Eu disse: ‘Não, só vi Naná uma vez na vida’”.

Os dois se viram pela segunda vez, pintou o clima. Foram para Noruega trabalhar num disco para a gravadora ECM, que foi feito em dois dias, de puro improviso, mais um dia para a mixagem. Dança das Cabeças tornou-se um clássico quase imediato. Egberto Gismonti conta o processo da feitura do álbum: “Como Naná apareceu com uma riqueza sonora que só ele é que sabe, o disco foi inventado em função das ideias, das conversas, e das músicas que eram compostas. Como não dava tempo de ensaiar, a gente conversou, e concluiu que seria uma história de duas pessoas caminhando numa floresta, e descrever tudo isto de uma só vez. Parece meio abstrato, mas não é tanto assim. Foi sendo criado, criado, criado” (entrevista concedida em Olinda, em 2007, quando ele e Naná fizeram uma rara performance no Brasil de Danças das Cabeças na íntegra).

A VOLTA

É lugar comum ao se escrever sobre Naná Vasconcelos relacionar nomes de músicos famosos e importantes com os quais ele tocou ou gravou, como se fosse um privilégio para o pernambucano. Uma lista extensa que inclui Paul Simon, Talking Heads, Pat Metheny, Aztec Camera, B.B King, Chaka Khan, o grupo Codona com Don Cherry e Collin Walcott, e incontáveis músicos mundo afora. Incluindo também o trabalho para o cinema. Fez música, por exemplo, o filme Procura-se Susan Desesperadamente (1985), de Susan Seidelman, estrelado por Madonna. Mas estes são quem tiveram o privilégio de tê-lo no palco ou estúdio. Quem definiu com precisão o que era tocar com Naná é o guitarrista Pat Metheny, com o qual o percussionista participou de quatro álbuns, incluindo o antológico As Falls Wichita So Falls Wichita Falls: “Sua presença por si só era notável e única. Apenas ao ficar lá, parecia que ele mudava as coisas” (em entrevista para a Ocupação Naná Vasconcelos, no Itaú Cultural, em São Paulo, que vai até 27 de outubro).

Naná Vasconcelos foi voltando aos poucos para sua terra. Em 1980, participou de um festival do Monterrey Jazz em São Paulo, em seguida veio visitar a família, pela primeira vez em 12 anos. Quatro anos mais tarde, estaria novamente no Recife (mas hospedando-se em Olinda, no Hotel 7 Colinas) para um show com Geraldo Azevedo. Daí em diante, foi cada vez mais reaproximando-se do Brasil e de Pernambuco. Em 1996, assumiu a direção musical do Festival Panorama Percussivo Mundial, o PercPan, dividindo a apresentação das atrações no palco com Gilberto Gil. O PercPan, com Naná, tornou-se grandioso, pelo conhecimento e prestígio no universo da percussão planeta afora. Permaneceu na direção do evento até 1999.

Nessas quatro edições que trabalhou no PercPan, a influência de Naná foi tão marcante em Salvador que precisou de diplomacia para recusar convites para se estabelecer na capital baiana. Um deles, tentador. Ofereceram-lhe um espaço no Pelourinho para implantar um projeto que acalentava por em prática no Recife ou em Olinda: o ABC das Artes, continuação expandida do trabalho que realizou em Paris em 1972, com crianças especiais. Esta nova versão incluía crianças carentes e em tratamento por doenças graves. O ABC teve curta duração. Uma edição em Salvador, outra em São Paulo. Em Olinda, teve continuidade como Flor do Mangue mas, atrapalhado por politicagem local, foi interrompido. A última tentativa de Naná em trabalhar crianças com música foi mais bem-sucedido, porém com outro conceito, a lusofonia, e batizado de Língua Mãe, com crianças de Angola, Portugal e Brasil, com apoio do Ministério da Cultura, foi realizado em Luanda, Porto, Vila Nova de Gaia e Brasília. Mas realizado quando ele já morava há alguns anos no Recife.

Naná Vasconcelos em oficina para crianças africanas, brasileiras e portuguesas,
em Brasília, em 2011. Foto: Acervo de família

A ponte aérea Nova York-Recife tornou-se mais e mais frequente. Porém, por razões não apenas musicais. Ele se apaixonou por uma pernambucana, Patrícia, com quem casaria, em março de 1999, e com a qual viveria até seus últimos dias. Tiveram uma filha, Luz Morena. Um relacionamento que, a princípio, não foi bem recebido pela família dela, que era também a família dele. Patrícia é filha de um irmão de Naná. Ela confessa que sabia pouco sobre a música daquele tio que morava nos Estados Unidos, e fazia esparsas visitas aos parentes: “Numa das vezes que ele veio à minha casa, eu estava no quarto lendo. Minha mãe bateu na porta avisando que ele estava chegando. Ele me convidou pra dar uma volta com ele em Sítio Novo, eu morava lá. Depois ele me pediu para deixar ele no hotel. Ficamos conversando na frente do hotel, em Boa Viagem. A coisa foi evoluindo, espontânea, foi se transformando numa coisa que senti que era diferente o sentimento. Ele perguntou se podia ligar pra mim. Ligava e mandava cartas. Fui vendo que o sentimento era uma coisa muito forte. Então, ele deixou tudo lá e veio morar aqui. Veio por causa de mim. Ele estava em evidência lá, e corria o risco de ser desvalorizado morando aqui. Mas veio”, contou Patrícia, numa entrevista ao Jornal do Commercio, em 2017.

Naná Vasconcelos estabeleceu o Recife como moradia em 1999. No início, passava um tempo em Nova York, onde mantinha sua base, mas também ia se entrosando com a cena musical pernambucana, ainda embalada pelo efeito Manguebeat. Conheceu Chico Science, quando o mangueboy esteve em Nova York. Foi assisti-lo no lendário CBGB, no Bowery, em Manhattan. No mesmo ano, participou em duas faixas de Samba Esquema Noise, da Mundo Livre S/A, que gravava o disco no estúdio Be Bop, em São Paulo. Na época, Duncan Lindsay trabalhava com Naná, e ele e Fred Zero Quatro se conheciam: “A gente tava no estúdio, e Duncan apareceu por lá, e disse que Naná tava chegando pra ensaiar, ia fazer uma apresentação no Free Jazz. Imediatamente eu fui em um mercadinho perto do estúdio, em Pinheiro, onde vendia Pitú. Comprei e levei pro estúdio. Quando Naná veio conhecer a gente, ofereci a Pitú, ele gostou. Mostrei ‘Musa da Ilha Grande’, e eleja botando percussão. Fez isto em mais duas faixas. Acho que só não continuou2, porque tinha  o ensaio”.

Em 2001, Naná produziu o disco de estreia do Cordel do Fogo Encantado. Voltou ao Recife quando a cidade vivia uma efervescência cultural assemelhada à de que ele participou nos anos 1960. Foram anos frutíferos, de muitos projetos, com músicos locais e estrangeiros trabalhando pelo Brasil e empreendendo turnês internacionais. Com o surgimento de estúdios de qualidade na cidade, passou a gravar discos com mais frequência, o último deles lançado quando já se encontrava debilitado, Café no Bule, com Paulo Lepetit e Zeca Baleiro. O disco ganhou o Prêmio da Música Brasileira de 2016, seu último prêmio.

TUMARACA

Naná Vasconcelos recebeu um convite para participar de uma reunião na Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife (Roberto Peixe era o secretário, João Paulo o prefeito). Foi formada uma comissão para repensar o Carnaval do Recife formada por Maurício Cavalcanti e Marcelo Varella, que convidaram outras pessoas, entre estas Junior Afro, depois nomeado para um setor de cultura afro-brasileira criado nesta época. O que os integrantes da comissão concordaram foi a mudança do modelo da abertura do Carnaval, até então a mais prosaica possível. Num caminhão de trio, na Guararapes, o prefeito entregava as chaves da cidade ao Rei Momo. “Marcelo Varella até citou que Carlinhos Brown botava um monte de tambores na rua, causava. A gente também lembrou a presença das alfaias nos grupos da música pernambucana. A gente precisava mostrar pro mundo de onde vinha a alfaia. Marcelo disse que a gente tinha um grande percussionista na cidade, Naná Vasconcelos”, lembra Júnior Afro.

Naná, no Marco Zero, em ensaio com maracatus para a abertura do Carnaval de 2014.
Foto: Sérgio Bernardo/PCR

Quando Naná aceitou, que participou de uma reunião com mestres de maracatu, muitos nem o conheciam, não tinha ideia do quanto que aquele projeto seria marcante para a reafirmação do maracatu de baque virado, do Carnaval, da própria percussão pernambucana e da sua própria carreira. A tarefa não foi fácil. Havia uma rivalidade entre as nações. Não apenas isto. O Mestre Afonso, do Leão Coroado, o mais antigo do maracatu (de 1863) posicionou-se contrário, alegando que cada nação tinha seu sotaque. Naná Vasconcelos e Junior Afro insistiram nas reuniões com os mestres, procurando uma forma de conciliar as particularidades de cada um.

Junior conta que decidiram visitar a sede dos maracatus que participariam da abertura, o que se estendeu a terreiros de candomblé, aos quais os maracatus de baque virado  estão ligados. Numa dessas visitas, Pai Raminho de Oxóssi lavou um cajado e o entregou a Naná Vasconcelos para usar na cerimônia de abertura com os batuqueiros. Iniciada em 2001, na sexta-feira, na Praça do Marco Zero, a abertura com Naná e os batuqueiros de várias nações deu uma grande visibilidade, no país e no exterior, ao maracatu e tornou Naná Vasconcelos pelos conterrâneos que nunca assistiram a um concerto solo dele, e o ligaram inevitavelmente às alfaias e ao maracatu. Mesmo que abertura tenha se tornado um espetáculo que foi além do objetivo inicial de valorização da cultura afro em Pernambuco.

Naná passou a convidar artistas da música popular e em shows conceituais, tanto brasileiros quanto estrangeiros. Ney Matogrosso, Lenine, Elza Soares, Marcelo D2, Milton Nascimento, Maria Bethânia, Caetano Veloso, o grupo americano Stomp, e a cantora Angelique Kidjo, do Benin. Os ensaios que se realizavam na Rua da Moeda eram, por si só, um espetáculo à parte. Naná trabalhava nas aberturas, que chegaram a reunir 500 batuqueiros na edição de 2013, na qual teve participações de Milton Nascimento e da portuguesa Carminho. Participavam também da cerimônia dois grupos idealizados pelo percussionista, o Voz Nagô, formado por mulheres, e o Batucafro, de formação mista, que se apresentava com ele em outros palcos. Naná dedicava-se à abertura como se fosse um projeto de vida. Foi o maior, mais longevo e seu último projeto.

O percussionista descobriu o câncer no pulmão em 2015, o que não o impediu de continuar trabalhando. Em 27 de fevereiro de 2016, com o celista Lui Coimbra, ele participou, em Salvador, do Nalata Festival Internacional de Percussão, promovido por Carlinhos Brown, em seu espaço no Candyall Getho Square, no Candeal.

Naná pediu a Brown para antecipar o show, estava bastante debilitado, mesmo assim  suportou as quase duas horas do concerto, que abriu revelando seu estado de saúde à plateia: “Estou doente e quando descobri o câncer, pensei, se eu tiver que ir, eu vou, se eu tiver que ficar, eu fico. Eu estou ficando com a mente cheia de vida, e o coração cheio de músicas e mantras. Ao meu redor, uma miscigenação de pessoas orando por mim. Eu só tenho a dizer a vocês, amém, amém e amém”.

JOSÉ TELES, crítico de música, pesquisador e escritor

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