Perfil

Antônio Maria, quando a noite era uma criança

Cronista e compositor pernambucano produziu uma das maiores obras jornalísticas e literárias do país, boa parte delas ainda à espera de publicação

TEXTO Débora Nascimento

17 de Março de 2021

Compositor e jornalista faria 100 anos neste dia 17 de março de 2021

Compositor e jornalista faria 100 anos neste dia 17 de março de 2021

FOTO Reprodução

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Quando Charlie Parker morreu
, vítima de um ataque cardíaco, os paramédicos de Nova York calcularam sua idade em 60 e poucos. Mas ficaram surpresos ao ver o documento de identidade. No fatídico dia 12 de março de 1955, o jazzista tinha apenas 34 anos. A rotina repleta de bebida, cigarro, drogas, noites mal dormidas envelheceu antecipadamente o corpo do saxofonista. Surpresa parecida deve ter acometido os que socorreram um outro artista; desta vez, no Rio de Janeiro, na madrugada do dia 15 de outubro de 1964, após um irremediável enfarte, que nos subtraiu uma das maiores lendas deste país: Antônio Maria.

Assim como Parker, Maria partiu quando ainda tinha pouca idade e muito talento para oferecer. Mas, o mesmo comportamento desregrado com a saúde lhe conferiu uma aparência de pessoa mais velha e lhe adiantou o fim, aos 43 anos.

Um detalhe é que, ao contrário do gênio americano, o gênio brasileiro não atuava somente na música, desenvolveu uma série de outras atividades, nas quais também se destacava: radialista, repórter de polícia, crítico, apresentador e produtor de rádio e TV, narrador futebolístico, cronista e boêmio – não podemos esquecer desta peculiaridade que lhe caía tão bem quanto as demais profissões e que lhe foi fundamental na vida, na obra e lhe apressou a morte.

Assim como Noel Rosa, nos anos 1920/30, Maria, nos anos 1950/60, foi uma das figuras mais marcantes das noites cariocas. E a partir dessas madrugadas despertas extraía a inspiração para criar músicas, crônicas, matérias jornalísticas e paixões. “Antônio Maria tinha uma personalidade exuberante, era extremamente inteligente, sensível, divertido, e sua presença, garantia uma noite ótima. Era o último a sair das boates, e, quando as portas se fechavam, ainda ficava na calçada com uma roda de amigos, tomando cerveja no gargalo. Jamais vi alguém com tanta capacidade de beber, comer, de atravessar as noites sem dormir; ele era uma força da natureza”, escreveu Danuza Leão, sua última grande paixão, na autobiografia Quase tudo, de 2005.

Como um ser noturno, Maria era imbatível, talvez só mesmo o Poeta da Vila pudesse rivalizá-lo, pois ambos não eram somente adeptos de um copo generosamente cheio, mas também perspicazes, engraçados e charmosos, o que lhe valiam o sucesso com os companheiros de boemia e com as mulheres, apesar da aparência física não muito privilegiada dos dois – o raquítico Noel e seu problema de nascença no queixo, Maria e seus 120 quilos e suadeira constante. “No melhor dos mundos, Antônio Maria, o Menino Grande, ainda estaria vivo, fazendo aquilo que nenhum de seus contemporâneos sabia fazer melhor: inebriar de charme uma conversa”, apontou o jornalista Sérgio Augusto.

O segredo do ilustre boêmio, nos dancings do Centro, cabarés, bares e cassinos da Lapa era saber conversar de forma envolvente sobre qualquer assunto e lhe salpicar sempre uma observação bem-humorada. Carlos Heitor Cony, que o conheceu nos anos 1960, costumava dizer que se o jornalista, um dia, tivesse sido enviado para cobrir a posse do papa, voltaria cardeal.

A trajetória meteórica de Antônio Maria de Araújo começou no Recife, em 17 de março de 1921. Tombinha, como era chamado pela família, passou a maior parte de sua infância vivendo com o avô, dono da Usina Cachoeira Lisa. O ambiente era de fartura. O menino gordinho tinha aulas de piano e francês em casa, estudava no tradicional Colégio Marista, torcia pelo Sport Club do Recife e ia à missa todos os domingos. A vida boêmia começou ainda na terra natal, no Cabaré Imperial e no bar Gambrin's.

No entanto, esse cenário ameno começou a acinzentar-se quando os pais de Tombinha, Inocêncio Ferreira de Morais e Diva Araújo, faliram após a súbita queda do preço do açúcar no mercado internacional.

Aos 13 anos, em 1934, o garoto começou a trabalhar como locutor e disc jockey na Rádio Clube de Pernambuco. Quatro anos depois, seu amigo de infância Fernando Lobo formou-se em Direito e mudou-se para o Rio. Em 1940, Antônio Maria seguiu o caminho do conterrâneo. Lá, conseguiu emprego como locutor esportivo da Rádio Ipanema. No entanto, pouco tempo depois, foi demitido, pois suas expressões no microfone não foram aceitas. Para completar, um suposto rapto de uma moça no seu apartamento e a consequente interferência policial trouxe Maria de volta ao Recife, onde trabalhou em rádio e jornal, entre 1941 a 1944.

Em seguida, migrou a Fortaleza, para trabalhar na Rádio Clube do Ceará, permanecendo por quase um ano como locutor esportivo. Depois, foi a Salvador, onde atuou como diretor de produção das Emissoras Associadas e chegou a ser candidato a vereador. Em 1948, ainda dentro do circuito desses veículos de Assis Chateaubriand, partiu em definitivo para a então Capital Federal.

O radialista começou a década de 1950 casado com Maria Gonçalves Ferreira, a Mariinha, com quem teve dois filhos, Antônio Maria Filho e Rita, mas isso não o impedia de ter casos extraconjugais. Chegou a morar em diversos hotéis, dormir na casa de namoradas (calcula-se que foram mais de 50) e amigos. E, para que sua produção jornalística não sofresse com essa vida cigana, levava sempre no carro uma máquina de escrever, com a qual produzia diversas crônicas em plena rua.

RÁDIO E TV

Sr. Alziro Zarur, se Jesus está chamando, por que o senhor não vai logo?

Sr. Jânio Quadros, é verdade que o senhor ficou estrábico porque tem um olho em Moscou e outro no capital americano?

Essas são algumas amostras do humor cáustico que Antônio Maria distribuía nos textos que preparava para as rádios.

Um dos momentos mais marcantes da sua longa carreira radiofônica (15 anos) foi a transmissão do jogo Brasil x Uruguai, no Maracanã, na final da Copa do Mundo de 1950, na qual teve a infeliz experiência de narrar o gol de Ghigia na rede da seleção canarinha.

Essa partida foi um divisor de águas na carreira de narrador futebolístico. Ele transmitiria por mais dois anos, mas depois abandonou a profissão de vez: “Perdi o gosto do futebol naquele gol do Ghigia. O futebol virou um emprego e a ida para o estádio, um caminho tedioso. Duravam séculos os 90 minutos de qualquer partida. Larguei tudo. Envelhecera”.

Na Rádio Tupi, deixou como marca os textos humorísticos em vários programas, como o Rua da Alegria, transmitido toda segunda-feira, às 21h05. O ator Orlando Drumond, que atuava num dos quadros do humorístico, atesta que Maria foi o primeiro a chamar o Flamengo de “Mengo” – mais uma das expressões criadas por ele, como a politicamente incorreta “mulher mal-amada” e “A noite é uma criança”, que caíram no gosto popular, sem que a maior parte das pessoas soubesse da autoria.

No finzinho de 1952, a Rádio Mayrink Veiga, com dinheiro injetado pelo governo Vargas, extraiu da Tupi seus maiores nomes. Antônio Maria foi um dos primeiros contratados do dream team de humoristas: Chico Anysio, Haroldo Barbosa, Sérgio Porto, Max Nunes. Seu salário era de 50 mil cruzeiros, o mais alto do rádio no país. Com o dinheiro, Maria comprou um dos emblemas de status da época, um Cadillac.

O jornalista, que conheceu Ary Barroso no rádio, trabalhou com este, durante todo o ano de 1957, no programa Rio, eu gosto de você, na TV Rio. Foi sua estreia na televisão. Os dois conversavam, apresentavam números musicais e entrevistavam diversas personalidades, sempre com um tom bem-humorado: “Quer dizer, dona Sandra (Cavalcanti), que a senhora é uma mal-amada?”, atiçou Maria. Dizem que a resposta da candidata lhe garantiu a eleição para deputada estadual: “Posso até ser, senhor Maria, mas não fui eu que fiz a música Ninguém me ama.”

Certa vez, Walter Clark, o legendário jovem diretor-geral da TV Rio, considerou muito sofisticado um texto de Maria para o programa Noites Cariocas. Solicitou que o refizesse. O redator atendeu. Clark voltou a achar elitizado. Pediu nova versão; depois, mais uma. Por fim, Maria entrou na sala do chefe, jogou as laudas refeitas na mesa e disse: “Taí, é o pior que eu posso fazer”.

“A dispersão por outras atividades, no entanto, prejudicou o reconhecimento, com o peso necessário, de seu grande talento. (…) Na televisão, nosso herói pegou o inicio do videoteipe – todos imediatamente apagados depois de ir ao ar para se gravar em cima algum gol do domingo. Não ficou nada”, lamenta Joaquim Ferreira dos Santos, autor do livro Um homem chamado Maria (2006), perfil do artista, recheado de histórias incríveis e engraçadíssimas.

CRONISTA
Na época, a palavra não existia, mas, hoje, Maria, pelo trânsito em várias áreas de criação, seria chamado de “multimídia”. E o mais curioso: nessas funções todas se destacava. Uma delas era a crônica, num período em que brilhavam seu conterrâneo Nelson Rodrigues, o capixaba Rubem Braga, o mineiro Paulo Mendes Campos, entre outros nomes de peso do gênero literário/jornalístico.

O jornalista produzia textos de prazerosa leitura tratando de inúmeros temas, com uma visão lírica ou bem-humorada do mundo: “O pior encontro casual da noite ainda é o do homem autobiográfico. Chega, senta e começa a crônica de si mesmo: ‘Acordo às sete da manhã e a primeira coisa que faço é tomar o meu bom chuveiro’. Como são desprezíveis as pessoas que falam no ‘bom chuveiro’!” (O pior encontro casual).

“Seu estilo consistia em revelar o absurdo, a ironia de situações e pessoas que apanhava, formalmente, ao natural”, escreveu Paulo Francis, no prefácio do livro O jornal de Antônio Maria, coletânea organizada por Ivan Lessa e publicada em 1968, pela editora Saga. “Um pequeno twist na organização das palavras, aqui e ali, produzia o efeito, sem que a aparência de simplicidade se alterasse. Como qualquer profissional sabe, isso é muito difícil de fazer. E em pessoa, sem as inibições da palavra escrita, das restrições da nossa provinciana imprensa, ele se abria mais. Embora no seu gênero de crônica ele me pareça inimitável”.

“As colunas de Antônio Maria foram um dos mais agradáveis exercícios de leitura que os jornais do Rio já entregaram aos seus leitores. Tinham humor, vivacidade, clareza e davam a impressão, pela facilidade de leitura, que também tinham saído de um jato, espontâneas”, analisa Joaquim Ferreira dos Santos. Já Carlos Heitor Cony aponta a influência do pernambucano Manuel Bandeira na temática que envolve mulheres, noites e frustrações.

Para ler essas crônicas, as opções de coletâneas são poucas: Benditas sejam as moças, de 2003, e Seja feliz e faça os outros felizes (ambas da Civilização Brasileira), de 2005, recolhidas em coleções do Última Hora e O jornal. Com vocês, Antônio Maria, compilação de 1994 (Paz e Terra), publicou grande parte do conteúdo de O jornal de Antônio Maria – no entanto, este traz desenhos, caricaturas que fazia de si e de amigos para ilustrar textos. Há também O Diário de Antônio Maria, escrito durante 39 dias, nos quais ele relata a debilidade física e revela uma forte angústia existencial.

Mas se levarmos em consideração que, por exemplo, ele escreveu mais de três mil crônicas, constataremos que o mercado editorial está em considerável débito com esse espetacular autor. “Ainda há muito AM para ser lançado até que se dê uma geral completa em sua obra monumental. Faltam os programas de rádio e televisão, suas deliciosas notas sobre o zum-zum-zum da badalação do Rio noturno e o que ia pelo cenário artístico”, lembra Ferreira dos Santos.

JORNALISMO
Seus textos na Revista da Semana, na Manchete, em 1953 e 1956, e nos jornais fazem um perfil da cidade e da sociedade naqueles anos, abordando os artistas, as modas, os bares, restaurantes, as comidas – o que antecipou, em algumas décadas, o colunismo social moderno. De 1951 a 1955, escreveu em O Jornal, principal impresso dos Diários Associados de Chateaubriand. Tinha ¼ de página com o nome inicial de A noite é grande, depois rebatizado de O Jornal de Antônio Maria. De 1955 a 1959, escreveu em O Globo a coluna Mesa de Pista.

Depois, trabalhou em mais três jornais, sempre sob o título O jornal de Antônio Maria: de 1959 a setembro de 1961, no Última Hora (onde fazia também o Romance Policial), de setembro de 1961 a fevereiro de 1962, no Diário da Noite, e de fevereiro de 1962 a outubro de 1964, no O Jornal.

Como conhecedor do circuito de bares e restaurantes, Maria se transformou num crítico de gastronomia, galhofeiro: “Se você hoje não tomar parte em feijoada alguma, vá ao Sacha`s, coma uma trincha de carne grelhada e, sendo do seu gosto, peça um vinho francês. Ah, a nota? A vida (apesar de pequena) sempre foi maior e mais roubada que as notas das boates”.

Maria era apolítico, embora tivesse tendência a ser esquerdista e fosse um dos críticos do governo de Carlos Lacerda, no então Estado da Guanabara. Também, vez ou outra, soltava farpas sutis contra o golpe militar de abril de 1964 – mas não viveu tempo suficiente para assistir ao estrago provocado pelo regime, pois falecera no mês de outubro daquele mesmo ano.

Para Joaquim Ferreira dos Santos, Maria percebeu – antes de Gay Talese e dos expoentes do new jornalism e da glamorização cinematográfica da violência que podia obter, no submundo urbano e nas ocorrências criminais, personagens interessantes. “Os pés de chinelo da cidade eram perfilados por um dos seus mais sensíveis cidadãos”, observou.

Assim como Nelson Rodrigues, cujo estilo se assemelha em algumas crônicas, Maria também se arvorou a responder perguntas dos leitores, geralmente sobre temas relacionados ao amor e sexo. Os textos foram publicados no Última Hora, entre 1959 e 1961; no Diário da Noite, entre 1961 e 1962, e em O Jornal, ate outubro de 1964. “Muitas delas eram forjadas pelo próprio Maria, claro. (…) Separar hoje o que chegou pelo correio e o que foi inventado na redação é impossível. E desnecessário. Importa saborear o humor que Maria conseguiu com aqueles textos curtinhos”, diz Ferreira dos Santos.

MÚSICA
Paralelamente ao trabalho em rádio, TV e jornal, Maria começou a explorar a musicalidade adquirida no Recife, desabrochando-a no Rio, onde a concorrência era forte e contava com autores do porte de Geraldo Pereira, Wilson Batista, Ary Barroso, Assis Valente, Custódio Mesquita, entre outros.

A primeira leva de sua produção inicial expôs o saudosismo da terra natal (a cidade lhe eternizou com uma estátua de bronze na Rua do Bom Jesus) e, assim, surgiu uma série de cinco frevos, dos quais destacam-se o Frevo No 1 do Recife (“Ô, saudade, / saudade tão grande…”), gravado pelo Trio de Ouro, em 1951; o No 2 (“Ai, que saudade tenho do meu Recife, / da minha gente que ficou por lá…”), por Luiz Bandeira, com o maestro Severino Araújo e orquestra, em 1953, e o de Nº 3 (“Sou do Recife com orgulho e com saudade/Sou do Recife com vontade de chorar...”).

Em 1951, Maria também começou a compor dentro do estilo “dor de cotovelo”, pelo qual ficaria mais conhecido no Sudeste. Nesse ano, lançou o samba Querer bem, feito em parceria com Fernando Lobo e gravado pela amiga de noitadas Aracy de Almeida, que, por coincidência, também fora companheira de boemia de Noel.

Em 1952, enquanto trabalhava na Rádio Mayrink Veiga, o compositor conseguiu emplacar dois sucessos, o samba-canção Ninguém me ama e o samba-acalanto Menino grande, duas das canções mais emblemáticas de seu repertório e que lançaram Nora Ney, intérprete de voz grave, rouca, que cantava quase falando.

Em 1953, iniciou outra parceria com Zé da Zilda (Não fiz nada, Não vá embora e Meu contrabaixo). Depois, viria o integrante do grupo Os Cariocas Ismael Neto (Valsa de uma cidade, Podem falar, Carioca 1954, Sei perder, Madrugada três e cinco, Cartas, Parceria e Canção da volta, que lançou Dolores Duran como cantora); o pernambucano Manezinho Araújo (Cajueiro doce); e Evaldo Gouveia (Canção para ninar gente grande).

Em 1959, o violonista Luiz Bonfá convidou-o para participar da trilha sonora do filme Orfeu negro, dirigido por Marcel Camus, e juntos compuseram Samba de Orfeu e Manhã de Carnaval, uma das canções brasileiras mais gravadas no exterior. No mesmo ano, também fizeram Faça o que quiser e Canção da mulher amada. Esta foi lançada em 1960, assim como Mais que a minha vida e A canção dos seus olhos (ambas em parceria com Pernambuco).

Muitas dessas composições foram geradas à noite, nas mesas dos bares, com parceiros de copo, como Vinícius de Moraes, que o chamava de “o bom Maria.” Com o Poetinha viveu algumas divertidíssimas aventuras na Cidade Maravilhosa e compôs Quando tu passares e Dobrado de amor a São Paulo. “Eram muito mais boêmios que faziam música. A boemia é que era a vida. As canções só nasciam se tivessem que nascer”, avalia Zuza Homem de Mello.

Maria era do tipo de pessoa a quem se podia dizer “quero morrer teu amigo”, pois ele costumava ser implacável com os desafetos. Flávio Cavalcanti, apresentador do televisivo Um instante, maestro, que costumava quebrar no palco os discos dos quais não gostava, era um sujeito antipático, controverso, lacerdista, de lábios finos e pequenos. Um dia, resolveu falar mal de uma música do pernambucano. Foi o suficiente para este apelidá-lo de “Boca Júnior”.

Em contrapartida, Maria ganhou do compositor Ronaldo Bôscoli as alcunhas de “Eminência Parda” e de “Galak”, por ser um “mulato branco”. Era a vingança por conta de suas críticas à bossa nova e suas “letras vazias e sem sentido” (“o barquinho é o coração deslizando na canção”). Já os bossa-novistas não suportavam o estilo, digamos, noir das músicas marianas.

Antônio Maria, por sua vez, já havia colaborado, com seus versos sucintos, para a modernização das letras da música brasileira, e, com Valsa de uma cidade, de 1954, lançou a temática do cidadão de bem com a vida e com sua cidade, algo que seria bastante explorado pela bossa: “Vento do mar no meu rosto / E o sol a queimar, queimar / Calçada cheia de gente a passar / E a me ver passar / Rio de Janeiro, gosto de você / Gosto de quem gosta / Desse céu, desse mar, dessa gente feliz”.

Com o movimento tropicalista, a partir de 1968, os estilos musicais ficaram mais libertos de preconceito. Mas, antes disso, havia muita crítica e patrulhamento mútuo dos artistas. Nos anos 1950, por exemplo, ser apontado como compositor de boleros soava como ofensa, pois, uma década antes, o Brasil recebeu uma enxurrada de cantores do gênero como Bienvenido Granda, Lucho Garcia, Pedro Vargas e Agustín Lara.

“O bolero era a praga, a saúva do intelecto, o inimigo público número 1 a ser atacado por quem tinha bom gosto. A soberania cultural brasileira estava em jogo, gritava Ary”, lembrou Ferreira dos Santos. “O que Antônio Maria fazia era samba-canção. Não tinha nada de bolero. Ele não inventou nada, mas ouviu direitinho a lição dos mestres que vieram antes e traduziu para os anos 50. Deu ao gênero suas cores definitivas: o preto e o cinza.”

Apenas 62 músicas de AM foram gravadas, mas isso não explica os poucos holofotes que sua obra vem recebendo. Não há citações de seu nome nos livros Sambistas e chorões, de Lúcio Rangel; A canção brasileira, de Vasco Mariz; Panorama da música brasileira, de Ary Vasconcelos. Nas lojas, as opções são poucas para ouvir suas músicas. A Funarte lançou um LP, em 1989, com regravações de seus sucessos e a cantora Marisa Gata Mansa, em 1996, fez um CD em sua homenagem. O Núcleo Informal de Teatro lançou, em 2008, A noite é uma criança, trilha sonora do musical homônimo sobre a vida do artista.

As músicas marianas costumavam expor suas paixões, frustrações e anseios. Uma delas, Vem hoje, tinha destinatário certo: Danuza Leão. Conquistá-la foi a prova de que se tratava mesmo de um sedutor, um homem excepcional. Afinal, a modelo era uma das mulheres mais bonitas, sofisticadas, cultas e elegantes do Rio, que se apaixonou por ele, um homem desajeitado de 1,90 metro, que usava tamanco português e sacola de feira para ir à praia, que fazia peraltices como entrar no Copacabana Palace de pijama. Danuza ainda carregava um pequeno detalhe: era esposa do diretor do Última Hora, Samuel Wainer, chefe de Maria.

No fim de 1960, ela contou ao marido da paixão recíproca e a separação veio seis meses depois. Foi um escândalo na alta sociedade carioca. O casal passou a ficar isolado, só vivendo entre si. Para completar, Danuza teve que administrar o ciúme doentio de Maria. Após quase quatro anos, a relação acabou – o que agravou a saúde do jornalista, que já havia sofrido um enfarte antes daquele fatal de 15 de outubro de 1964.

Antônio Maria, que sempre mostrava-se alegre, viu-se como personagem real de suas músicas. Num dos textos, datados próximos de sua morte, escreveu em tom pessimista, mas sem abrir mão do humor: “Aqui estou eu, portanto, pela quadragésima terceira vez, careca, rubro-negro, cardíaco, preguiçoso, sentindo que Buda me chama, sem parar: - 'Vem, Antônio! Vem para a grande surpresa de te achar!' – Deverei ir? Com esse dólar de 1.560 cruzeiros, deverei ir? Aguenta um pouquinho, Buda!” Buda, Deus, ou quem quer que seja, poderia ter esperado mais.

* Este perfil foi publicado originalmente na revista da UBE, em 2012


EXTRA: Confira a HQ Ninguém me ama, ninguém me quer..., do ilustrador Samuca, publicada originalmente na edição de junho de 2019 da Continente.


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