Perfil

A visceralidade sutil de Rubi

Quem é este artista do teatro, da música, da poesia, que gostaria de cantar para alguém todo dia e é capaz de arrasar em cima de um palco, mesmo ao lado da diva Elza Soares?

TEXTO ERIKA MUNIZ
FOTOS E VÍDEOS RICARDO MOURA

19 de Dezembro de 2017

As faces de Rubi em ensaio no palco do Espaço Parlapatões, em São Paulo

As faces de Rubi em ensaio no palco do Espaço Parlapatões, em São Paulo

Fotos Ricardo Moura

[conteúdo exclusivo Continente Online | dez 2017]

A primeira vez
que vi Rubi em cena foi no Espaço Parlapatões, localizado na Praça Roosevelt, em São Paulo. Era alguma noite de novembro de 2013 e o show compunha a programação da Balada Literária, organizada pelo escritor pernambucano Marcelino Freire, que, naquele ano, homenageava a cartunista Laerte. Comum a alguns eventos, os ingressos foram entregues ao público cerca de uma hora antes do início e, por muito pouco, quase não consegui garantir o meu, mas tive sorte. E aí, àquele cenário intimista, nos juntamos público e artista muitíssimo bem-acompanhado de seu violão e de Estevan Sinkovitz nas guitarras. Sob as luzes do teatro, aquele “homem do miudinho, do passo pequeno, para alcançar a emoção grande”, como ele mesmo diz, nunca mais saiu de minha memória.

Rubi é desses artistas sempre rodeado de muitos outros, que conhecem muita gente. A parceria entre ele e Estevan, por exemplo, se deu graças à apresentação do músico Luciano Barros. E o próprio Estevan participou do segundo e terceiro disco de Rubi, intitulados Infinito portátil (2006) e Paisagem humana (2007), respectivamente. Meados de 2013, inclusive, ambos fizeram uma longa temporada musical às quintas-feiras no Parlapatões. Seja em Contraveneno, álbum e show com o compositor paulista Kléber Albuquerque sobre as “canções para desenvenenar corações em tempos tóxicos”, seja em seus shows solo – a exemplo de um dos últimos, cujo repertório foi delicadamente escolhido para as apresentações no Itaú Cultural –, ou, ainda, acompanhando a diva da música brasileira Elza Soares, na turnê de A mulher do fim do mundo (desde 2015), ficamos sempre vulneráveis às interpretações de Rubi. Eis uma pessoa que hipnotiza pela voz, presença, corpo cênico, entrega, ou tudo isso junto. 



“De uns tempos pra cá, percebo o quanto o meu trabalho é um híbrido dessas coisas todas de poesia, de teatro e de música”, observa ele, em entrevista à Continente. “Estava cantando uma música te esperando. Uma música do Carlos Careqa que chama Tudo que respira quer comer”, disse, por telefone. Como não poderia deixar de ser, entre poemas e músicas, ele nos recebeu, confirmando um de seus desejos relevados durante a conversa: “Tenho pensado bastante na questão da origem. De onde eu vim, porque muitas vezes a gente fica nas buscas e é tão necessário recolher para descobrir. O que é essa arte que eu faço? De que maneira posso exercer essa arte? Tenho vontade de cantar para alguém todos os dias, seja acompanhado de um violão, seja num show, seja numa rua, seja encontrar um amigo e cantar. Tenho vontade de que esse canto seja vivo, pessoal. Estou falando isso para você porque estou botando para circular como energia”.

Na definição da poeta e professora pernambucana Renata Pimentel, o trabalho de Rubi “pega pela visceralidade sutil”. “Ele é visceral e é levitante ao mesmo tempo. Então, como é que alguém consegue ser tão víscera e tão suave? É um oxímoro, quase”, diz Renata, sobre o amigo a quem já escreveu um poema.



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Vivenciando um momento de retorno às origens, tanto como artista quanto como ser humano, Rubi deve muito desse mergulho em si ao “encontro de almas” com Elza Soares: “Só de pensar, é um negócio que fico com vontade de chorar”. Os dois se conheceram através do convite de Guilherme Kastrup, diretor artístico do show A mulher do fim do mundo, para participar da turnê. O início disso foi quando o compositor e cantor Celso Sim, seu amigo desde a época de lançamento do disco Pedra bruta (1992) – uma parceria entre Sim e Jorge Mautner, o apresentou à música Benedita, composição do próprio Celso que posteriormente faria parte do mais recente disco da cantora.

O show de lançamento de A mulher do fim do mundo seria no Auditório Ibirapuera e a primeira ideia era que Celso cantaria a música. No entanto, as datas tiveram que mudar e ele, que estava trabalhando em outros projetos, não pôde participar. “Guilherme Kastrup me ligou e me convidou pra ir ao estúdio, mas não contou o que era. Fui lá e ele me falou: 'Rubi, olha, é isso, isso, isso e isso. É você que tem que fazer'. Ele me mostrou a música, achei difícil demais da conta. Não era só a voz, ela tem um monte de ambientes diferentes. Falei: 'Gente, Gui, mas eu?'. Ele: 'Então é isso. O Celso não pode fazer, a gente quer que você faça. Você topa ensaiar? Topa fazer?'. Fui pra casa desesperado e falei: 'Gui, deixa eu ouvir a música um pouco pra saber se eu consigo mesmo?'. Vim pra casa, ouvi a música não sei quantas zilhões de vezes e liguei pro Guilherme: 'Vamos! Você me ajuda?'. Ele falou: “Vamo, eu te ajudo!'. E foi a coisa mais incrível!”



O primeiro ensaio com Elza Soares aconteceu no estúdio Nimbus, em São Paulo, e foi catártico: “Na primeira vez, já cantei junto com ela sem muita dificuldade. Errando uma coisinha aqui, outra ali, mas ela abriu em mim um espaço e um poder que é muito além da voz. Esse encontro me transformou literalmente mesmo. Como cantor, como potência, sabe quando parece que é um plug-in? No primeiro encontro já senti isso. Você imagina, eu vivi isso e, pra mim, se renovava a cada hora que eu ia para o palco com ela”, afirma.

O que seria uma única apresentação de estreia tornou-se a turnê inteira, inclusive fora do país. Após o lançamento, Celso Sim seguiria com o trabalho, mas pela sintonia estabelecida no palco, a própria Elza pediu que Rubi permanece no espetáculo com Benedita e Malandro, de autoria de Jorge Aragão (ver vídeo acima). Pois quem viu alguma das apresentações de A mulher do fim do mundo pelo Brasil sabe que, de fato, trata-se de um espetáculo. Elza traz em sua música um manifesto de muita poesia, permeada pela urgência de questões políticas como a violência de gênero, transsexualidade e o racismo. Além disso, tem cenografia impecável assinada por Anna Turra, com diversos sacos de lixo.

Um presente que eu ganhei da Elza poder fazer parte dessa turnê inteira e viver essa experiência. Ela me trouxe uma relação de força e grandeza como artista negro de minha época. Me fez ressignificar minha via como artista. Não abrir mão daquilo que é essencial pra você, tanto que essa coisa de ela estar no palco, vivendo da arte dela é o exemplo maior que eu podia ter pra minha vida inteira”, conta.





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Nascido em Goiânia (GO), não viveu muito tempo em sua cidade natal. Muito cedo mudou-se para Brasília, por conta do trabalho de seus pais. “A minha mãe era empregada numa casa durante muito tempo. Aí, quando ela se casou, se descolou dessa casa de família para ter a família dela. Então, a gente foi para Brasília, isso era 1963 ou 1964, bem no período do Golpe”, conta. Na capital federal, ele se dividiu entre as cidades-satélites de Taguatinga do Norte e Taguatinga do Sul. Seus primeiros amigos vinculados à cultura e à arte são de lá, inclusive. “Estava sempre muito ligado à cultura, de uma certa maneira, e também à igreja católica. Tanto que, quando jovem, saindo da adolescência, fui seminarista carmelita.”

Nesse período de claustro, acabou indo viver no município de Camocim de São Félix, no agreste pernambucano. “Lembro quando Elis Regina morreu, estava em Camocim. Foi algo que mexeu muito comigo. Nos tempos de juventude em Brasília, vi um show dela e foi muito marcante para mim. Vivi ali durante um ano, depois mais um período no Instituto de Teologia do Recife, no começo da década de 1980.” Nesse período, ele frequentou o Convento do Carmo, no Recife, onde os carmelitas estavam bastante engajados nas questões sociais. “Existia um trabalho de muita resistência e luta dos pequenos proprietários contra os latifundiários. Nesse movimento, lembro de Dom Helder Câmara, de vê-lo”, relata. Entre outras lembranças, afirma ter aprendido bastante observando a relação de ancestralidade do povo pernambucano com a cultura popular. Apesar das ricas experiências que a vinda a Pernambuco o proporcionou, tempos depois, compreendeu que a arte suscitava nele algo além e resolveu deixar o convento. “Eu achava que, muitas vezes, essas sendas na religião tendem a criar um funil, e a arte faz exatamente o contrário, ela abre. Quando eu me vi nesse lugar de escolha, optei pela arte”, explica.



“Minha relação com a música tem muito a ver com o rádio e com o canto da minha mãe. Ela tinha uma voz linda e eu adorava ouvi-la cantar para mim, era algo muito precioso. Quando eu era pequeno, nós não tínhamos televisão em casa, meus pais adoravam rádio. Durante o dia, ouvíamos o tempo todo. Tocava de tudo, Chico Buarque, Agnaldo Timóteo, Agnaldo Rayol, Jerry Adriani, era aquela mistureba louca. Isso que eu acho a maravilha da nossa música e do nosso povo”, recorda o filho mais novo de Alda Alves de França e Laurindo Alves de França.

Poucos o conhecem pelo seu nome de batismo, que é Wilton. Seus irmãos são Wagdon e Washigton. Mas como Rubi, só assinou pela primeira vez em 1985 e foi um presente do poeta brasiliense Mário Ribeiro. Depois da experiência no convento do Recife, ao retornar para Brasília, quando não era nem Rubi ainda, inscreveu-se num curso de teatro do Sesc Garagem e lá, conheceu diversos amigos. Com um deles, Neto Costa – irmão de Mário –, formou a Ovelha Negra, uma “banda despretensiosa” para tocar rock dos anos 1980. “Ele quem me apresentou o Mário Ribeiro, que era louco por poesia e eu adorava as poesias dele. Ia fazer um show, mas eu queria um nome de artista, que me levasse para o palco. Essa história eu acho que nunca contei para ninguém assim. Por causa de um poema escrito pelo Mário Ribeiro ganhei a alcunha de Rubi”, conta.



Ainda sobre outras memórias da infância em Brasília, entre os anos 1960 e 1970: “Lembro que a gente morava num barraquinho de dois cômodos. Divididos ali, uma parte era quarto para todo mundo, e nós éramos cinco. A gente teve uma relação muito estreita no período, porque era tudo muito pertinho. Vivi muito isso na minha infância de ver a labuta dos meus pais e a labuta que era dar conta de educar três filhos homens em um período muito difícil politicamente. Em plena ditadura, meu pai mestiço, minha mãe negra. A questão do preconceito estava muito presente, mas, quando criança, você surfa na alegria de viver e nem percebe”.

Quem conhece o trabalho de Rubi nem imagina quando revela que bem no início de sua trajetória artística, a base de sua criação era outra. “O canto, na minha vida, sempre foi muito presente, mas o meu foco era o teatro, não a música”, explica. Talvez por esse mergulho nas artes cênicas – ele é ator de formação pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, Brasília –, leve os movimentos tão a sério, tanto os vocais quanto os corporais, quando sobe ao palco. Tudo unido a qualquer coisa de sedução e elegância. Escutá-lo uma vez já é suficiente para identificar seu timbre marcante das próximas vezes.

Ao longo de sua vida, as trocas com diversas figuras artísticas foram fundamentais para potencializar suas descobertas como artista. Algumas delas bastante marcantes durante a sua juventude na efervescente capital federal dos anos 1980, onde vivenciou de perto a ascensão de bandas como Legião Urbana, Capital Inicial, tornando-se mais próximo de Cássia Eller, que circulava, com frequência, em shows pela cidade naquele período histórico pós-ditadura. “A Cássia era uma pessoa que botava a vanguarda paulista pra circular nos ouvidos da gente pela cidade. Muito Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção… Eu ia sempre no show dela, era fã. Um dia, ela foi no meu show, gostou e falou assim: 'Escolhe uma música, vem ensaiar comigo' e ficamos trocando figurinhas. Para mim, é um presente. Depois, ela tomou esse rumo astral que encantou o país inteiro”, relembra Rubi, com carinho e gratidão.

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Em 1992, ele mudou-se para São Paulo, onde vive até hoje, para investir no teatro e na música, mas também porque encontrou-se com a cidade. Só em 1998, seu primeiro disco, Rubi, foi lançado com produção do Mário Manga, do Premeditando o Breque. Muito dessa conquista deu-se graças ao empenho do amigo brasiliense Humberto Macedo, que colaborou nas inscrições do projeto na Lei Rouanet. Pelo acontecimento, conheceu diversas pessoas que mais tarde marcariam sua vida. Uma das amizades foi a cantora mineira Ceumar, com quem estabelece estreitos laços de afeto mútuo. “Ela foi um anjo na minha vida, ouviu o meu disco, se encantou e, em 2000, foi ver o meu show e gostou muito. Daí, a gente começou a trocar figurinhas.” Na memória de ambos, está um acontecimento curioso, uma viagem que fizeram para um projeto na China, com diversos outros artistas brasileiros na virada do milênio, de 2000 para 2001. “Era um projeto bem maluco! Um natal brasileiro em Hong Kong. Então, tinha várias manifestações diferentes de arte e cultura. A gente passou um mês fazendo isso lá. Foi uma coisa incrível, transformadora na minha vida”, relembra, entre risos.

Sobre o trabalho do amigo, Ceumar faz questão de rasgar elogios: “Eu percebo nele uma coisa rara. São raros os cantores que têm essa entrega para a música, porque, muitas vezes, ficamos preocupados com a beleza da voz, a afinação e a perfeição vocal. Mas a entrega mesmo é muito bonito de ver, como ele se entrega a cada canção, sabe? Cada canção precisa dizer algo, então ele atinge um lugar muito raro de emoção em cada pessoa. É impossível você passar por um show sem sentir alguma coisa realmente profunda em todos os estilos que ele canta. Desde o pop, as canções românticas, as de protesto e as de pensamentos mais filosóficos, ninguém passa impune”.



Outro grande amigo, cujo trabalho serve declaradamente de inspiração é o do poeta, cantor, ator e dramaturgo Gero Camilo. “Fizemos um projeto chamado Canto de cozinha, que era eu, Ceumar, Gero, Tata Fernandes e Kléber Albuquerque. A gente criou formas de fazer uma música mais orgânica. Às vezes, a gente fazia completamente sem microfone, tudo meio acústico e em ambientes muito naturais”, relata Rubi.

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Durante um tempo, o artista cantou na banda Glória, que fazia diversos bailes na capital paulista. “Eram bailes incríveis, que foram tomando proporções bem grandes. O mentor dessa banda, Fred Mazzucchelli, foi que me convidou pra cantar.” Desde 2004, trabalhou e ajudou a fundar o núcleo criativo chamado Banda Mirim, com artistas como Tata Fernandes e Lelena Anhaia, e permaneceu durante 12 anos. “Eram vários artistas de áreas diferentes: circo, músicos, atores… Uma mistura grande fazendo espetáculos para a criança e a família. Vivia intensamente esse processo. Eu me descolei da companhia ano passado pra fazer outros projetos, criar outras coisas.”

Nos últimos anos, Rubi veio algumas vezes a Pernambuco para cidades como Garanhuns, Araripina, Petrolina e Arcoverde, trazendo entre shows e oficinas. “Teve dias que fiquei muito emocionado de ver a relação das pessoas com a cultura, com o que é produzido aí. Essa coisa de viver numa grande metrópole.. Você é do mundo e ao mesmo tempo, quase não é de lugar nenhum se você não se segura na sua origem.”

Em seu último show solo, somente acompanhado dos violões, diz que tem tido mais espaço para se reconhecer como artista. “Aos 55 anos, vivendo da minha arte com as dificuldades que um artista vive. Isso, pra mim, é de uma grandeza enorme, me dá uma alegria grande. Ao mesmo tempo, estar tocando esses violões sozinho é um mergulho, porque é romper com os medos, é romper com as formalidades musicais, é trazer um jeito, um pensamento, um olhar meu assim, sem essa coisa egoica, mas tentar ser genuíno.”



ERIKA MUNIZ, formada em Letras pela UFPE, estudante de Jornalismo pela Unicap, estagiária da revista Continente

RICARDO MOURAvideomaker e documentarista, tem formação em Sociologia pela UFPE e usa a fotografia como pesquisa.

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