A manhã de domingo de Lou Reed
TEXTO Débora Nascimento
28 de Outubro de 2013
Foto Reprodução
Meia hora após receber a ligação do Comendador Rogério me informando que Lou Reed havia partido, entrei na internet para ver como estava a repercussão. No meu perfil do Facebook, tinha uma publicação: “O mundo está aguardando o post de vossa senhoria sobre o acontecido”. A brincadeira de Gianni Paula tocava num ponto verdadeiro, eu realmente queria escrever sobre o assunto, mesmo que ninguém estivesse nem aí. A morte de pessoas queridas, sejam próximas ou desconhecidas, sempre emociona e/ou choca e nos desperta uma narrativa mental, às vezes, confusa, às vezes, linear, e certamente a vontade de colocá-la pra fora surge. No caso dos artistas, uma morte geralmente choca quando se trata de jovens, mesmo que façam parte do “grupo de risco” dos junkies. Lou Reed, no entanto, já havia saído dessa lista de “candidatos a morrer na juventude” há um bom tempo. Até esse paradigma ele conseguiu quebrar, não morreu jovem, como muitos de seus colegas. Foi rebelde até na hora fatal. Ele afirmava estar “limpo” das drogas há mais de trinta anos. Garantiu que o tai-chi-chuan o salvou. E se foi, da maneira mais poética possível, vendo uma árvore, por uma janela, e fazendo, na cama, os movimentos da arte marcial chinesa com as mãos.
Desde o anúncio de sua partida, no domingo passado (27), vêm aparecendo artigos e matérias dando uma geral na sua biografia, discografia e abordando (parte da) sua importância e influência no cenário musical, para o surgimento de estilos variados, como o noise, indie, glam, punk, pós-punk; e de diferentes artistas, como Patti Smith, Talking Heads, Blondie, Ramones, Sonic Youth, Strokes... Desde domingo, muitos vêm se pronunciando, como o baterista Lars Ulrich, a baixista Kim Gordon e o escritor Neil Gaiman, este falou da influência que as letras de Lou Reed exerceram sobre seu trabalho. As homenagens não param.
Mas a impressão é que essas homenagens não revelam tudo. Os fãs de Lou Reed nunca serão sinceros o bastante para falar da real da importância dele em suas vidas. Isto, talvez, seria se expor demais, na medida em que ele, através de suas composições, promoveu um mergulho no inóspito território de alguns sentimentos, abordando assuntos, até então, ignorados na música popular, que pulsavam nas ruas e nos quartos escuros. Também soube ser sublime ao tratar do tema crucial da arte e da vida: o amor.
Não é à toa que uma de suas joias seja exatamente uma letra extremamente simples e bela sobre o que seria a felicidade a dois, Perfect Day, música amparada por uma melodia igualmente simples e bela, de sequências fluentes de acordes (o refrão começa grandioso em lá maior, faz um pequeno passeio até chegar a um ré, que, apesar de maior, soa, ao fim, melancólico). Como não facilitava a vida de ninguém, Lou Reed ainda mistura os tempos verbais “presente” e “passado” e lança sutilmente a dúvida se esse estado de felicidade acontece, aconteceu ou se foi apenas uma utopia romântica. A frase final com um milenar e sábio conselho (“Você vai colher apenas o que semeou”) estabelece de vez o mistério.
A carreira vitoriosa de Lou Reed, do ponto de vista puramente artístico, comprovou a importância que as letras ainda possuem na música popular, o que muitas vezes fica em segundo plano no trabalho de diversos artistas. A letra, na canção pop, costuma ser o ponto de maior afinidade do fã com seu ídolo, porque este se torna representante dos pensamentos e emoções dos múltiplos indivíduos. O impacto de uma letra lou reediana é tão forte que, mesmo no crepúsculo de sua vida, ele conseguiu extrair lágrimas dos experientes Lars Ulrich e James Hetfield, quando estes ouviram Junior Dad, faixa do disco Lulu, fruto da controversa parceria de Lou com o Metallica.
No documentário Rock and Roll Heart (1998), Thurston Moore, guitarrista do Sonic Yourth, afirmou que escutava as músicas de Lou Reed e tentava se imaginar numa situação difícil, porque não vivia os problemas narrados naquelas letras. Lou cantava o que via a seu redor, a exemplo de canções como Walk on the wild side, cujos personagens retratados realmente existiram. Uma grande aula para os compositores/letristas. Para criar é preciso também viver. Isto me lembrou de uma história que ouvi sobre um aluno que perguntou a um professor o que deveria fazer para ser um bom jornalista. O professor respondeu: assine uma revista semanal e dois grandes jornais de circulação nacional. O professor só esqueceu de dizer o fundamental: vá para a rua, se importe com o mundo e com as pessoas. Talvez esta tenha sido a maior contribuição de Lewis Allan Reed para as novas gerações. Como afirmou David Bowie após a morte do amigo, “Ele foi um mestre”.
Lou Reed mostrou-se ao mundo de diversas formas. Como não se vendeu a fórmulas fáceis para ser melhor consumido, também não fazia questão alguma de ser um cara simpático para poder agradar. A seriedade e autenticidade o seguiam inclusive em entrevistas. São notórias as que concedeu a outro mestre, Lester Bangs, o mais rocker dos críticos de rock. Uma delas foi, na realidade, um duelo, com direito a revelações bombásticas, insultos e palavrões. E começava assim: “Oi, Lou...Creio que você se lembra de mim”. Após um aperto de “mãos de peixe morto”, a resposta: “Infelizmente”.
Em artigo, de estilo “lesteriano”, publicado após a morte de Lou Reed, o jornalista John Doran disse que, numa entrevista, acabou desligando o telefone na cara do artista. “Fiquei surpreso por não ter desenvolvido transtorno de estresse pós-traumático. No entanto, quando coloquei a fita para tocar, eu me senti imediatamente envergonhado; ficou claro que, apesar de ter me levado até o limite da paciência, ele realmente me deu toda a informação que eu precisava para escrever meu artigo. Pensando agora, talvez fosse possível identificar alguns sinais de um senso de humor muito seco em funcionamento, talvez até de um jogo — apesar de eu ter falhado vergonhosamente em entender quais eram as regras”, afirmou Doran.
Neil Gaiman contou que percebeu estar diante de um verdadeiro roqueiro quando Lou Reed deu uma esculhambação na plateia que estava fazendo muito barulho em seu show. Esse mesmo radicalismo foi expresso no disco Metal Machine Music (1975), mais de 60 minutos de barulho de guitarra e distorção, se tornando campeão de devolução nas lojas de discos. Mas muito antes, quando a banda Velvet Underground se vestia de preto e executava seu som cru, soturno e muito barulho, em plena época do “flower power” no mundo, Lou já se mostrava sem concessões. Enquanto os Beatles cantavam Here comes the sun, Lou atacava de Who loves the sun? E apesar de não ter vendido como a banda inglesa, o VU também influenciou meio mundo de gente. Disse Brian Eno que “Apenas 30 mil pessoas compraram o disco de estreia do Velvet Underground na época, mas quem o fez certamente montou sua própria banda”.
Lou Reed costumava também lançar frases que se tornaram célebres como, “música com mais de três acordes pra mim é jazz”. Isso lançou as bases teóricas e práticas para o punk. Um dos hits do Velvet Underground, Oh! Sweet Nuthin tem apenas três acordes. Mas, claro, Lou Reed fez músicas com um bom punhado de acordes em cada uma delas. E a tosqueira do Velvet Underground é uma ilusão. Vá tentar fazer um disco soar como qualquer um dos quatro de estúdio da banda e veja se consegue fazer igual ou parecido. A música All Tomorrow's Parties, do primeiro LP, o “da banana”, é um exemplo desse estilo raro.
A versatilidade de Lou Reed em todos os seus discos, seja com o VU, seja solo, pode lhe dar o título também de “camaleão do rock”, que pertence a seu fã David Bowie, produtor da obra-prima Transformer (1974). Num mesmo disco seu, se encontram estilos e performances tão díspares que cada música parece pertencer a um autor diferente.
No próximo domingo, haverá uma homenagem a Lou Reed no Iraq, a casa de Evandro Sena. Músicos e fãs vão se encontrar para tocar o repertório de mais de vinte músicas do compositor (no Velvet e na carreira solo). Nele, tocarei a bateria no estilo Moe Tucker. Pra mim, a palavra que melhor exprime esse evento seria “tributo”, porque homenagem você pode fazer a qualquer um. Mas “tributo” vai além de homenagear. É o pagamento de uma dívida. É uma retribuição por um serviço prestado. Esse vai ser o agradecimento de alguns fãs do Recife a Lou Reed. Mas há muitos mais espalhados pelas ruas, mundo afora. Ao contrário do que disse Brian Eno, nem todo mundo montou uma banda após ouvir o The Velvet Underground & Nico. Mas, pelo menos, quis formar. Porque sempre será cedo para contabilizar o impacto de Lou Reed.
Gianni, quanto ao texto, sei que o mundo não esperava, mas eu, sim. No entanto, ainda não era bem isto que eu queria escrever sobre o amado Lou Reed.