Obituário

José Cláudio, nosso grande retratista

Pintor, desenhista, designer, jornalista e escritor morreu na terça-feira,12 de dezembro, aos 91 anos

TEXTO Revista Continente

13 de Dezembro de 2023

José Cláudio foi também colunista dos periódicos da Cepe, entre 1988 e 2023

José Cláudio foi também colunista dos periódicos da Cepe, entre 1988 e 2023

Foto Dayvson Nunes/Divulgação

Um dos maiores pintores do século 20 no Brasil, José Cláudio (1932-2023) é nome que jamais se ausentará de qualquer lista dos grandes da arte moderna do país. O artista, falecido no último dia 12/12, foi um retratista gigante. Pintou figuras humanas, plantas e animais com igual complexidade, conferindo luz, cor e sombra de assinatura própria. Usou o figurativismo para denunciar injustiças sociais.  Autodenominado operário da arte, pintou trabalhadores rurais, festas populares, enfim, retratou como ninguém a cultura pernambucana e nordestina. 

Chamar suas pinceladas de regionalistas, porém, não era um adjetivo muito apreciado pelo mestre. “Ele me disse uma vez que não acreditava que poderia haver uma pintura regional ou regionalista porque a pintura não é um produto agrícola”, recorda o jornalista, escritor e crítico de arte Bruno Albertim, em conversas com José Cláudio para feitura do livro Pernambuco modernista (Cepe Editora, 2022).

José Cláudio também foi desenhista, designer, jornalista e escritor. Suas crônicas ocuparam as páginas impressas e digitais das revistas Continente Pernambuco, de 1988 até 2023. O jornalista e empresário André Rosemberg, quando foi editor do então Suplemento Cultural (atual Pernambuco), em 1988, convidou José Cláudio para assinar a contracapa da publicação da Cepe. Em prefácio do livro esgotado Meu pai não viu minha glória (Cepe, 1995), assinado por José Cláudio, uma carta de André para o artista conta como se deu a colaboração: “Ao assumir a editoria geral do Suplemento Cultural, ainda um estudante entusiasmado pelo jornalismo, me perguntei como poderia melhorar o jornal. Uma das providências, concluí, seria melhorar a qualidade do texto […] Mas não foi tão simples assim: na conversa telefônica você pediu o número do meu telefone, que discou alguns minutos depois para ter certeza de que não estava sendo vítima de algum trote, acredito eu”. André conta ainda que o artista não somente escrevia a coluna mas também diagramava a página. “A qualidade do texto garantiu a continuidade da página, apesar das mudanças de governo”, escreveu, orgulhoso, André, que se tornou amigo do artista. 

Assim como a curadora Clarissa Diniz, que assinou projeto curatorial da última exposição de José Cláudio em vida, Primeiro a fome, depois a lua, ano passado, na Galeria Marco Zero, em Boa Viagem. A mostra celebrou os 90 anos do mestre. “José Cláudio e eu já fizemos muitas colaborações ao longo de 17 anos”, lembra Clarissa, acrescentando que já prefaciou livros do artista e trabalhou com ele em outras exposições.  “A gente tinha vontade sim de organizar uma retrospectiva maior.  Ainda tenho.  E tenho certeza de que vai acontecer em algum momento. Uma exposição que dê conta do fôlego, da complexidade da obra de José Cláudio dos anos 50 até hoje”, revela a curadora. 

Nos anos 1960, José Cláudio investiu na poesia visual e no universo gráfico, fazendo com que os carimbos dialogassem com os versos.  “Essa perspectiva gráfica do trabalho dele permanece ao longo de toda a vida, inclusive na sua pintura. Ele tem muitas pinturas que dialogam com o desenho de maneiras muito diversas”, analisa a curadora. 

A vasta produção, seja de paisagens, seja de história social do Brasil, seja de relações com a cultura do nordeste desenvolveu a prolífica retratística de José Cláudio. “Ele tem uma retratística imensa, um artista que se dedicou bastante ao retrato e desse retrato ficaram talvez mais conhecidos os esboços dele dos trabalhos com mulheres. Mas é uma retratística bastante mais ampla. Incluiria  os animais. Ele retratou incrivelmente os bichos. Ficou conhecido pelos pássaros, mas era um grande retratista de peixes e crustáceos e de vegetais. Ele de fato encarava um coqueiro, uma palmeira para retratá-la praticamente como se tivesse diante de uma pessoa, com a mesma complexidade. Destacaria a extrema inventividade e caráter experimental que ele cultivou na pintura dele ao longo de tantas décadas de trabalho ininterruptas como um operário da arte, como ele gostava de falar”, diz Clarissa Diniz.


Exposição individual Primeiro a fome, depois a lua, realizada no ano passado, na Galeria Marco Zero, em Boa Viagem. Foto: Dayvson Nunes/Divulgação

Clarissa também externava ao pintor a vontade de organizar sua obra literária, jornalística e crítica. “É uma produção vastíssima, de décadas, que também acompanha toda a obra visual dele”. Mas a curadora e amiga esbarrava na humildade do  ipojucano. “José Cláudio dizia: ah, será?! Ele tinha um jeito muito singular de expressar sua humildade duvidando da relevância de qualquer ato público do seu trabalho, o que era muito curioso”.

“A trajetória artística de José Cláudio demonstra que a vida não deve ser medida por hierarquias de valor, pois os ambientes mais humildes das periferias do mundo são tão importantes para a formação do ser humano quanto os espaços institucionais mais consagrados ou intelectualizados. Sempre muito originais, poéticas e plasticamente sublimes, suas obras de arte transmitem um olhar sensível sobre a vida”, escreveu o jornalista e curador Júlio Cavani na orelha do perfil biográfico Aventuras à mão livre (Cepe Editora, 2019). A obra, segundo Cavani, narra um romance de aventuras baseado nas memórias do pintor, reveladas em diversas entrevistas. “Funciona mais como um romance de aventuras, do tipo que José Cláudio sempre gostou de ler desde criança, do que como uma pesquisa detalhista, jornalística ou teórica”. 

Para Bruno Albertim, José Cláudio foi uma espécie de Picasso pernambucano. “Homem brilhante, cronista genial de múltiplas facetas, de um humor infantil até o fim da vida. [Francisco] Brennand (1927-2019), que era muito amigo dele, me disse que ninguém capturou tão bem a gente, as cores, as festas, enfim, o povo do Recife, Olinda, Pernambuco, como José Cláudio. Ninguém capturou a luz do Recife como ele. Sorte nossa ter vivido no tempo de Zé Cláudio”, declara o jornalista, ressaltando o figurativismo do gênio da pintura pernambucana.  “Uma pintura que não se curvou à ditadura do abstracionismo, da escola concreta. Foi discípulo de mestres como Di Cavalcanti (1897-1976) e se igualou a ele. Sua visão permanente de cronista do mundo fará muita falta”, sintetiza Albertim. 

 
Confira os últimos textos assinados pelo pintor na coluna Matéria Corrida.

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