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Festival de Veneza: uma vitrine de méritos para além dos premiados

82ª edição do evento de cinema acenou com a urgência política que os jurados, presididos por Alexander Payne, optaram por não ressaltar

18 de Setembro de 2025

Father Mother Sister Brother, de Jim Jarmusch, vence o Leão de Ouro

Father Mother Sister Brother, de Jim Jarmusch, vence o Leão de Ouro

Foto Divulgação

Nem o monstro de Mary Shelley, nem a violência monstruosa de adoradores de alienígenas na criatividade quase juvenil de Yorgos Lanthimos. Havia alguma esperança na trama do pacato pai de família e funcionário dedicado, que pode se tornar um ser horrível quando confrontado com o desemprego na comédia de absurdos de Park Chan-wook. Mas Guillermo Del Toro com seu Frankenstein em tempos de IA, Lanthimos e seu retrato de um mundo – um Estados Unidos se se quiser – em decomposição com Bugonia ou o diretor coreano com o título autoexplicativo No Other Choice, não foram reverenciados com prêmios na noite de encerramento da 82ª Mostra de Cinema de Veneza. Em um festival marcado pelas alegorias do fim dos tempos e o horror do real, preferiu-se a dramática familiar sutil de Jim Jarmusch e seu Father Mother Sister Brother para o principal prêmio. Um Leão de Ouro com jeito de ajuste conciliador.

Premiação nem sempre é o melhor parâmetro para analisar a potência e representatividade de uma vitrine mundial de filmes, mas indica uma abordagem possível. No caso do júri veneziano, parece ter havido um esforço particular para destacar no atacado o que foi menos interessante do painel, ainda que no varejo um ou dois acertos atentem ao contexto de atualidade que a seleção, boa diga-se, buscou.

O caso mais emblemático sugere também ter sido o nó górdio nas decisões do colegiado, do qual fazia parte a atriz Fernanda Torres. Desde o início do evento, o longa tunisino The Voice of Hind Hajab, de Kaouther Ben Hania, apontava para a controvérsia por abordar de modo ficcional o fato da menina palestina do título que agonizou no carro dos tios, atacado pelo exército israelense. Não apenas pela temática tensa no momento, o drama se impôs também pelas qualidades sobre os demais concorrentes, num registro forte e emotivo. Daí ser lícito questionar a opção do time de contemplá-lo não como o melhor, mas com o Grande Prêmio do Júri, segundo na hierarquia, vá lá, a partir das palavras de Alexander Payne. Presidente do grupo de jurados, o diretor norte-americano havia sinalizado na coletiva de imprensa que os filmes seriam analisados somente pelo prisma do cinema, se antecipando a uma expectativa de cunho político. Ao final, os comentários entre jornalistas e demais profissionais presentes em Veneza, era de que não se bancou a coragem do diretor artístico do festival Alberto Barbera em escalar o filme para a competição principal.

Essa percepção vem de encontro a um placar igualmente surpreendente de escolhas, para não dizer decepcionante em alguns casos, conforme os prêmios eram anunciados. Na avaliação digna se pode incluir a Coppa Volpi de melhor intérprete masculino para o veterano de elogios Toni Servillo, no papel de um presidente italiano prestes a deixar o cargo em La Grazia, e o Prêmio Especial do Júri para o documentário Sotto le Nuvole, de Gianfranco Rosi. Detentor de um Leão de Ouro em 2013, este é outro representante da Itália. Inevitável na tradição dos festivais o reconhecimento às pratas da casa, ainda que, reafirme-se, são opções defensáveis.

Os demais prêmios tendem a destoar da levada geral da competitiva, marcada pelo tom da urgência. Embora traga a problemática atualíssima da precarização como pano de fundo, À Pied d’Oeuvre, da francesa Valérie Donzelli, se estrutura mais como drama pessoal, intimista. O reconhecimento do roteiro para a diretora e seu parceiro Gilles Marchand tem valor de qualidade, mas nem tanto de originalidade e ousadia ressaltados em trabalhos como o do realizador coreano. Mais uma vez, parece uma escolha de acomodação de pontos de vista. Nem isso se pode dizer da direção de Benny Safdie por The Smashing Machine, um Leão de Prata que exala um senso de compadrio entre profissionais do cinema norte-americano. Um empurrão de Payne para o ator e diretor que faz aqui estreia solo sem a companhia do irmão Josh. Por fim, a opção entre as mais surpreendentes pela atriz Xin Zhilei em The Sun Rises On Us All veio confirmar um olhar do júri pela carga dramática – e nesse caso, melodramática – mais de cunho social do que político.

No conjunto, tratou-se de uma seleção competitiva com mais méritos do que decepções, fato considerável quando se ambiciona um painel de 21 produções. O princípio de um festival da grandeza de Veneza, assim como seus pares Cannes e Berlim, não reside apenas na disputa oficial, mas também na oportunidade de convivência entre novatos e mestres, descobertas e o talento certo. Nesse sentido, propiciou, por exemplo, o reencontro com o maestro italiano Marco Bellocchio, presente no calendário do Lido de Veneza com o projeto alternativo Portobello. A série é dedicada ao popular apresentador de TV Enzo Tortora, preso e condenado injustamente nos anos 80 por suposta ligação com a Camorra, a máfia napolitana. Foram exibidos dois dos seis episódios, em que se acompanha a fama e prisão do profissional, mais tarde inocentado, mas já com carreira destruída. A estreia está prevista para o próximo ano no canal de streaming HBO Max.  

ORLANDO MARGARIDO, jornalista, crítico de cinema e artes plásticas

Veja o trailer de Father Mother Sister Brother, Jim Jarmusch:

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