Mirante

Mexeu com uma, mexeu com um país

TEXTO Débora Nascimento

19 de Fevereiro de 2018

Documentário 'She’s beautfil when she’s angry' narra a luta das feministas a partir dos anos 1960

Documentário 'She’s beautfil when she’s angry' narra a luta das feministas a partir dos anos 1960

FOTO Divulgação

Mexeu com uma, mexeu com todas. Esta foi uma das frases que circularam na mídia e nas redes sociais no ano passado, virou hashtag e título de um documentário de Sandra Werneck. Nele, a diretora carioca reuniu depoimentos de sete mulheres, entre desconhecidas e famosas, como Joanna Maranhão e Luíza Brunet, que relataram as violências de companheiros, conhecidos e até desconhecidos. Dez anos antes, a cineasta já havia abordado uma outra temática voltada ao universo feminino, mas bem menos discutida do que deveria, a gravidez na adolescência. Em Meninas, ela mostra os problemas enfrentados por quatro garotas: Evelyn, 13 anos, Luana, 15, Edilene, 14, e Joice, 15 anos, que estão grávidas – estas duas últimas simultaneamente do mesmo homem, Alex, 21 anos, desempregado. O filme inicia com imagens de uma fila imensa de garotas num posto de saúde à procura de testes de gravidez. Embora as histórias contadas sejam de jovens residentes em bairros periféricos e favelas do Rio de Janeiro, a gestação precoce é um problema que afeta todo o país, principalmente o Nordeste.

De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas, agência da Organização das Nações Unidas, um em cada cinco bebês que nascem no Brasil é filho de mãe adolescente. Três de cada cinco delas não trabalham nem estudam, sete em cada dez meninas são afrodescendentes e aproximadamente metade delas mora na região nordestina. Embora o documentário seja de 2006, a realidade persiste, porque esses números são de 2017. As meninas pobres continuam a engravidar e, ao contrário das filhas dos ricos, não têm acesso a processos abortivos seguros nem suporte para continuarem estudando.

Como há uma gritante falta de creches (uma reinvindicação primordial das feministas, como mostra o documentário She’s beautfil when she’s angry) no país, muitas dessas meninas deixam de frequentar a escola e, sem formação adequada, não conseguem competir no mercado de trabalho, ficando relegadas a trabalhos informais ou com baixíssima remuneração. Se trabalharem como empregada doméstica, dificilmente conseguirão ter tempo e disposição para estudar à noite, enfrentar transporte público e a violência nas ruas, como cantou Rincon Sapiência em A volta pra casa. Tentar ascender economicamente se torna, na prática, um sonho impossível.

Nesse contexto, o companheiro, muitas vezes também adolescente, não é uma presença que dê apoio emocional e financeiro necessários à mãe prematura. No próprio documentário Meninas, os rapazes são ou imaturos ou inadequados.

Traficante, o pai da filha de Evelyn foi morto num tiroteio, quando a bebê tinha apenas quatro meses. Moradora da Rocinha, Evelyn, que conheceu o rapaz num baile funk, relata o fascínio das garotas pelos membros do tráfico, porque eles demonstram ter poder e dinheiro. Já Luana conta que, na sua comunidade, as garotas que não querem envolvimento com esses rapazes, não devem vacilar, porque podem ser atacadas sexualmente, inclusive em estupros coletivos. Em 2016, foram 3.526 ocorrências em todo o país, uma média de 10 por dia.

Os dados da gravidez adolescente no Brasil só demonstram que os governos perderam o andar da carruagem. Não há projeto social que dê conta de um crescimento populacional desse porte. Hoje o Brasil tem 208 milhões de habitantes – 25% vive abaixo da linha da pobreza. Em 20 anos, a população aumentou em mais de 40 milhões de pessoas, uma Argentina inteira. Não há desenvolvimento econômico, social e urbano acompanhando essa explosão demográfica.

Mas essa discussão não está na boca dos políticos, que são, em sua esmagadora maioria, homens brancos legislando em causa própria – agronegócio, empresas, corrupção, igrejas. E quando decidem discutir questões relativas ao universo feminino, estão mais preocupados em ganhar a simpatia dos eleitores reacionários e atender às demandas conservadoras das religiões que ocupam o poder legislativo, religiões estas também lideradas por homens. O corpo feminino e a vida das mulheres, mais uma vez, permanecem servindo de moeda de troca para negociatas do falocentrismo – algo abordado na fantástica série The handmaid`s tale, que será lançada no Brasil em março, no Paramount Channel.

Vivendo num país que deixou de eleger uma mulher, para colocar em seu lugar um assediador de mulheres, o diretor norte-americano Michael Moore, no documentário O invasor americano (disponível no Youtube), mostra as viagens que fez a diversos lugares em busca de bons projetos para os Estados Unidos. Na França, descobriu que a merenda escolar tem cardápio variadíssimo, típico de restaurante luxuoso. Na Itália, soube que os patrões costumam pagar bem os seus subalternos, porque não veem sentido em lucrar mais do que lucram, explorar seus empregados e destruir o ambiente harmonioso no trabalho. Na Noruega, encontrou nos presídios campos para esportes, estúdio de gravação, biblioteca e detentos com as chaves de suas celas/residências limpas, arejadas, equipadas com diversos móveis, frigobar, TV, DVD... O país tem um índice baixíssimo de reincidência de crimes.

Ao final do filme, Moore leva em consideração o motivo pelo qual esses lugares deram certo: as mulheres são tão respeitadas e têm tantas posições de liderança quanto os homens. Está certo em sua tese, mas, na realidade, O invasor americano teve como objetivo uma nada sutil mensagem de apoio à candidatura de uma mulher à presidência dos EUA, Hillary Clinton. Com isso, dois pontos relevantes foram ignorados pelo diretor: esses lugares bem-sucedidos não têm histórico de escravidão e uma superpopulação – países muito densos demograficamente tendem a sofrer com desigualdade social, simplesmente porque há um exército de reserva, uma massa de desempregados que se submete a trabalhar sob baixos salários e péssimas condições de trabalho. O exemplo mais gritante é a China, o paraíso do trabalho escravo, e suas 1,3 bilhões de pessoas. Então, a quem interessa que o Brasil também tenha uma explosão demográfica? Os 12 milhões de desempregados já vêm sendo usados como motivo para depreciar as relações trabalhistas, com a desculpa de que isso vai gerar mais empregos.

Para conscientizar as meninas e os meninos sobre a importância de se valorizar a mulher na sociedade, a escola poderia funcionar como esse canal de informação, orientando sobre sexualidade, contribuindo para evitar a gravidez precoce, o bullying contra transgêneros e também doenças sexualmente transmissíveis (a exemplo da Aids, que vem aumentando no país, como relatado no dossiê publicado na edição de dezembro da Continente). Mas a educação sexual, ignorantemente chamada pelos detratores de “ideologia de gênero”, está banida do ensino, assim como discussões de questões sociais e políticas estão prestes a cair na fogueira do projeto “Escola sem Partido”. Ou seja, querem transformar os jovens numa massa descerebrada. Afinal de contas, é a juventude que costuma ser mais rebelde, para o bem ou para o mal.

Semana passada, discuti algumas dessas questões com pessoas conservadoras. Os que são contra a orientação sexual nas escolas dizem que cada família deve fazer a sua orientação, mas se esquecem dos filhos das famílias desestruturadas.

Em algum momento, mencionei o tratamento dado às mulheres nos países do Oriente Médio e na Índia. Uma mulher, então, comentou: “É a cultura deles”. Não deveríamos tratar como “cultura deles” casos de desrespeito aos direitos humanos, como casamentos com menores de idade, “haréns”, sequestros, tráfico de mulheres e estupros coletivos (como há na Índia e no tráfico carioca). Institucionalizado ou não, isso tudo é tara sexual machista.

Nesse contexto obscurantista, a arte, com seu poder formador e transformador está sendo reduzida. Boa parte da juventude da periferia não tem acesso a opções de cultura, como cinema, teatros, bibliotecas, ensino de música, uma variedade musical para que não fique apenas entre o breganejo e o funk – o YouTube e Spotify não ajudam muito nesse quesito, pois criam “bolhas” dentro deles.

Embora ainda use o corpo feminino como objeto, o funk ampliou o seu escopo com a chegada de mulheres com discurso de empoderamento, mas o universo das meninas da periferia não pode ficar restrito ao shortinho e ao biquíni de fita isolante de Anitta. Ao final da gravação do clipe de Vai, Malandra, a cantora voltou à sua mansão num condomínio fechado na Barra da Tijuca, mas jovens das periferias, que buscam nela uma referência, voltaram às comunidades, para continuarem a ser as presas mais vulneráveis do machismo.

Evelyn, Luana, Edilene, Joice, as meninas do documentário de Sandra Werneck, estão bem. Uma década depois, com 20 e poucos anos, podem ser vistas sorridentes em fotos no Facebook com seus primogênitos e mais outros filhos. Conseguiram escapar do destino cruel de outras garotas, que caíram no crime, foram presas (muitas vezes arbitrariamente) ou mortas.

Como a conta um dia chega, um país que não respeita suas mulheres, não respeita a si próprio e acaba perdendo o respeito do resto do mundo, afundando cada vez mais no subdesenvolvimento. Mexeu com uma, mexeu com um país.



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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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