Mirante

É possível separar o assediador de sua obra de arte?

TEXTO Débora Nascimento

06 de Dezembro de 2017

Ilustração da série 'Louie'

Ilustração da série 'Louie'

Imagem Divulgação

No dia 12 de maio de 2014, foi ao ar, na TV norte-americana, o terceiro episódio da quarta temporada de Louie. Intitulado So did the fat lady, o episódio trouxe uma cena que foi apontada como “os sete minutos mais brutalmente sinceros da televisão neste ano”. Na narrativa, Louie conhece Vanessa, uma mulher que está interessada nele e faz questão de não esconder isso. Bem-humorada e perspicaz, ela conquista a sua atenção e daí iniciam uma conversa que se prolonga numa caminhada. Ele a trata bem, mas não corresponde às investidas, mesmo havendo uma clara conexão entre ambos. Em certo momento, Vanessa menciona que está gorda e Louie nega a afirmativa. Começa, então, o diálogo, quase monólogo, em que ela expõe com franqueza o que pensa sobre aquela situação.

Premiado com um Emmy de melhor roteiro, esse episódio atestou o talento do criador, diretor, roteirista e protagonista da série, o comediante Louis CK. Desde 2010, quando Louie estreou, a carreira do humorista estava em curva ascendente e seria coroada, neste final de ano, com o lançamento do seu primeiro filme para o cinema, I love you, daddy. No entanto, no dia 9 do mês passado, o New York Times publicou uma bomba: cinco mulheres revelaram que CK, em diferentes ocasiões, se masturbou ou tentou se masturbar na frente delas.

Naquele 9 de novembro, Louis CK faria uma participação no programa de Stephen Colbert, mas foi cancelada, assim como a estreia mundial do longa-metragem dirigido por ele. A Fox anunciou a retirada de seu nome das séries Better Things, Baskets, One Mississipi e The Cops. A HBO, a Netflix, a Universal e Illumination encerraram a parceria com o comediante. 

Diante dessa avalanche de retaliações, ele está tentando reverter a situação, escreveu uma carta pública pedindo desculpas a todos e especificamente às cinco mulheres, que são também humoristas. Elas, inclusive, na época, meados dos anos 2000, acharam que ele estivesse brincando quando perguntou se poderia pôr o pênis para fora e se masturbar diante delas.

Louis CK, um dos mais queridos humoristas da atualidade, não somente decepcionou suas vítimas, mas também seus fãs ao redor do mundo e outros colegas de trabalho. O comediante Marc Maron chegou a dizer, em seu podcast, que estava sinceramente arrasado com a notícia. Afinal, além de brilhante, CK, que começou sua carreira fazendo stand-ups em boates, era mais um motivo de orgulho da categoria, pois estava trilhando o caminho de sucesso percorrido por outros nomes da comédia norte-americana, como Larry David, Jerry Seinfeld, Bill Cosby, partindo do palco para a TV.

O mais contraditório é que esse homem, que cometeu atos ultrajantes, foi o mesmo que escreveu o citado diálogo vencedor do Emmy, que, de tão sincero, profundo e honesto à alma feminina, parece ter sido redigido por uma mulher. Esse paradoxo entre o Louis humanista e o Louis tarado reforça uma antiga questão: é possível separar o artista de sua obra? É possível continuar a admirar o trabalho de um artista, mesmo sabendo de um comportamento aviltante? É possível dar uma segunda chance, perdoar e esquecer o que foi feito?

Recentemente, revelações de assédio de famosos tomaram conta do noticiário e impactaram o senso crítico do público. Os recorrentes assédios de Harvey Weinstein, revelados na New Yorker pelo jornalista Ronan Farrow (filho de Mia), tiveram muita repercussão, mas não atingiram o terreno da afetividade do fã. Poucos, inclusive, sabiam da existência do poderoso produtor hollywoodiano. E Weinstein habitava um ambiente já odiável, o dos empresários, o de gente que vive em função de dinheiro, lucros, vantagens, negociatas. Mas o lugar da arte é mais sagrado, abrange noções de referência, reverência, símbolos, representatividade. Errar, nesse campo, significa amplificar o erro.

Vejamos o caso do citado Bill Cosby. Mestre absoluto do stand-up e ídolo de incontáveis comediantes, sua reputação veio abaixo com a revelação do estupro de dezenas de mulheres dopadas por ele. Isso destruiu sua imagem de forma indelével e exatamente no crepúsculo de sua vida, quando, em tese, não dá mais tempo de reverter um erro inaceitável. No dia 12 de julho deste ano, Bill Cosby completou 80 anos. Não houve alarde da imprensa nem comemoração da efeméride. A quebra de sua imagem ainda levou consigo o orgulho que provocava nos negros norte-americanos, numa sociedade extremamente racista.

Efeito semelhante aconteceu com Kevin Spacey. O ator, protagonista de House of cards, teve todo o período de sucesso da série para sair do armário, mas fez o desserviço à comunidade LGBT de só revelar que era gay em meio à notícia dos recorrentes assédios sexuais, inclusive contra o ator Anthony Rapp, quando este tinha 14 anos, e membros da equipe da badalada série. A Netflix cancelou a produção, que terá a sua última temporada em 2018 sem Spacey e com a atriz Robin Wright como protagonista.

Fãs machistas já anteveem que a solução será um fiasco, assim como foi a substituição de Charlie Sheen por Ashton Kutcher em Two and a half men. Trunfo cômico dessa série entre 2003 e 2011, Sheen foi acusado de violência doméstica e, desde então, vem fazendo apenas participações esporádicas na TV. Para enterrar de vez a carreira do ator, no mês passado, foi divulgado que ele, aos 19 anos, abusou sexualmente do ator Corey Haim, na época com 13 anos, durante as filmagens de A inocência do primeiro amor (1986).

Embora todas essas acusações sejam graves, as que envolvem menores de idade são sempre as mais revoltantes. Por isso, causou uma enorme decepção a revelação, em novembro, do assédio feito por Dustin Hoffman. A hoje escritora Anna Graham Hunter tinha 17 anos quando foi estagiária no set de A morte de um caixeiro-viajante (1985). Segundo ela, numa ocasião, ele pediu pra ela dar uma massagem nos seus pés. “Ele flertou abertamente comigo e apalpou meu bumbum, falou sobre sexo comigo. Em uma manhã, eu fui até o seu camarim para pegar seu pedido de café da manhã. Ele olhou para mim e sorriu, dizendo: ‘Quero um ovo cozido, e um clitóris bem macio’. Todos os seus amigos riram disso. Eu saí sem falar nada e fui ao banheiro chorar”.

Em meio à repercussão, Hoffman emitiu nota à imprensa: “Eu tenho o maior respeito do mundo por mulheres e me sinto terrível que qualquer coisa que eu possa ter feito a tenha colocado em uma situação desconfortável. Eu sinto muito. Isso não reflete quem eu sou”.

A frase “Isso não reflete quem eu sou” demonstra a imagem que tem de si próprio e que vem projetando há 50 anos para o mundo com a contribuição dos papéis interpretados por ele em filmes como Tootsie, Rain man, Papillon... Como dissociar esse homem, de atitude repugnante, desses personagens e do seu talento como ator? A maior atuação de Hoffman talvez seja a desse Hoffman que todos, principalmente as mulheres, aprenderam a amar durante cinco décadas.

Com o alarido, foi resgatada, ainda em novembro, uma entrevista que Meryl Streep concedeu à Time há 38 anos. Nela, relatou um abuso cometido por Hoffman. A atriz contou que o conheceu quando fez uma audição para um espetáculo da Broadway, dirigido pelo ator. “Ele chegou até mim e disse: ‘Eu sou Dustin Hoffman’, e colocou a mão no meu seio. 'Um porco desagradável', eu pensei”, afirmou Meryl.

Dustin Hoffman, na época, já havia conquistado o seu espaço em Hollywood após atuar nos filmes A primeira noite de um homem (1967) e Midnight cowboy (1969). Anos depois, como ironia do destino, os atores protagonizariam Kramer vs. Kramer (1979), que projetou a carreira de Meryl, hoje a atriz mais indicada ao Oscar. A biografia Her again: becoming Meryl Streep, de 2016, desvelou que, durante as filmagens do drama do divórcio de um casal, Hoffman deu um inesperado tapa no rosto da atriz, deixando uma marca vermelha.

Sabendo desse passado misógino do ator, qual o papel do público agora? Neste ano, a plateia se viu mais uma vez nesse dilema, mas com um ator menos renomado que Hoffman. Um dos filmes concorrentes ao Oscar, o fantástico Manchester à beira-mar teve sua carreira no cinema prejudicada pela presença de Casey Affleck, que interpretou o atormentado protagonista do drama. O ator havia sido processado por assédio sexual cometido nas filmagens de Eu ainda estou aqui, controverso documentário que dirigiu em 2010. O filme, que supostamente registra um surto de Joaquin Phoenix, ganhou mais notoriedade devido às acusações contra o irmão caçula de Ben Affleck. O acusado fez um acordo com as mulheres e as ações foram retiradas da justiça.

Por fim, a cativante atuação de Casey Affleck em Manchester à beira-mar rendeu a ele o Oscar de Melhor Ator. A Academia de Ciências e Artes Cinematográficas foi criticada pela escolha, reacendendo a discussão de ser um ambiente machista e sexista, que abriga, em sua história, alguns dos mais famosos casos de assédio sexual. Muitos desses assediadores clássicos, como Hitchcock, se beneficiaram do ocultamento de seus atos. Na época, o mundo era mais machista ainda, desconhecia o conceito de assédio sexual e não havia uma disseminação rápida das informações. Os rumores circulavam no próprio meio e eram abafados, ali mesmo, pelos estúdios.

Hoje, se ainda não é possível erradicar um crime desse nível num território predominantemente masculino, beira o impossível encobri-lo após a propagação das ideias feministas. Meryl Streep, inclusive, é uma atriz que representa bem essa nova geração de mulheres no cinema, que inclui Jane Fonda, Barbra Streisand e Faye Dunaway.

Mas a balança da relação de poder continua desigual e costuma beneficiar seus astros veteranos. A denúncia de agressão de Johnny Depp contra a então esposa Amber Heard não surtiu efeito em Hollywood. Para 2018, estão previstos, pelo menos, cinco filmes estrelados por ele. Um desses é Animais fantásticos, os crimes de Grindelwald.

Questionado sobre a presença de Depp, o diretor David Yates afirmou: “Tem um problema no momento, no qual muitas pessoas estão sendo acusadas de coisas por várias vítimas e isso é surpreendente e assustador. Com Johnny, parece que havia apenas uma pessoa que falou sobre ele e afirmou algo. Eu posso apenas dizer que o homem que vejo todo dia é cheio de decência e bondade, e é isso o que eu vejo. Quaisquer acusações sobre ele lá fora não condizem com o tipo de ser humano com quem estou trabalhando”. Na sua extrema parcimônia (“uma pessoa”, “afirmou algo”), Yates não foi somente cauteloso, fulanizou o acontecimento e insinuou o lema “se eu não vi, não aconteceu”.

Uma britânica criticou, no Twitter, a permanência do ator na nova franquia de Rowling. “Se eu entendi direito, o ator que interpretou Crabbe, um personagem de menor importância, foi demitido de Harry Potter por problemas com drogas. Johnny Depp, que abusou de sua mulher, ganha um papel maior em seus filmes? Me corrija se eu estiver errada, @jkrowling”. A escritora bloqueou a fã.

Para o fã, que cresceu vendo Johnny Depp em dezenas de filmes, não é fácil ver destruída a imagem de seu ídolo, levar em consideração a voz de uma novata em detrimento da dele. Da mesma forma, não é fácil desconstruir a imagem que se tem de John Lennon e levar em consideração a voz de sua primeira esposa, Cynthia Powell. Filho de seu primeiro casamento, Julian chegou a questionar a mãe: “Papai está sempre dizendo às pessoas que se amem, mas por que ele não me ama?”. Também já afirmou em entrevista que considerava Paul McCartney mais seu pai do que o pai de sangue.

Lennon não foi um pai tão abominável quanto o ator alemão Klaus Kinski, ou totalmente negligente, como o cantor Belchior, que fez como Tua cantiga de Chico Buarque e largou mulher e filhos sem pagar, desde então, a pensão alimentícia, fugindo com a amante e passando a viver num autoexílio romantizado pela maioria dos fãs. Mas o ex-beatle chegou a ser violento com Cynthia. E explicitou isso numa entrevista à Playboy.

O que fazer? Deixar de idolatrar John Lennon? Tarefa bem difícil para qualquer fã dos Beatles. Talvez se essa informação tivesse sido divulgada antes, no início da carreira da banda, a ideia que se formou dele poderia ser outra. Mas esses rompantes de agressividade, provavelmente fomentados pelo abandono dos pais, eram abafados pelo empresário Brian Epstein, pela EMI e pelo séquito que circulava em torno do quarteto.

O que acontece é que a posição alcançada por um artista, a partir de sua obra, acaba ofuscando suas atitudes questionáveis. No final, a obra de arte costuma vencer. Pode não redimir, mas ultrapassa a vida e o estilo de vida do próprio artista. A questão recorrente nisso tudo é que os erros, como agressões e assédios morais e sexuais, vêm sendo cometidos, em sua acachapante maioria, por homens.

A propósito, é impossível ignorar que a maior parte do que há de terrível no mundo seja obra dos homens: as guerras, a escravidão, os sequestros, as leis injustas, o desmatamento, a poluição dos mares e do ar, os assassinatos, a corrupção, o terrorismo, o abuso de poder, os roubos, os estupros, os assédios...

Vai ficando cada vez mais claro que o sonho de um mundo melhor, aquele imaginado por John Lennon, nunca será concretizado sem que, nos mais diversos setores da sociedade, haja a participação efetiva de mulheres que ajam como Vanessa, criada por Louis CK. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

 

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