Memória

O disco ‘kavernista’ de nossa música

Os 50 anos do lançamento-recolhimento do álbum ‘Sociedade da Grã Ordem Kavernista apresenta: sessão das 10’, com Raul Seixas, Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e Edy Star

TEXTO Leonardo Vila Nova

21 de Julho de 2021

Detalhe da capa com o quarteto. Edy Star (último da direita) é o único vivo

Detalhe da capa com o quarteto. Edy Star (último da direita) é o único vivo

Foto Reprodução

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What is this?” A pergunta, feita em tom de perplexidade, veio escrita em um telegrama anexado a um certo LP que parecia não ter sido muito bem-compreendido. A questão que poderia ser traduzida como “Que porra é essa?” foi responsável por retirar imediatamente o disco de circulação. E após 50 anos do álbum, continua sem resposta. Na verdade, um sem fim de teorias, boatos e controvérsias rondam esse trabalho, contribuindo ainda mais para a sua incompreensão – e até para uma certa mística em torno dele. Estamos falando de A Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: sessão das 10

Poderíamos dizer ainda que a pergunta foi uma resposta enviada ao Brasil, pela matriz da gravadora CBS, aos responsáveis por aquela “ousadia” musical (Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Edy Star). O ano era 1971, e o disco, que nasceu “maldito”, completa este mês meio século de lançamento (e recolhimento). Para não ter que repetir o grande título, o chamemos aqui de Sociedade Kavernista

O álbum coletivo reuniu Raul, Sérgio, Edy e a cantora Miriam Batucada, mas foi logo retirado de catálogo, tamanho o estranhamento causado por quem o ouviu. E virou lenda. Dos quatro, Edy Star é o único kavernista ainda vivo hoje – tem 83 anos. Por isso, vamos contar um pouco da história do disco tendo como elo as memórias de Edy, que, em conversa com a Continente, resgatou alguns episódios da empreitada, além de contestar algumas histórias mal contadas. 


Edy Star hoje, na casa dos 80. Foto: Gal Oppido/Divulgação

Em 1971, Raul Seixas ainda não era conhecido e, nessa época, trabalhava como produtor musical na CBS. Passaram por ele discos de Jerry Adriani, Leno e Lilian, Renato e Seus Blue Caps, Diana, entre outros. Edy era amigo de Raul desde a adolescência, em Salvador, quando eram sócios do Elvis Rock Club. Cantor, bailarino, performer, artista plástico, ator e uma série de outras coisas, Edy foi o primeiro artista assumidamente gay no Brasil, tendo inaugurado em terras tupiniquins o estilo glam na música. Estava no Rio de Janeiro a convite de Raul, que havia produzido seu compacto, com Aqui é quente, bicho! e Matilda (versão de Leno para o calypso de Harry Belafonte). 

O capixaba Sérgio Sampaio chegou até Raul quando foi aos estúdios da CBS, acompanhando, ao violão, o músico Odibar, que queria mostrar ao baiano seu trabalho e, quem sabe, descolar um contrato com a gravadora. “Raul não gostou. Só que, na passagem pelo corredor, Sérgio falou a Raul que queria mostrar umas coisas suas. Ele foi no outro dia e apresentou Coco verde. Raul gostou e disse pra gravar. A partir daí, Raul ficou muito amigo de Sérgio, que começou a frequentar a CBS, assim como eu já frequentava”, conta Edy. 

“Nós estávamos todas as tardes na CBS, na sala de Raul. Eu era um vagabundo. Sérgio, um vagabundo. Raul... bem... ele era também, mas tinha esse trabalho lá.” Eis que o trio, cheio de ideias mirabolantes na cabeça, resolve gravar um disco em conjunto. Para Raul, ainda faltava uma pessoa no time. Ele queria uma mulher. Pensou-se em Diana. Depois, em Lena Rios. Foi Edy quem chegou com o nome da paulista Miriam Batucada. “Eu morava no Botafogo e vi numa boate a Miriam, que ainda não era conhecida do público do Rio.” Miriam topou e o grupo estava fechado. 

A proposta inicial era que cada um dos três rapazes apresentasse quatro composições para integrar o disco. Entre idas e vindas à Censura Federal, as canções de Edy eram sempre vetadas. Diante disso, o Relações Públicas da CBS, Coutinho, interveio: “Eles não gostam de Edy. Então, não manda mais música com o nome de Edy”. E assim foi feito. No fim das contas, sobraram nove músicas, oito composições de Raul e de Sérgio e uma de Antonio Carlos e Jocafi. 

WHAT IS THIS?
Edy tem uma relação conflituosa com o Sociedade Kavernista. Em certos momentos, parece orgulhar-se da originalidade do trabalho; noutros, maldiz o disco, que, segundo ele, nunca lhe rendeu nada até hoje. “Eu falava mal do disco mesmo, mas tem um contexto pra isso. Como o disco foi retirado do catálogo imediatamente e ele não ia acontecer porra nenhuma, acabou não servindo pra ninguém. Foi um disco execrado, que todo mundo esqueceu.” 

E por que essa “repulsa” tão grande? Primeiro, porque Sociedade Kavernista era diferente de tudo o que já tinha sido feito até então. Nem os tropicalistas ousaram tanta galhofa num único disco. O álbum é, de uma ponta a outra, recheado de deboche, anarquia e provocação, com músicas que escracham os padrões da sociedade carioca da época, a ilusão capitalista do migrante que vai ganhar a vida na “Sul Maravilha”, o romantismo piegas, entre outras graças. “Naquela época, só se fazia música de protesto, ou samba-canção chorando dor de corno, ou rock que só falava em amor. Então, fizemos um disco pra nos divertirmos, um disco pra dizer absolutamente NADA”, rememora Edy. 

Raul Seixas dividiu a produção do disco com Mauro Motta. O húngaro Ian Guest participou sendo creditado como arranjador. A banda que tocou foi composta por Renato Barros (guitarra), Paulo César Barros (baixo), Lafayette (órgão) e Tony Pinheiro (bateria). Nos coros, Luiz Carlos Ismail, Leno e integrantes dos Golden Boys e de Renato e Seus Blue Caps. Como referências para o experimentalismo empreendido no álbum. são citadas as influências de Sgt. Peppers and Lonely Hearts Club Band (Beatles) e Freak out! (Frank Zappa). 

 
Capa e contracapa do disco. Imagens: Reprodução

Um disco nonsense, poderíamos resumir. A primeira voz que se ouve é justamente a de Edy: “Respeitável público, a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista pede licença para vos apresentar o maior espetáculo da Terra!”. A seguir, ao longo de 29 minutos, as faixas se sucedem, entremeadas por vinhetas sem nenhum nexo, porém, divertidíssimas. O álbum encerra com um sugestivo som de descarga numa privada. No meio disso tudo, chorinho, baião, seresta, xaxado, calypso, rock, samba e o que mais desse na veneta dos kavernistas

Raul e Sérgio assumem o protagonismo do disco, cantando a maior parte das músicas. Edy e Miriam cantam duas, cada um. Na voz de Edy, estão Sessão das 10 (que viria a ser regravada por Raul, em 1974, no disco Gita) e Eu não quero dizer nada. Já Miriam foi de Chorinho inconsequente e Soul Tabarôa (Antonio Carlos/Jocafi). 

O disco foi gravado em 15 dias. Ao ser lançado – tendo sido, primeiramente, enviado aos veículos de imprensa –, ganhou a simpatia de poucos gatos pingados. “Alguns acharam engraçadinho. Outros não entenderam porra nenhuma. O pessoal do underground adorou.” O disco teve boa recepção d’O Pasquim – em charge de Henfil e em nota de Luiz Carlos Maciel, do jornal Última Hora, em coluna de Torquato Neto, “mas foi solenemente ignorado, por exemplo, pela Rolling Stone”, estranha Edy. A gravadora é que não gostou muito. 

Ao regressar de mais uma viagem rotineira ao exterior, o executivo-chefe da CBS, Evandro Ribeiro, solicita uma reunião com Raul, Sérgio e Edy. Ao encontrá-los, mostra-lhes o disco, com a tal da pergunta anexada – “What is this?”. A matriz da gravadora não havia entendido absolutamente nada do que vinha a ser aquele álbum. Três semanas depois, por ordem da CBS, o disco seria recolhido das lojas e cairia no limbo por décadas. Edy conta que os três nada falaram diante de Evandro. “A gente ia dizer o quê?” Em seguida, foram para a sala de Raul e queimaram um baseado. 

CONTROVÉRSIAS
Essa história acima vem sendo contada, ao longo dos anos, de forma muito enviesada, com acréscimos de episódios que não se confirmam; aliás, como quase todas as histórias que se contam sobre a Sociedade Kavernista. Muitas controvérsias envolvem o álbum. O episódio com Evandro Ribeiro é uma delas, talvez a principal. A versão mais contada é a de que o álbum havia sido gravado às escondidas e que, ao saber da sua existência, Evandro Ribeiro demitiu Raul. O que não é verdade. “Raul tinha total autonomia para gravar o que ele quisesse. Seu Evandro só não estava quando o disco foi lançado. Mas, como assim ele não sabia? Dois estúdios sendo usados, tinha que marcar horário nos estúdios, toda aquela euforia de artistas subindo e descendo o tempo todo, como ele não sabia? Durante os 15 dias que estava sendo gravado, todo mundo sabia, só não sabia como é que era o disco”, conta Edy. Inclusive, Raul ainda chegaria a produzir um compacto de Miriam Batucada e o disco de estreia de Diana, só vindo a se desligar da CBS em 1972. 


Edy, Miriam, Raul e Sérgio (acima) em 1971. Foto: Sony Music/Divulgação

Outra história é a de que a faixa Dr. Paxeco teve todos os instrumentos – exceto a bateria – gravados por Raul. “Raul entendia de baixo pra tocar baixo naquela música? Entendia tanto de guitarra pra fazer aquilo? De órgão? Eu não acredito que foi Raul quem tocou sozinho aquela faixa. Mas está escrito nos anais da história, então, quem sou eu, né?” Também se diz que Raul saiu arrebanhando pessoas aleatórias (recepcionistas, varredores de rua etc.) para gravar os coros. Edy, por sua vez, referenda o coro oficial, só que acrescenta outros nomes participantes, como As Gatas e Os Tincoãs. 

Edy atribui tantas histórias ao talento imaginativo do próprio Raul. “Raul não mentia, mas inventava que era uma beleza. Tudo o que Raul dizia o pessoal engolia. E ia aumentando, aumentando”, lembra. 

Outra revelação de Edy é que sua autoria foi suprimida de algumas músicas do disco, por ocasião das trocas de nomes para burlar a Censura Federal. Perguntado sobre quais músicas são composições suas, não revela. “Não é depois que eles já morreram que eu vou fazer confusão. Senão, vão dizer: ‘Ah, o viado tá aproveitando que já morreu todo mundo, pra dizer que é dele’”. 

Décadas depois de lançado, Sociedade Kavernista teve algumas reedições em CD, a partir de 2010. Em 2018, foi relançado em vinil, pela Polysom. Edy tem um exemplar do LP original, guardado a sete chaves. Em meio a uma trajetória errática, ora obscura, ora envolta por uma aura cult, o disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta: sessão das 10 chega aos seus 50 anos ainda sem responder à pergunta, dando um nó nos gostos mais conservadores.

Ouça completo aqui:



LEONARDO VILA NOVA é jornalista e músico.

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