Memória

Morre o marchand Carlos Ranulpho

Galerista trabalhou com nomes importante como Vicente do Rego Monteiro, Lula Cardoso Ayres e Wellington Virgolino

TEXTO Marcelo Pereira

15 de Abril de 2024

Carlos Ranulpho foi um dos responsáveis pela profissionalização do mercado de arte em Pernambuco

Carlos Ranulpho foi um dos responsáveis pela profissionalização do mercado de arte em Pernambuco

Foto Acervo Galeria Ranulpho / Divulgação

Um dos mais importantes marchands brasileiros, o pernambucano Carlos Ranulpho morreu no final da tarde deste domingo aos 94 anos. O empresário dedicou mais de 50 anos ao mercado de arte. Ele estava internado desde o Sábado de Aleluia (30/3), no Hospital Memorial São José, para tratar de uma infecção e teve falência múltipla dos órgãos. Seu velório ocorrerá no cemitério Morada da Paz, em Paulista, nesta segunda-feira, a partir das 9h e o sepultamento está marcado para as 13h.

Carlos Ranulfo de Albuquerque nasceu em 29 de abril de 1920, no bairro de São José, no Recife. Filho do desenhista e caricaturista J. Ranulpho e da dona de casa Maria José das Neves, despertou desde cedo a sua vocação para o comércio, tendo sido vendedor prestamista e joalheiro de prestígio antes de se tornar marchand.

Wellington Virgolino, Vicente do Rego Monteiro, Lula Cardoso Ayres, Carlos Scliar, Juarez Machado, Orlando Teruz, Francisco Brennand, Reynaldo Fonseca, Mário Nunes, Aldemir Martins, Chico da Silva e Mestre Dezinho são alguns dos artistas com os quais trabalhou.

Ranulpho conviveu com a arte desde criança. Sua casa era frequentada por artistas como Manoel Bandeira, Nestor Silva e Felix de Albuquerque (Gato Félix). Ainda garoto, Carlos Ranulpho via seu pai se reunir para desenhar suas melindrosas, as cenas do Carnaval do Recife, os tipos populares que passavam pela rua, em direção ao Mercado de São José.

“Eu até que tinha jeito para desenho, mas não levei esse projeto muito a frente. Como eu via meu pai com dificuldades financeiras e ele nunca teve bons resultados com suas obras, não me estimulava porque sempre pensava em alguma atividade que tivesse rendimento financeiro”, confessou, pragmático, o marchand em entrevista ao jornalista Marcelo Pereira, para a biografia Carlos Ranulpho – O mercador de beleza (Cepe Editora).

Ranulpho começou a trabalhar cedo, aos 15 anos, após a morte do pai, vítima de tuberculose. Seu primeiro emprego foi como vendedor de tecidos. Em seguida, foi prestamista, vendendo, no carnê, relógios, canetas Parker 51, joias femininas e gravatas, entre outros itens a clientes no Centro do Recife, a maioria, servidores públicos e profissionais liberais.

Aos 21 anos, Ranulpho conheceu Maria Dulce, com quem viria casar-se após seis meses de namoro e com quem tiveram o único filho, Felipe Carlos, ambos já falecidos. Maria Dulce foi sua parceira de vida e de negócios. Juntos abriram a It Presentes, loja de joias, decoração e objetos finos, como cristais e pratarias, de muito bom gosto, que atraía uma clientela abastada. “Tive a maior clientela de joias da cidade, incluindo os governadores Paulo Guerra e Eraldo Gueiros, posteriormente. Criei modelos exclusivos, únicos, através da melhor casa de presentes do Centro do Recife", afirmou Ranulpho, em depoimento para o livro.

Inquieto, resolveu abrir uma loja no Rio de Janeiro, para onde se transferiu com Maria Dulce e Felipe Carlos. Apesar dos bons negócios na ponte aérea, terminou por voltar ao Recife. Apareceu uma oportunidade e ele alugou uma loja no Edifício Teresa Cristina, ao lado do Cinema São Luiz, onde abriu a Ranulpho Joalheiro. Para divulgar as suas joias, tornou-se um dos pioneiros a investir em propaganda ao vivo na televisão, uma novidade naquele início dos anos 1960, anunciando no programa Hora do Coquetel (TV Jornal), apresentado por Alex.

Para diversificar os negócios, Ranulpho resolveu investir numa área que não tinha experiência ou conhecimento, mas que acreditava ter um futuro promissor: a venda de obras de arte. Mais especificamente, a pintura. Escolheu, para fazer a sua estreia, o pintor primitivo cearense Chico da Silva, descoberto pelo pintor suíço Jean-Pierre Chabloz, que ficou impressionado com os desenhos de dragões, sereias, peixes voadores, galos de briga e figuras fantásticas e oníricas.

Poucas semanas depois, o marchand voltava a movimentar a galeria com uma coletiva reunindo alguns dos mais expressivos artistas do modernismo pernambucanos: pinturas de Francisco Brennand, Reynaldo Fonseca, Wellington Virgolino; desenhos de Abelardo e Augusto Rodrigues, Darel Valença, Percy Lau e Gerson de Souza, além de gravuras de Samico e talhas de Manoel da Silva. Não imaginava o marchand que seria a primeira de inúmeras coletivas que realizaria ao longo de meio século no mercado de arte pernambucano.

Em 24 de julho de 1968, Ranulpho deu um novo passo rumo a sua consolidação como joalheiro e marchand, com a primeira exposição com joias, pinturas e desenhos de Aldemir Martins, um grande sucesso de público e de vendas.

Uma das formas encontradas por Ranulpho para popularizar a aquisição de obras de arte foi promoção de leilões. A iniciativa teria grande acolhida da sociedade, pois também se revestia de um caráter filantrópico, ao dedicar parte da renda a instituições de caridade. O marchand também promoveu consórcios e venda de obras à crédito. Ranulpho ainda teve um insight de criar uma editora para obras de arte de luxo, que reunisse nomes consagrados das artes plásticas e popular e também da literatura. Ele convidou para o projeto o escritor Hermilo Borba Filho, o pintor José Cláudio e o publicitário Ítalo Bianchi.

A estreia da editora no mercado de álbuns de luxo se tornaria um clássico: Ferros do Cariri - Uma Heráldica Sertaneja, de Ariano Suassuna, um estudo sobre a tradição dos ferros de marcar animais, com textos e desenhos do dramaturgo, romancista então professor de estética da Universidade Federal de Pernambuco que seriam transformados em gravuras.

Em 1975, a Guariba preparou o seu segundo projeto. O escolhido Bumba Meu Boi, de Lula Cardoso Ayres, com cinco guaches reproduzidas em serigrafia a cores, e texto de Hermilo Borba Filho, que seria republicado na imprensa. O terceiro lançamento da Guariba seria o Romance do Pavão Misterioso, com desenhos de Wellington Virgolino. A Guariba teve vida curta. Em seu lugar, o marchand criou a Ranulpho Editora de Arte. A estreia foi com o álbum Alagados, do baiano Jenner Augusto.

A editora também publicou uma edição com Cícero Dias, intitulada Casas Grandes & Senzalas. O álbum continha, além de textos de Gilberto Freyre, 12 serigrafias de Cícero Dias assinadas e numeradas retratando o universo da principal obra do sociólogo de Apipucos.

Freyre ainda viria a colaborar com outro álbum idealizado por Ranulpho: uma nova edição de Lula Cardoso Ayres sobre o tema Portões e Grades do Recife Velho. Assinando os textos de um tema memorialístico, bem ao seu gosto para uma tiragem de luxo de apenas 100 álbuns. Visando uma maior popularização da arte, Ranulpho lançou vários trabalhos em serigrafia dos artistas com quem trabalhava, com grande aceitação.

Em maio de 1972, o marchand mudou de endereço e abriu a Galeria Ranulpho no subsolo de Hotel Miramar, aproveitando a expansão do bairro de Boa Viagem, onde ficou até 1975, quando se transferiu para uma ampla casa na Rua dos Navegantes.

Uma das relações profissionais mais produtivas de Ranulpho foi com o pintor Wellington Virgolino, de quem foi marchand exclusivo. O marchand tinha uma relação muito franca com o artista tanto comercial quanto na discussão das séries temáticas das exposições que realizaram longo de duas décadas.

Ranulpho também atuou de forma decisiva para Vicente do Rego Monteiro sentir entusiasmo novamente em voltar aos pincéis e expor no Recife. Entre os artistas de primeira grandeza do modernismo pernambucano com os quais Ranulpho trabalhou encontra-se ainda Cícero Dias, que realizou uma exposição comemorativa dos seus 80 anos na Ranulpho.

Em 2 de outubro de 2001, a Galeria Ranulpho se mudaria para seu último e definitivo endereço, na Rua do Bom Jesus, no Bairro do Recife, um imóvel datado de 1871 e que foi a primeira sede do Banco do Brasil no Recife. Ranulpho continuou seu incansável trabalho de marchand, buscando novos artistas para se somar com o seu acervo de obras de nomes consagrados, promovendo exposições individuais e coletivas. Nos últimos tempos, a galeria vinha sendo gerenciada pela neta Rafaela e por Marinez Oliveira, sob a supervisão de Ranulpho. Até o fim da vida, fez do comércio a sua vida, como confessou. Um mercador de beleza.

MARCELO PEREIRA, jornalista, coordenador editorial das revistas Pernambuco e Continente

Publicidade

Banner Prêmio Cepe

veja também

Adeus à inesquecível Ilva Niño

Breve memorial para Clóvis Pereira

Serra Talhada e a herança de Lampião