O coco ancestral do Bongar
Além do propósito artístico, grupo que completa 20 anos em 2021 surgiu como uma busca espiritual, uma imersão na sua família Xambá, e como difusão da cultura negra diaspórica de nossas terras
TEXTO Alice Rodrigues
19 de Novembro de 2021
Ensaio fotográfico do Bongar em Cuba, durante a gravação do disco 'Xamtería', ainda sem data de lançamento
Foto Rennan Peixe/Divulgação
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No dia 11 de agosto de 2001, surgia um dos maiores e mais importantes grupos de coco da história musical do Brasil. O Bongar é, sem dúvidas, uma das iniciativas culturais mais notórias nascidas em Pernambuco. Formado na comunidade Xambá do Quilombo do Portão do Gelo, em Olinda, o grupo mantém, há 20 anos, a missão de preservar e difundir a cultura de matrizes africanas através da Nação Xambá. Em sua discografia, constam seis álbuns lançados, cinco de estúdio e um ao vivo, o Festa de terreiro, que acompanha o DVD do show. Esse conjunto registra a riqueza dessa trajetória: a representatividade como instrumento social e a história de luta contra o racismo estrutural através da música.
Criados na Rua Severina Paraíso da Silva, no bairro olindense do São Benedito, na Região Metropolitana do Recife, onde fica localizado o terreiro de Xambá, Guitinho, Memé, Nino e Beto deram início às suas trajetórias musicais e, logo após, contaram com a presença de Thúlio. Já desde criança imersos na religião candomblecista, conviveram com uma musicalidade muito presente: frequentavam rituais e improvisavam os instrumentos com quengas de coco e baldes. Depois, passaram a tocar alfaia, pandeiro, ganzá e tabica.
O terreiro de Xambá, onde o Bongar nasceu, é um quilombo desde 1950 e é considerado um local sagrado de resistência, hoje imerso em um contexto urbano. Erguido pelas tias-avós dos fundadores do grupo musical, o espaço sofreu forte repressão policial ao longo dos anos, sendo fechado e deslocado, o que provocou a ideia de que o Xambá se extinguira; porém, o terreiro resistiu. O povo Xambá, por sua vez, é originário de uma região transitória entre a Nigéria e Camarões, países d’África, e traz consigo características de cada lugar. Na parte Yorubana (Nigéria), o que predomina é o culto aos Orixás, os cantos, as vestes, a musicalidade, como o Bantu e a culinária. Em seus rituais, é servido um pirão amarelado com azeite, sal e farinha, e o ebó – alimento ofertado aos Orixás –, que também serve de refeição, diferente das outras nações que não costumam comer o ebó, pois isso é considerado um sacrilégio. Na percussão, toca-se o engome, que o grupo dedica a alguns Orixás (de forma distinta à cultura Nagô, em que se toca o atabaque Ylu de cruz). O engome é tido como um instrumento diferenciado, por conter apenas uma pele de resposta. Tudo isso contribui para que o Xambá e o Bongar sejam particulares em sua cultura e musicalidade.
A palavra “bongar” tem origem “Bantu” e significa “busca do conhecimento espiritual”. É através desse significado que o grupo surge, com o intuito do autoconhecimento e da propagação da história do Xambá. Após a morte da tia-avó Biu, o vocalista Guitinho resolveu pular as barreiras visíveis e invisíveis do terreiro e passou a estudar mais sobre cultura popular, sempre forte em toda a sua vivência. Por isso, o Bongar, além do seu intuito artístico, surgiu como uma busca ancestral, como imersão da própria família e como entendimento da origem do povo e de seu nome.
Foto: Rennan Peixe/Divulgação
Seus primeiros ensaios foram realizados no quintal da casa de Guitinho e, quando era apenas um grupo musical, ainda sem nome, veio o convite para tocar no lançamento do CD do Afoxé Oxum Pandá, em Piedade, no outro extremo da Região Metropolitana do Recife. Porém, com a falta de tempo para ensaiar, Guitinho deu a ideia de tocar o Coco da Xambá e, logo na semana seguinte, foi convidado para se apresentar numa feira esotérica no Pátio de São Pedro, no centro. A coisa deu tão certo, que acabou consagrando o então grupo de coco.
Desde o início, o Bongar era apreciado por amizades artísticas que já ouviam as produções de Guitinho. O caso de Siba, Renata Rosa, Mestre Salustiano e Carlos Sandroni, que identificou no grupo um tipo de coco diferente dos outros, tocado na cadeira amarrada, usando as duas membranas da alfaia, o que proporciona mais possibilidades de som. Segundo Guitinho, não se sabe a origem dessa ideia.
O primeiro lançamento da banda foi o disco 29 de junho (2006), em homenagem à data da festa do Coco de Xambá, com produção de Lindemberg Oliveira. O álbum traz algumas loas tradicionais que eram cantadas por alguns mestres do coco. Em seguida, veio Chão batido – coco pisado (2009), com produção de Juliano Holanda, Caçapa nas violas e Benjamim Taubkin no piano. A capa do disco é um ofá de Odé, Orixá que contém uma lança que faz todo o mapeamento do local para saber se é farto. A lança serve para apontar caminhos e o pé é para representar que saíram do quilombo e estão caminhando para além disso. O DVD Festa de terreiro (2014) é um compilado das duas obras, contém algumas canções novas e também saiu como disco.
Há pouco menos de um mês da partida de Guitinho da Xambá – que se encantou no dia 17 de fevereiro de 2021, vítima de um AVC –, realizei uma entrevista com ele sobre os 20 anos do Bongar e sua trajetória de resistência cultural e artística na comunidade. Talvez esta seja sua última entrevista. Na ocasião, ele já vinha se preparando para uma cirurgia que, infelizmente, acabou acarretando o seu falecimento.
Foi uma conversa leve, divertida, em que as palavras fluíram de forma espontânea, retratando o brilho da sua personalidade. Relutei por vezes em abrir esse arquivo. Sua partida foi dolorosa, já que sempre admirei muito o grupo. Porém, não poderia guardar este momento apenas para mim e, com carinho, compartilho para que todos possam conhecer mais sobre a história do Bongar. Confira trechos a seguir.
A HISTÓRIA
“Quando criamos o Bongar, a gente tocava as músicas que ouvia desde a infância, no terreiro, e num desses shows do Pátio de São Pedro, em 2002, a gente teve a surpresa de entrar no palco a nossa tia-avó Tila, de 89 anos, junto com meu tio, e a tia-avó Lourdes, que hoje é a Yalorixá do terreiro. A gente tomou um susto, porque o terreiro de Xambá é muito fechado e essa minha tia-avó era a mais velha e conhecida como a mais ranzinza (risos). Ela não saía do terreiro, por isso a gente se assustou pelo fato dela ter ido a um show da gente. Aí, descemos do palco, demos a benção e ficou todo mundo curioso. No outro dia, minha prima me chamou e disse que tia Tila queria falar comigo, fiquei logo com medo, porque ela era famosa por dar carão. Quando cheguei lá, ela mandou eu sentar e disse: ‘Olhe, eu vi a apresentação de vocês, gostei, mas aquelas músicas que você cantou não é pra cantar’. Aí, eu saí de lá cabisbaixo e fiquei pensando: ‘E, agora, a gente vai cantar o quê?’. Lembrei da minha experiência no espaço Pasárgada, onde eu fazia poesia. Eu costumo dizer que esse foi o melhor carão que eu levei na minha vida, porque, a partir daí, eu comecei a escrever música (risos).”
Guitinho (em primeiro plano) e o grupo, 2018. Foto: Joelson Souza/Divulgação
CAMINHOS
“Até que, na turnê de dois anos (2003), no show de encerramento, numa comunidade em Porto Alegre (RS), numa cidade chamada Montenegro, foi descoberto que eles usavam todas as músicas do Bongar como ritual. Eu fiquei sem acreditar, fiquei pensando que isso não era possível. Ogum e Odê eram usadas para o ritual; Na boca da mata, para os caboclos. Depois de ter lançado os dois primeiros discos, começamos a receber vários e-mails e teve um que me chamou atenção, que foi de um terreiro de Umbanda de Mogi das Cruzes, em São Paulo. Eles estavam lançando um CD para arrecadar fundos para a reforma do terreiro e queriam a autorização dessa música Na boca da mata. Aí eu conversei com Mari (produtora da banda) e pedi pra liberarem. Depois, recebemos outro e-mail que dizia que eles estavam utilizando a minha música para rituais religiosos e que os caboclos estavam descendo. Eu costumo brincar dizendo: ‘Quando eu criei a banda, a gente foi proibido de tocar, agora eu tô tendo que liberar a música pros caboclos descerem (risos).”
COM AS ENTIDADES
“Um dia eu em casa, fui chamado lá na Jurema. Chegando lá, tava minhas tias-avós todas incorporadas. Aí me disseram que queriam que eu cantasse um coco. Quando eu comecei a cantar as músicas dos rituais, eles mandaram eu parar e começaram com Chão batido, coco pisado, mané (cantando), e eu pensei: ‘Oxe, eu nasci e cresci nesse meio, não é possível que eles tão cantando isso aí’. Eu cheguei até a duvidar, sabe? Eles tavam lá tocando minhas músicas. Até que isso me serviu como ideia pra gravar um disco, junto com essas entidades.”
Foi depois desse acontecimento que surgiu o CD Samba de Gira (2016), produzido por Beto Villares. A obra celebra o universo afro-indígena brasileiro, pois a Gira é o encontro de mestres e outras entidades, e é a junção do universo material e espiritual, que, para Guitinho, não tem fronteiras. Além disso, o disco contém três tipos de sonoridades, gravadas no terreiro, com a participação de algumas entidades; no Teatro Hermilo Borba Filho; e em estúdio, contando também com a presença de mestres carnais, como Siba, Lirinha, Chico César, Juliano Holanda, Adiel Luna, Mestre Sapopemba e Juçara Marçal.
O Ogum iê! (2017), o quarto álbum da banda, foi produzido por Letieres Leite e Bruno Giorgi. É uma obra que teve a intenção de ser gravada mais ao candomblé, e é considerada por eles uma radicalização e uma resposta ao CD Chão batido – coco pisado, que contém a música Ogum, escolhida como o single principal do disco (mas foi a faixa Odé que contou com a produção de Benjamim Taubkin nos arranjos). Até que todo o disco Ogum iê! foi criado com o repertório dedicado ao Orixá que o batiza.
Bongar no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) 2010, em show com o pianista Benjamim Taubkin. Foto: Beto Figueiroa/SecultPE-Fundarpe
GRAVAÇÕES
“Temos o costume de gravar todos os discos no mesmo canal. Tivemos a experiência de gravar em canais separados, junto com Juliano Holanda, e não sentimos que ficou a mesma pegada. Sempre tocamos juntos, começamos juntos e é assim que deve ser gravado, para mostrar a nossa verdade! Até que eu fiz um CD com o disco todo dedicado a Ogum, que utilizamos instrumentos harmônicos, com bases minhas e uma série de gente boa contribuiu também.”
O penúltimo disco lançado foi o Macumbadaboa (2019), com as participações da cantora Isaar e do amigo e músico africano Adama Keita, tendo a produção de Maga Bo, DJ norte-americano. A parceria se deu através da sua vinda ao Brasil, em 2012, e foi na cidade do Rio de Janeiro que o DJ ouviu falar sobre o Bongar e declarou, em uma matéria de jornal, que tinha curiosidade de conhecer a banda quando viesse ao Recife, para tocar no festival Rec-Beat. Numa Quarta-feira de Cinzas, no Polo Afro, em Olinda, os dois artistas se conheceram e firmaram parceria juntos. Guitinho expôs sua vontade de produzir um disco de memória, que seria gravado no Memorial Xambá, de sua família. Lá, ficaria por horas usando-o como inspiração para suas composições.
O disco demorou sete anos para ser produzido e conta com a presença de Lia de Itamaracá, as filhas de Baracho, Helder Vasconcelos e as crianças da Xambá. O nome Macumbadaboa representa a mistura da macumba com a música eletrônica, sendo isso perceptível através da capa, por conter homens das cavernas, elementos tradicionais, a fachada da Xambá, alfaias, os tambores rústicos e pessoas dançando break. Foi a partir desse disco que a sonoridade do Bongar se expandiu.
Bongar na savana. Foto: Divulgação
EXPANSÃO
“O Bongar é ressignificar sem corromper, o terreiro é a minha grande fonte de inspiração e quando a gente vai pra fora, a gente ressignifica. Não vemos a necessidade de mudar os instrumentos que são tocados na festa do coco quando vamos tocar fora, incluindo a dança também. Por isso, a gente sempre toca com a alfaia, o pandeiro, o ganzá, a tabica e o caixa, fazemos questão de manter, mas, quando saímos, cabe ao Bongar ressignificar isso e, no palco, nos abrimos para tocar outros instrumentos. A banda também foi criada no intuito de revelar elementos tradicionais que não são comuns no ambiente afro-brasileiro.”
Com essa necessidade de manter a tradição, o Bongar chegou a tocar no Womex, um dos maiores eventos de música do mundo. Tocaram em Cardiff, em uma feira de música, e, de 40 grupos selecionados, foram eleitos o melhor show. Depois dessas experiências, outras oportunidades foram surgindo para a banda, o que repercutiu para a criação de outros projetos, como o grupo Mixidinho – com crianças do Xambá que tocam –, o Pirão Bateu e
o Xambá das Yabás, com as avós e as tias do terreiro que tocam o que ouviam quando crianças, samba de coco que contam o cotidiano, tudo isso sendo fruto dos 20 anos do Bongar.
Ao longo desses anos de trajetória, o Bongar foi conquistando diversos espaços, reconhecimento em grandes festivais independentes de todo o Brasil e, o mais importante de tudo, o respeito. Guitinho afirma que tudo isso se torna uma bandeira afirmativa para eles.
Guitinho em show do Bongar no FIG 2011. Foto: Eduardo Queiroga/SecultPE-Fundarpe
CIRCUITO
“Grandes festivais independentes passaram a respeitar grupos musicais feito o nosso, começamos a trazer a ideia de que a manifestação do coco também é uma manifestação política de jovens que trazem essa bandeira como afirmação, conseguimos dar visibilidade a grupos quilombolas, a Xambá foi visibilizada, trouxemos projetos sociais, intervenções urbanísticas essenciais. Além de termos o projeto de transformar a Avenida Presidente Kennedy, como Avenida Xambá, por causa de toda a nossa história e agora lançamos uma linha de pandeiro, da contemporânea, em comemoração aos 20 anos do grupo.
Quando a entrevista foi realizada, Guitinho informou que havia um disco sendo produzido, gravado em Cuba e intitulado Xamtería, que prometia uma fusão do candomblé da Xambá com a santería (religião cubana de matriz africana). A ideia era lança-lo em agosto, nos 20 anos da Bongar, mas, com a morte de Guitinho, foi adiado e ainda está sem previsão de lançamento. Na época, Guitinho disse estar bastante ansioso para botar o disco no mundo, pois foi um processo bastante enriquecedor para toda a sua carreira como artista e pesquisador.
Guitinho se encantou numa Quarta-feira de Cinzas pandêmica. Coincidentemente, foi no mesmo dia, em um show na Praça do Carmo, em Olinda, no Carnaval de 2020, que o vi tocar pela última vez. O artista estava internado para realizar alguns exames preparatórios de uma cirurgia com foco em tratar de uma doença rara, a Síndrome de Cushing, que o acometia há anos, quando sofreu um AVC, passou por uma cirurgia de emergência, e não resistiu.
Show no Carnaval 2020. Foto: Jan Ribeiro/SecultPE-Fundarpe
O grupo Bongar continua sua trajetória e, após a grande perda, realizou uma live em homenagem ao criador do grupo que mudou a história do coco, da música, da cultura em Pernambuco.
EXTRA: Assista ao depoimento de Guitinho gravado por ele do hospital, para os 20 anos da Continente, em dezembro de 2020.
ALICE RODRIGUES tem 25 anos, é graduanda em Psicologia, batuqueira, social mídia, curadora e dissemina o melhor da música popular brasileira através do jornalismo e da produção cultural.