O cinquentenário de um disco mítico
Fenômeno cultural, comportamental e político de 1973, o primeiro álbum do Secos & Molhados misturou 'folk', 'glam rock', música latina, folclore, poesia e desbunde libertário em plena ditadura militar
TEXTO Débora Nascimento
01 de Junho de 2023
João Ricardo, Gérson Conrad e Ney Matogrosso
Imagem DIVULGAÇÃO/CONTINENTAL/REPRODUÇÃO
[conteúdo na íntegra | ed. 270 | junho de 2023]
Lado A do LP colocado na vitrola. A agulha toca o vinil e, na primeira faixa, começa uma linha de baixo em ré maior. Vem, então, o chacoalhado de um caxixi simultaneamente a uma marcação do bumbo da bateria. A linha de baixo se repete por oito vezes, provocando um suspense até a chegada do dedilhado de um violão em sol maior. Aos 23 segundos, surge uma voz misteriosa, segura, cortante e andrógina cantando: “Jurei mentiras e sigo sozinho / Assumo os pecados / Os ventos do norte não movem moinhos / E o que me resta é só um gemido / Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos / Meu sangue latino / Minh'alma cativa”.
O ouvinte que fez o gesto descrito acima, em agosto de 1973, ainda não sabia. Mas estava começando a apreciar um dos álbuns definitivos da história da música popular brasileira e que hoje ocupa a quinta posição na lista dos 100 melhores discos brasileiros de todos os tempos, no ranking publicado, em 2007, na edição nacional da revista Rolling Stone. A faixa Sangue latino seria a terceira canção mais ouvida em 1973 no Brasil. E a primeira, O vira, também pertence a esse mesmo disco, obra-prima do maior fenômeno de vendas e shows em meados da década de 1970 no país, o Secos & Molhados.
A letra, escrita pelo compositor e roteirista Paulo Mendonça, que destrincha a alma cativa (sem liberdade) da América Latina, casa perfeitamente com a bela melodia de João Ricardo, um jovem português que desembarcara no Brasil em 1964, aos 15 anos, com o pai, o jornalista e poeta português João Apolinário, que fugia da ditadura salazarista no além-mar e acabou dando de cara com outra ditadura, desta vez recém-instaurada.
Na mesma rua onde João Ricardo morava em São Paulo havia um vizinho, também músico e jovem, Gérson Conrad. Ambos adolescentes, costumavam conversar sobre Beatles, sonhos, sucesso e futuro. O primeiro fez Jornalismo; o segundo, Arquitetura. Prometeram: um dia, fariam alguma coisa musical juntos. Até que chegou o dia em que o português finalmente convidou o amigo para formar uma banda, depois que uma primeira formação com João (violão e vocal) e os músicos Fred (bongô) e Pitoco (viola de 10 cordas) não vingou.
O nome surgiu quando, em uma viagem à praia de Ubatuba, João viu uma placa balançando, açoitada pelo vento na frente de uma casa abandonada. Nela estava escrito: “Armazém de Secos & Molhados”. Ele, então, teve a ideia de batizar o projeto musical. Gérson achou estranho, mas acabou aceitando. Nesse período, João estava em busca de um vocalista. E comentou com a amiga Luhli, também frequentadora do circuito alternativo de bandas, que queria algo diferente…
“Ela (Luhli) falou para o João Ricardo, quando ele disse que queria fazer um trio, mas não queria botar uma mulher e não achava um homem de voz aguda. Ela disse assim: ‘Eu tenho um homem de voz aguda dentro da minha casa’. Eu vivia na casa dela. Não morava lá. Mas eu fazia meu artesanato lá, eu era hippie”, contou Ney Matogrosso, em entrevista à Continente, em março de 2020.
No início dos anos 1970, Ney de Souza Pereira, também conhecido como Neyzinho nas rodas ripongas, morava precariamente no Rio de Janeiro e vivera durante anos como andarilho desde que, em 1958, havia saído da casa dos pais, no Mato Grosso (antes de ser dividido). Assim como João Ricardo, também fugia do autoritarismo. Mas, desta vez, era do próprio pai. O Sargento Mato Grosso costumava bater no jovem por qualquer coisa. Um dia, ele se cansou. E com apenas 17 anos, sem dinheiro, saiu de casa. Prometeu que nunca mais voltaria. E cumpriu. Morou na rua, passou fome, mas não abriu mão do orgulho. Voltou, muitos anos depois, somente para fazer visitas cordiais à toda família.
Para poder conhecer esse tal cantor, João e Gérson fizeram, em outubro de 1971, uma viagem de trem de São Paulo ao Rio de Janeiro. Às 7 da manhã, bateram à porta da casa de Luhli. Ney, que estava lá, quando viu e ouviu João Ricardo, também escutou uma voz, desta vez interna, que dizia: “Vai”. E assim os músicos ganharam o melhor vocalista que uma banda poderia imaginar. Como dizia a letra de Can't take my eyes off you, hit de Frankie Valli de 1967, era “Too good to be true”.
Ney era bom demais para ser verdade, tudo o que João planejava e muito mais. Além de possuir uma impressionante voz de contratenor com ampla extensão, também era ator. Então tinha experiência de palco e aquilo que se chama de presença cênica. E, pra completar, um je ne sais quoi, que poderíamos tentar explicar, talvez em vão, como uma mistura de beleza, sensualidade e ousadia. Sua performance ia além de um simples crooner. Ele cantava, interpretava e, com o espírito livre de um hippie, estava totalmente aberto a vestir-se com roupas mais extravagantes do que o figurino tradicional que os cantores brasileiros costumavam usar na época. Não havia nada parecido com Ney, até então, na música brasileira.
Entre o “sim” e a ida de Ney a São Paulo passaram-se longos 11 meses. João e Gérson já começavam a considerar que o cara havia desistido, quando ele finalmente apareceu na capital paulista. Deram início, então, aos ensaios com voz e violões, que aconteciam rigorosamente todos os dias. Veio a oportunidade de se apresentarem na Casa de Badalação e Tédio. Nesse café-concerto, anexo do Teatro Ruth Escobar, tiveram a sorte de, em dezembro de 1972, contar com um espectador decisivo, Moracy do Val, que trabalhava no jornal Última Hora. O jornalista ficou encantado e escreveu uma matéria que teve repercussão no circuito alternativo. O repórter tomou quase como uma missão de vida conseguir fazer aquela banda acontecer, ou seja, gravar, fazer shows e ter sucesso. E virou empresário dela.
Uma fita-cassete com gravações caseiras do grupo já tinha sido copiada e entregue pela banda a todas as gravadoras possíveis. Mas ninguém se interessou e nem deve ter ouvido. Na história da música, há muitos casos assim, de executivos que deixaram de contratar artistas que se tornaram icônicos. Ninguém esquece, por exemplo, de Dick Rowe, da Decca, “O cara que dispensou os Beatles”. Moracy levou a fita à Continental, gravadora nacional que era um oásis para a música alternativa brasileira. Foi de lá que sairia, em 1974, por exemplo, o primeiro disco da pernambucana Ave Sangria. O jornalista fez aos executivos um alerta: “Ou vocês gravam ou vão perder para outra gravadora”. Deu certo.
Contratados em maio de 1973, os Secos & Molhados entraram no Estúdio Prova, na Alameda Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins, em São Paulo, em meados de junho, para gravar o disco. O orçamento era bem baixo. E o álbum seria gravado em uma mesa de quatro canais, hoje algo limitado, mas havia a mística de ter a mesma quantidade de canais da mesa de gravação do Sgt. Pepper 's (1967), lançado apenas seis anos antes na Inglaterra.
Quando foram gravar, eles possuíam um grande trunfo. Estavam bastante ensaiados, afinados e afiados com o repertório – haviam tocado essas músicas durante um ano, seja em ensaios ou em shows. Então, já tinham burilado a melodia, os vocais e as harmonias. Portanto, foi mais fácil o processo de gravação, que durou apenas 15 dias. A propósito, Ney Matogrosso, em sua carreira solo, vem aplicando esse método inverso, ele apresenta as músicas primeiro em dezenas de shows, depois, quando sente que elas já estão prontas para serem registradas, entra em estúdio.
Grande parte do mérito pelo excelente resultado do álbum é atribuído a João Ricardo. Sim, ele arregimentou a banda, os músicos e compôs 11 das 13 melodias e fez duas canções sozinho (Assim assado e Patrão nosso de cada dia). Mas o primeiro disco do Secos & Molhados é fruto de um trabalho coletivo com contribuições determinantes. Primeiro, o que seria dessas canções sem a voz e a performance de Ney Matogrosso? E de Sangue Latino e Amor sem a linha de baixo do argentino Willy Verdaguer, que, a propósito, merecia crédito na autoria, visto que o seu poderoso trabalho no Fender Jazz Bass é essencial para o resultado final dessas gravações e para o que elas são até os dias atuais.
Criada por Antonio Carlos Rodrigues, capa do disco foi inspirada em imagem que ele realizou com a esposa, Ceni Câmara. Imagens: Antonio Carlos Rodrigues/Reprodução
Mais das contribuições: Gérson Conrad musicou o poema pacifista Rosa de Hiroshima, de Vinicius de Moraes, que ficou emocionado ao ouvir a faixa. A compositora Luhli escreveu as letras de Fala e O Vira – a música, que mescla rock e ritmo folclórico português e menciona animais, floresta e fadas, atraiu a atenção do público infantil, formando uma audiência ainda mais diversificada para a banda: crianças, adolescentes, pais, universitários, intelectuais, tropicalistas, hippies, atores… Não à toa, tornou-se a música mais tocada daquele ano.
O disco ainda teve participação de Emilio Carrera (teclados), Sérgio Rosadas (flauta transversal e flauta de bambu), Marcelo Frias (bateria) e o brasileiro filho de irlandeses John Flavin (guitarra). Fala contou com arranjos de cordas de Zé Rodrix, autor de Casa no campo (interpretada por Elis Regina), que tocou piano, sintetizador e ocarina no álbum. Ele também colaborou com a produção musical, assinada por Moracy do Val e pela banda, cujos integrantes traziam influências variadas, que iam da música latina, MPB, Tropicália até Crosby, Stills, Nash & Young – este um dos grupos preferidos de João Ricardo.
Ao contrário dos outros integrantes, Ney, até por sua origem e seus anos de andarilho, não costumava ouvir discos de rock e folk. Nunca tinha ido a um show de rock e seu primeiro toca-discos somente foi comprado com os lucros desse primeiro disco que gravaria em 1973. Como não cultivava ídolos, talvez isso tenha contribuído para que ele próprio fosse um astro da música tão iconoclasta e desapegado das afetações e dos deslumbramentos comuns no showbiz. E era um abnegado.
Quando a banda começou a gerar muito lucro, ele, acostumado a uma vida simples, sem luxo, resolveu abrir uma conta bancária. Vestiu uma calça boca-de-sino, camiseta, tamancos, fez um rabo de cavalo, pegou uma sacola tiracolo, pôs dentro dela todo o dinheiro que tinha e foi ao banco. Diante de um hippie com tantas cédulas de cruzeiros e sem uma comprovação de renda fixa ou fiador, o gerente não aprovou a abertura da conta. Desapontado, Ney voltou pra casa, colocou a sacola ao lado da porta e avisou aos amigos que quem precisasse de dinheiro, estava logo ali, era só pegar.
Mas como um disco tão ousado conseguiu ser gravado durante a ditadura militar? Por um outro golpe, o da sorte. Moracy do Val tinha uma amiga de faculdade que trabalhava como secretária do ministro da Educação do governo Médici. Ele pediu que ela interviesse em favor da banda. Se foi obra da colega ou não, ninguém sabe ao certo. O resultado é que as 13 faixas ganharam o carimbo de aprovação. Um dos truques de João foi apresentar também como letras alguns poemas de nomes renomados: Manuel Bandeira (Rondó do capitão), Solano Trindade (Mulher barriguda), Vinicius de Moraes (Rosa de Hiroshima) e Cassiano Ricardo (Prece cósmica e As andorinhas).
E precisamos levar em consideração que a censura dependia mais do olhar e do nível cultural de cada censor do que de regras estabelecidas pelos militares – a ordem geral era: ninguém podia falar mal do regime e dos problemas sociais, econômicos e sociais do país. Para driblar esse problema, os compositores tinham que apelar às metáforas, que enganavam os censores distraídos ou ignorantes.
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Embalando o vinil, veio a capa icônica, eleita em enquete da Folha de S.Paulo, em 2001, como a melhor da história da música popular brasileira. E a origem dela surgiu de forma peculiar. O pai de João Ricardo, João Apolinário, trabalhou no Última Hora, onde também trabalhava Antonio Carlos Rodrigues. O sobrenome já indica o parentesco. É filho do artista plástico e ilustrador pernambucano Augusto Rodrigues, primo de Nelson. Apolinário pediu a Antonio que fizesse a foto da capa da banda do filho, pois a verba da gravadora era muito restrita. Ele topou.
Ao saber do nome da banda, Antonio teve uma ideia: pensou em uma mesa repleta de secos e molhados, e os pratos principais seriam as cabeças dos músicos, dispostas em bandejas, como se tivessem sido degoladas – uma metáfora visual para a violência da ditadura militar. Imagem impactante com potencial de gerar, inclusive, censura, ela foi inspirada em uma foto anterior que ele fizera para uma revista, mas que havia sido desaprovada, com a cabeça de uma mulher, sua esposa, como se estivesse em uma bandeja.
E nesse ponto surgem duas grandes polêmicas sobre a autoria da ideia da maquiagem. Primeiro, a mais famosa delas: se o Kiss copiou ou não a banda brasileira. Já foi dito que o grupo norte-americano passou a se maquiar inspirado no álbum do Secos & Molhados, lançado no Brasil em agosto de 1973 e também com distribuição em Portugal, na Argentina e no México – país onde os músicos se apresentaram e Ney disse ter sido convidado por dois produtores norte-americanos para trabalhar nos EUA. O primeiro do Kiss saiu em fevereiro de 1974. Zé Rodrix também já afirmou que o guitarrista nova-iorquino radicado no Brasil Lennie Dale o teria apresentado, no início de 1973, a dois amigos estrangeiros, Paul (Stanley) e Gene (Simmons), e, na conversa, o compositor carioca teria mencionado a banda brasileira e que seus integrantes usavam maquiagem. Porém, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 2009, Stanley negou: “Nunca ouvi falar dessa história e nem do grupo”. Os integrantes do Kiss apareceram com os rostos pintados em março de 1973.
No livro Ney Matogrosso: Uma biografia (2021), o jornalista Julio Maria escreve que o cantor começou a se maquiar e a usar figurinos exóticos no final de 1972. Mas o fotógrafo Antonio Carlos Rodrigues afirmou, em entrevista à Continente, que o artista, junto ao restante da banda, passou a se maquiar daquela forma marcante a partir da sessão de fotos para a capa em seu estúdio fotográfico. Isso é importante mencionar, pois a maquiagem e o figurino acabaram se tornando uma marca na carreira Ney Matogrosso, e contribuíram para romper com sua timidez e potencializar suas performances.
Durante a sessão de fotos, houve uma discussão. “‘Maquiado? Ninguém vai reconhecer a gente maquiado’. Eu falei ‘Não tem importância, vocês deveriam cantar maquiados’. Inclusive, nesta hora, o baterista, chamado Marcelo Frias, falou: ‘Eu não sou palhaço pra me maquiar, eu não quero me maquiar’. Tanto é que, na capa do disco, ele praticamente não está maquiado”, conta Antonio Carlos Rodrigues.
Com esse visual andrógino, Ney contrariou a sugestão inicial de João e Gérson, que queriam se apresentar com boinas semelhantes a de Che Guevara. Mas acabaram usando o visual glam rock adotado por artistas e bandas como David Bowie, Marc Bolan, New York Dolls e Roxy Music. Marcelo, que não se sentiu à vontade com o look, depois pediu para se tornar apenas um músico contratado da banda e não um integrante fixo. Dessa forma, o grupo ficou definitivamente estabelecido como um trio.
A tiragem inicial ínfima de 1.500 cópias – uma demonstração de que a gravadora não acreditava que o grupo seria vendável – esgotou rapidinho. Estrategicamente, por ideia de Moracy, 500 dessas cópias foram enviadas à imprensa e às rádios, quando o jabá ainda não havia sido instituído como estratégia de marketing. Portanto, o fato de um artista tocar bastante no rádio significava que realmente ele havia atraído a atenção do ouvinte.
E tocar muito nas rádios, naquele ano, era a mais pura tradução do sucesso, afinal, a concorrência não era fácil. E uma amostra está nas 10 mais de 1973: Retalhos de cetim, Benito di Paula (2° lugar); Skyline Pigeon, Elton John (4°); Eu só quero um xodó, Dominguinhos e Gilberto Gil (5°); Killing me softly, Roberta Flack (6°); Gostava tanto de você, Tim Maia (7°); Ouro de tolo, Raul Seixas (8°), Uma vida só, Odair José (9°), e Your song, Billy Paul (10°). Como foi dito, o primeiro (O vira) e terceiro lugares (Sangue latino) ficaram com os Secos & Molhados.
Para dar conta dos pedidos das lojas e dos fãs ávidos, a Continental precisou fazer nova prensagem. Porém, como havia a crise do petróleo, a gravadora derreteu milhares de discos do acervo para prensar novas tiragens do Secos & Molhados. Em apenas dois meses, o grupo vendeu mais de 350 mil cópias. Em sua coluna n’O Globo, o jornalista Nelson Motta escreveu que o grupo se aproximava “perigosamente da marca do Rei Roberto Carlos”, o maior vendedor de discos do Brasil, que tinha uma marca, então, de 500 mil cópias vendidas. Em pouco tempo, a banda superou, atingindo cerca de um milhão de cópias.
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Uma das cópias iniciais foi parar nas mãos da dupla de agitadores culturais Luís Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli. Com trânsito livre no circuito musical, eles seriam agora responsáveis pelos musicais de um novo programa que iria estrear na TV Globo, o Fantástico. Eles estavam indo para a reunião de pauta do semanário na emissora, onde precisavam chegar com uma boa ideia. Sem ouvir ainda nenhuma faixa, apenas sob o impacto da capa feita por Antonio Carlos Rodrigues, decidiram sugerir a participação da banda a Augusto César Vanucci, diretor do programa. E assim os Secos & Molhados foram convidados para apresentar O vira e Sangue latino no que seria um dos programas de maior audiência da TV.
Secos & Molhados em show no Maracanazinho, RJ, 1974.
Foto: Ronald Fonseca/Agência O Globo
O grupo, acostumado a tocar em pequenos espaços culturais, para, no máximo, 2 mil pessoas em São Paulo, alcançaria, com o televisivo, milhões de telespectadores em todo o país. Após a aparição na TV e também com a crescente execução das músicas nas rádios, aumentaram as vendagens do disco e a banda teve que se apresentar em locais cada vez maiores, para comportar mais e mais gente, o que, algumas vezes, provocava muito rebuliço, alvoroço e ranger de dentes nas casas de shows, principalmente entre os que não conseguiam ingressos – em um show havia 30 mil pessoas dentro do Maracanãzinho e 90 mil do lado de fora. E nesse dia, havia jogo no Maracanã.
Ironicamente, o sucesso da banda trouxe consigo o seu próprio fim. O dinheiro entrou em volumes inesperados. Antes havia um acordo tácito de que os lucros financeiros, tanto dos shows quanto dos direitos autorais, seriam divididos igualmente entre os membros do grupo e não foi isso o que ocorreu. Para completar, João Apolinário assumiu o cargo de empresário e destituiu Moracy do Val, sem o conhecimento de Ney. E o cantor deixou bem clara a sua opinião ao rasgar o novo contrato que o transformaria em empregado da firma de João pai, logo, de João filho. “Eles não estavam preparados para aquele sucesso todo”, observa Antonio Carlos Rodrigues, que também fez a capa do segundo e último disco da banda com Ney.
No dia 10 de agosto de 1974, o Jornal da Tarde anunciava o inesperado: o fim do trio e o início da carreira solo de Ney Matogrosso. O cantor havia dado a informação em off ao jornalista.Um dos leitores que receberam essa informação através da imprensa foi João Ricardo. Ele sentiu-se traído, pois, em meio às desavenças, havia um acordo para que Ney aguardasse o lançamento do segundo disco e participasse da nova turnê, que teria como hit Flores astrais (poema de João Apolinário musicado pelo filho), regravada mais de 10 anos depois pelo RPM, que destronaria, em 1986, o Secos & Molhados do pódio de grupo de rock brasileiro que mais vendeu discos, com 3 milhões de cópias do Rádio pirata ao vivo – o show ironicamente teve direção e iluminação de Ney Matogrosso.
E, desde o fim precoce dos Secos & Molhados, nunca houve uma possibilidade de reunião comemorativa da banda, como há tantas no meio musical, por conta do estremecimento entre João e Ney. “Não, não tem (possibilidade)”, respondeu firmemente o cantor à Continente. João raramente dá entrevistas ou aparece em documentários e programas sobre a banda.
Uma série de ficção produzida pelo Globo Play, prevista para estrear em 2023, começou as filmagens com os atores Gabriel Leone, Mauricio Destri e Caio Horowitz interpretando respectivamente Ney, João e Gerson. Mas foi cancelada porque os direitos autorais não foram liberados por João. Em setembro deste ano, vai estrear no Canal Brasil uma série documental com quatro episódios de 60 minutos, baseada na biografia Primavera nos dentes: A história do Secos & Molhados, de Miguel de Almeida (Editora Três Estrelas, 2019).
O Secos & Molhados não era bossa nova, não era MPB, não era Jovem Guarda, não era Tropicália, não integrava os migrantes do Ceará nem da Bahia. Fazia parte de um levante de grupos alternativos que surgiram no período, como Made In Brazil, Joelho de Porco, Casa das Máquinas, O Terço e Lisergia (denominada depois de Tutti-Frutti por Rita Lee) e prepararam o terreno para a explosão do rock nacional nos anos 1980. Mas não havia nada parecido com o Secos & Molhados. Nem antes nem depois. Foi um fenômeno cultural e político que desafiou o conservadorismo com música, poesia e muita beleza.
Na madrugada da sessão de fotos para a capa do primeiro disco, Ney, João, Gérson e Marcelo tiveram que ficar horas sentados em cima de tijolos, encarando frio embaixo da mesa e, acima dela, calor, por causa das luzes. A toalha foi improvisada com plástico, a mesa era um compensado fino com buracos serrados para entrarem as cabeças. Era uma produção barata, mas de resultado excelente e único – assim como o próprio disco. Naquela sessão, os músicos estavam com fome. Sem dinheiro, tomaram apenas café com leite.
Seriam os últimos dias de restrições orçamentárias e anonimato. Ney, prestes a ser lançado como protagonista de um disco libertário, dissera que nunca mais se sentiu tão livre quanto naqueles anos antes do sucesso avassalador.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente, colunista da Continente Online.