Lançamento

Uma paixão assimétrica

Cepe Editora reedita o romance ‘Cruz de carne’, do pernambucano Cornélio Gomes Leal (Valença Leal), publicado originalmente em 1944

TEXTO VALENÇA LEAL

01 de Junho de 2020

Livro 'Cruz de carne' é um romance que prende o leitor numa trama repleta de emoção

Livro 'Cruz de carne' é um romance que prende o leitor numa trama repleta de emoção

ARTE SOBRE FOTO ALFRED CHENEY JOHNSTON

[conteúdo na íntegra | ed. 234 | junho de 2020]

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À PROCURA DE UM AUTOR
Por Homero Fonseca

Conheci o escritor dias desses. Fui à Secult tratar algum assunto e levei um livro para trocá-lo no escambo — uma iniciativa criativa do então seu coordenador de Literatura, professor Wellington de Melo. Valença Leal estava no balaio, vestido de brochura, modesto, franzino, quase esquálido, espremido entre volumes mais robustos. Seu título me chamou a atenção: Os humildes. Resolvi levá-lo, apesar da edição acanhada.

Valeu a pena. O livro de contos de Valença Leal, um autor praticamente desconhecido hoje até por seus conterrâneos, é uma pepita rara: são apenas seis narrativas em 92 páginas densas, bem-construídas, revelando um autor em pleno domínio dos seus direitos e deveres. Uma dessas obras que redespertam o prazer de ler, tão relegado hoje por uma teoria literária aristocratizante.

A leitura do livrinho atiçou a curiosidade: quem seria Valença Leal? Na internet, descobri pouca coisa: o pernambucano é autor de obra reduzida, composta por um livro de contos e um romance, além de dezenas de poemas, crônicas, contos e artigos publicados durante décadas na imprensa pernambucana e brasileira.

Era começo de 2015 e resolvi ir a Quipapá, cidadezinha da zona da mata pernambucana, terra natal do escritor, em busca de informações. Ninguém sabia de quem se tratava. Alguém me indicou dona Lourdes Oliveira, ex-tabelioa e moradora antiga da cidade. Dona Lourdes recordava, sim, do nosso homem, mas ele fora embora da cidade há muito tempo, assim como o restante da família. Lembrava-se, menina, de Cornélio Leal, jovem intelectual, metido com jornalismo e teatro. Gentil, ficou de tentar localizar uma antiga agregada da família Leal, que morava há décadas em Jaboatão dos Guararapes e talvez tivesse notícias de algum irmão ou irmã do escritor. Fizemos vários contatos telefônicos, mas a investigação não prosperava — apesar do empenho de minha informante. Infelizmente, dona Lourdes faleceu pouco tempo depois, aos 87 anos. Que a terra lhe seja leve.

Veio-me um estalo: Gerusa Leal, poeta e contista moradora de Olinda, a quem eu conhecia de bienais de livros. Passei-lhe uma mensagem indagando se sabia algo sobre o misterioso escritor. A resposta foi reconfortadora: “É meu pai”. Ela abriu as portas à minha pesquisa. Toda a família colaborou e outra filha do autor, Súnia, me pôs às mãos o arquivo pessoal do escritor, desorganizado e precioso.


O autor Cornélio Gomes Leal, conhecido como
Valença Leal. Imagem: Divulgação

Cornélio Gomes Leal nasceu em Quipapá, pequena cidade da zona da mata pernambucana, em 1913. Contista, romancista, poeta, crítico literário e tradutor, publicou pouco em livro: o romance Cruz de carne (Rio de Janeiro, Editora Pan-americana, 1944) e o livro de contos Os humildes, (Brasília, Thesaurus, 1994). Longuíssimo intervalo, exatos 50 anos, é explicado pelos mais próximos pelo perfeccionismo extremado do autor. Efetivamente, muitas das histórias curtas foram produzidas ainda nas décadas de 1940, 1950 e 1960 e depuradas ao longo do tempo pelo escritor sem pressa. Sobre essa escassa produção, afirmou o poeta e ensaísta Waldemar Lopes (1911-2006), nas orelhas do livro de contos:

“Valença Leal não é um exemplo raro na vida intelectual brasileira. O que com ele ocorreu terá acontecido a numerosos outros escritores em que não escasseavam condições para nos deixarem uma obra que, também sob o aspecto da quantidade, nos desse a exata dimensão do seu valor. No entanto, por falta de vaidade, desapreço à evidência de estímulos editoriais, contribuíram muito pouco para a produção bibliográfica nacional.”

Acrescento que, definitivamente, em literatura, quantidade pode ser totalmente irrelevante — estão aí Augusto dos Anjos e Raduan Nassar para demonstrar cabalmente.

De todo modo, o temperamento reservado do autor deixou uma lacuna sobre o longo hiato editorial. Sabemos, pelos seus arquivos, que ele se empenhava, especialmente na década de 1930, em publicar seus poemas e contos, mantendo correspondência frequente com a imprensa do Sudeste: em revistas como O Malho, A Cigarra, Carioca e Alterosa e jornais como A Notícia. Todos, à época, abriam generosos espaços para a literatura e alguns promoviam concursos literários em que votavam o público e consagrados homens de letras. Mal publicara o romance Cruz de carne, aos 31 anos, em 1944, ele o inscreveu no concurso O Romance do Ano, do jornal Folha Carioca. 

O certame durou dois meses e a escolha cabia aos leitores da revista e a uma comissão julgadora formada por críticos e escritores, entre os quais Adonias Filho, Afonso Arinos de Melo Franco, Alfonsus de Guimarães Filho, Álvaro Lins, Astrogildo Pereira, Aurélio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade, Diná Silveira de Queiroz, Fernando Sabino, Francisco de Assis Barbosa, Graciliano Ramos, Ledo Ivo, Lúcio Cardoso, Marques Rebelo, Manuel Bandeira, Murilo Rubião. Os vencedores foram Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector (1º lugar), Terras do sem fim, de Jorge Amado (2º), e Fogo morto, de José Lins do Rego (3º). O romance de Valença Leal ficou em 10º lugar, numa lista em que estavam A quadragésima porta, de José Geraldo Vieira (4º); O agressor, de Rosário Fusco (6º), e  Marco zero, de Oswald de Andrade (8º). Nada mal para um desconhecido estreante da província.

O romance do pernambucano causou certa repercussão nos meios literários da capital da República, a ponto de surgir um rumor de que Valença Leal seria o pseudônimo de um famoso escritor – o que não deixa de ser uma forma enviesada de reconhecimento:

Foi levantada, sem nenhum fundamento, a dúvida de que seja apenas um pseudônimo o nome do autor do romance Cruz de carne, Valença Leal, jovem escritor pernambucano bastante conhecido no seu estado. (Diário de Notícias, 13 de fevereiro de 1944)

A participação de Valença Leal na imprensa foi múltipla e duradoura. Aos 19 anos, estava entre os colaboradores do jornal O Ideal (“órgão de mundanismo e letras”), editado pelo poeta Waldemar Lopes em Quipapá, que duraria mais de cinco anos, somando 91 números, segundo o historiador Luís Nascimento. Aos 21, fazia parte da equipe da revista literária Matuta, lançada em maio de 1934. Em 1939, escreveu um folhetim para o jornal A Voz de Pesqueira intitulado Fim de vida. Aí, na cidade industrial do Agreste, centro produtor de derivados de goiaba e tomate, ele se fixara, trabalhando como guarda-livros na Fábrica Peixe. Logo tratou de fundar um grupo de teatro — a Sociedade Teatral de Amadores Pesqueirenses — que estreou em 1942 com a peça O interventor, de Paulo Magalhães, figurando no elenco ao lado de sua primeira esposa, Graciete. O espetáculo foi um sucesso, arrecadando na bilheteria 582 mil réis.

Por essa época, Cornélio Leal também se tornou professor de Português e Inglês do Ginásio Cristo Rei. E participou da caravana do Peixe Esporte Clube à cidade de Alagoa de Baixo (hoje Sertânia) para jogar com o América Futebol Clube, numa delegação chefiada pelo doutor Armando Brito em pessoa, diretor das Indústrias Peixe. Nosso franzino Cornélio seria um zagueiro durão? Um atacante arisco? Um meia-armador criativo? Nada disso. Um evento desses, naquele tempo, era um acontecimento social, com os visitantes recebidos com banquete, flores e discursos. Valença Leal foi na condição de orador oficial do grupo.

Quando a Ação Integralista Brasileira fez um comício no centro de Pesqueira, em 1934, para catequizar os pesqueirenses sobre as delícias do fascismo, Valença Leal foi também um dos oradores. Arroubos de juventude… Naqueles anos 1930 e 1940 no Brasil, profundamente dividido em termos ideológicos, um jovem letrado com sensibilidade política e social ou tinha simpatias pelo integralismo ou pelo socialismo, não havia meio-termo. Dom Helder Camara, por exemplo, à época jovem sacerdote, fez parte por um tempo das fileiras do integralismo. Na maturidade, nosso autor defenderá causas progressistas, como no artigo Democracia… para o povo, publicado no Jornal do Commercio, do Recife, em 25 de maio de 1946, em que preconizava uma democracia mais autêntica e participativa, ou no A resistência à reforma agrária, no Diario de Pernambuco de 21 de junho de 1985, em que denuncia a ação de grandes grupos nacionais e multinacionais contra uma melhor redistribuição da propriedade da terra no Brasil.

Valença Leal, a partir daquelas incursões juvenis em Quipapá e Pesqueira, não parou mais de colaborar com a imprensa pernambucana, publicando por longo tempo colunas como Colcha de retalhos, centrada em questões gramaticais, e Apontamentos, sobre estilo e linguagem, em que despontavam com frequência resenhas e críticas de obras nacionais e internacionais, até meados dos anos 1980. Numa das colunas, demonstra sensibilidade com o falar do povo, ao registrar uma frase de uma mulher, numa feira: “Ficou contente que nem um vintém dançando na bacia de um cego”.  Quando exercitava a crítica, demonstrava surpreendente acuidade para um comentarista sem formação acadêmica; quase sempre benevolente, analisava minuciosamente a obra em foco, atento para a fusão essencial forma-conteúdo.

Casado em segundas núpcias com Severina Barbosa Leal, a quem escrevera certa vez que “um homem instruído somente se interessa por uma mulher instruída”, resolveu entrar para a universidade junto com a esposa, em 1972, quando se aproximava dos 60 anos de idade. Foram ambos aprovados no vestibular da Universidade Católica de Pernambuco. Ela fez o curso de História, iniciando uma carreira acadêmica somente encerrada com sua aposentadoria. Ele entrou para o curso de Letras, mas abandonou-o ao fim do primeiro ano. Fiel ao estilo de poucas palavras, comentou apenas entre os íntimos que achara o curso “muito medíocre”.

Filho do ex-prefeito e tabelião Manuel Gomes Leal, patriarca que batizara todos os filhos, exceto um, apenas com o nome paterno, Cornélio Gomes Leal resolveu incorporar à assinatura literária o Valença materno. Uma rebeldia sutil a uma suposta tirania patriarcal ou simples homenagem à mãe, dona Olívia Valença? Ele nunca explicou. Deixou 11 filhos dos dois casamentos e dois livros de ficção merecedores da atenção do leitor contemporâneo mais exigente.

ROMANCE REALISTA/IMPRESSIONISTA
Cruz de carne foi classificado por Waldemar Lopes como “um romance de adolescente”. O amigo do autor era um intelectual refinado e, pelo visto, extremamente rigoroso. O livro tem merecimentos muito além dessa classificação severa. A começar pelo fato de Valença Leal ter 30 anos quando concluiu o texto, não se tratando exatamente de um garotão com espinhas na cara. E muito menos pela qualidade da obra que, se realmente não é um trabalho de plena maturidade, traz da juventude um frescor e uma garra notáveis, temperados pela pena segura do escritor consciente e criativo.

A narrativa de Cruz de carne é linear na maior parte do tempo, com elipses e lacunas bem-manejadas, espicaçando a curiosidade e a coparticipação do leitor na antevisão das soluções ou na própria construção do enredo. E é repleta de peripécias em doses compatíveis com a clave realista/impressionista do romance: ciúme, tentativa de assassinato, a busca do protagonista de seu lugar próprio no mundo e, claro, um caso de amor complicado.

Narrado em primeira pessoa, o romance começa assim: “Não houve solução de continuidade entre os meus últimos folguedos infantis com Mariana e as primeiras carícias amorosas”. É uma pista falsa. Essa sensação de continuidade sentida pelo protagonista-narrador não se amparará nos fatos. Não será contínua a relação entre os primos, moradores em fazendas vizinhas, mas cheia de hiatos. E há um salto entre as brincadeiras em que Mariana, menina e mais pequena, era inferiorizada pelos meninos infensos à delicadeza, e o despertar penoso do desejo e da paixão, sob o ângulo do protagonista Inácio. É uma paixão assimétrica: para ele, Mariana é tudo; ela, embora tenha uma queda pelo primo, está mais interessada em experimentar a vida.

Ela é impetuosa, franca, ativa, dona de uma sensualidade natural, uma energia dionisíaca a custo refreada pelas rígidas convenções da época. Ela povoa o tempo todo as lembranças e o imaginário do nosso tíbio herói, submergido no caldo espesso dos privilégios de classe, raça e gênero (expostos de maneira sutil no decorrer da narrativa). Mariana naturalmente não se resigna a viver na fazenda dos pais, à espera de um casamento. Sai de casa cedo para estudar e aparece nas férias para fazer ferver o sangue do primo. Este, quando se muda da fazenda para a pequena Quipapá, conhece na pensão a professora Consuelo, de origem humilde, bonita, equilibrada, conformada a se dedicar aos cuidados com a mãe doente. O perfeito reverso da outra.(...)


Capa do livro Cruz da carne, relançado este ano
pela Cepe Editora. Imagem: Reprodução

CAPÍTULO 1
Não houve solução de continuidade entre os meus últimos folguedos infantis com Mariana e as primeiras carícias amorosas. Crescemos ao lado um do outro, como duas plantas agrestes entretecidas pelas lianas. Meu pai e a mãe de Mariana descendem de uma velha família matuta, que conquistou, através do tempo, sólido conceito de probidade. Meu pai é ainda uma dessas expressões de fidalguia rural que tiveram os seus primeiros representantes nos senhores de engenho dos tempos coloniais. Alto, robusto, espadaúdo, voz estentórea e gestos autoritários, ele é bem uma figura representativa daquela época. Sua irmã, a mãe de Mariana, é uma bela senhora de busto opulento e braços esculturais. Coube-lhe a ela, por morte de meu avô e partilha dos bens levados a inventário, um engenho de rapadura, e a meu pai, uma fazenda de gado. Meu pai talvez preferisse lidar com os serviços do engenho, mas não o descoroçoou a contrariedade; assumiu o governo da fazenda com o seu ar sobranceiro de donatário de capitania.

Enquanto se conservou solteira, a senhora do Quelfes aconselhou-se com ele sempre que na administração do engenho surgiu qualquer dificuldade. Cometer-lhe por inteiro a direção dos serviços foi coisa em que minha tia nem sequer quis ouvir falar. O seu estado civil não a embargava de tomar conta do que era seu, disse, peremptória; e deixou-se ficar na casa-grande do engenho, na companhia de Leocádia, uma preta velha que a vira nascer. Dispensou tudo quanto se parecia a capataz, não queria deuses pequenos nas suas terras, ela mesma fiscalizaria tudo. E um dia correu a rebenque um trabalhador que lhe faltara com o devido respeito.

As terras da fazenda confinavam com as do engenho. Amiúde meu pai montava a cavalo e ia “dar uma vista de olhos por lá”.

— Como vamos com essa força, d. Aspásia?

— Como Deus é servido, coronel.

Tratavam, então, de negócios, de um modo compenetrado e amistoso que excluía a ideia de que ali estivessem a conversar dois irmãos, ou duas pessoas de sexos diferentes.

Leocádia coava uma xicarazinha de café, ou servia coalhada. À saída, meu pai ponderava:

— Mas a senhora aqui está muito desamparada, d. Aspásia. Sou de opinião que uma mudança para a nossa companhia, lá na Alvorada, lhe faria bem.

— Não resta dúvida, coronel, que isso me daria muito gosto. Mas não posso desertar das minhas obrigações.

Recomendava-se à cunhada, mandava beijos e abraços aos meninos e aprazava uma visita para dia de mais lazer.

Eu tinha, então, quatro ou cinco anos e era o terceiro da série; mais velhos do que eu ainda existiam dois, e o mais novo de meus irmãos contava apenas dois anos de idade.

Uma tarde enxuta de setembro, papai pôs-nos a todos no cabriolé e levou-nos em passeio ao engenho de tia Aspásia. Ficou-me a lembrança de uma estrada larga e chã, ladeada de cajueiros e mulungus, e da casa senhorial do engenho, verdadeiro castelo a que não faltavam nem torres, nem ameias.

Tornamos lá por ocasião da botada. O engenho estava todo embandeirado e a casa-grande regurgitava de gente. Bebi caldo de cana e comi doce de coco e farinha de castanha. Quando regressamos, boquejou-se no caminho que seu Fileno pedira tia Aspásia em casamento.

Nos meses que se seguiram, nenhum acontecimento extraordinário veio animar as relações do pessoal da fazenda com o do engenho, a não ser a inauguração de uma linha telefônica, que poupou a meu pai algumas montadas a cavalo e serviu de modelo para a construção de uma infinidade de telefones de mentira, em que demos cabo de quanta linha de costura pôs-se-nos ao alcance da mão.

Até que chegou o dia do casamento de tia Aspásia. Fomos de véspera para o Quelfes. Mataram-se carneiros, porcos e perus. Papai mandou vir da rua biscoitos e bebidas. A casa toda em rebuliço de 5 horas da manhã até meia-noite. Fôrmas e mais fôrmas de bolos, compoteiras e compoteiras de doces. A voz roufenha de Leocádia:

— Esses meninos hoje quere virar tetéu. Vão se deitare, bando de não-sei-que-diga!

No outro dia bem cedo, a azáfama foi na cavalariça: embornais de milho, selas, relinchos, bufidos, milho babado pelo chão, algazarra de moleques — lava cavalo, sela cavalo, leva cavalo para os convidados da rua. O cabriolé não teve descanso o dia todo. Veio o padre, veio o prefeito, veio a família do juiz... Tia Aspásia mandou botar o engenho. Houve missa campal. Depois da missa, realizou-se o casamento. O padre fez uma prática sobre o sacramento do matrimônio. A banda de música, empoleirada num coreto armado na frente da casa, atacou uma marcha triunfal. Seguiram-se os comes e bebes, e as danças, até manhã velha, quando se me cerraram os olhos e repousei a cabeça, pesada de sono, no colo engordurado de Leocádia. Só acordei à tardinha, porque mamãe me sacudiu.

— Vamos embora, meu filho, já é hora da gente voltar para casa.

Daí por diante o Quelfes não teve mais segredos para mim, integrou-se no mundozinho conhecido que eu circungirava frequentemente. Eu já orçava por oito anos e tinha fama de ser um menino precoce. Lia por cima o segundo livro de Felisberto de Carvalho e engicava com “os pedaços pretos escritos com tinta branca”. Era mais estudioso do que o comum dos meninos da minha idade, e o gosto que hoje sinto para a narração, é filho do interesse com que ouvia as histórias de trancoso da preta Benedita.

A Nova Esperança era uma propriedade muito populosa, a menos de meia-légua da Alvorada. Era lá que funcionava a escola onde eu e meu irmão mais velho estudávamos. Todo dia montávamos a cavalo e saíamos com as nossas bolsas a tiracolo.

A estrada tinha tantas voltas que se diria feita por formigas. Nós a queríamos ainda mais tortuosa. Soltávamos a rédea e deixávamos os animais irem a passo.

De onde a onde o caminho se repartia, um braço para um lado, outro para outro, contornando um olho-d’água ou um capão de mato. Em lugar de seguirmos o mais curto, pelo mais comprido é que tomávamos. Se avistávamos um araçazeiro carregado, íamos encher os bolsos de araçás. Um ninho era justíssima razão para detença.

Parávamos também para pegar cigarras e soltá-las com palitos enfiados no abdômen.

A professora era uma magrizela quarentona, de braços cheios de veias e de olhos encovados. Oxigenava os cabelos, depilava as sobrancelhas e arrasava com pó e carmim as carquilhas do rosto. Vivia queixando-se do prefeito porque não a removia para a sede. Outras menos antigas no magistério e menos instruídas do que ela, tinham direito a uma cadeira na zona urbana.

Nas mesas sobre que escrevíamos, viam-se ranhuras, talhos, incisões e grandes manchas de tinta derramada. Os bancos desengonçados e de fasquias rachadas mordiam-nos de vez em quando as nádegas. Na parede, havia um mapa do Brasil e uma paisagem pintada pela professora, com um céu azul-ferrete e um sol bem vermelho, de cuja redondeza os meus olhos, e creio que os de toda gente, duvidavam. 

A tabuada era estudada em voz alta, com muita música e pouquíssima gramática:

2 vez 5 = 10, 9 foras 1
2 vez 6 = 12, 9 foras 3

E, ao conjugar os verbos, cometíamos erros de tabuada, estropiando a prosódia.

A professora tinha dois vícios de linguagem: lambdacismo e rotacismo. Na sua boca, “mar” era antônimo de “bem”, e “mal” era uma grande extensão de água salgada.

A maioria dos alunos eram filhos de moradores. Iam à escola de pés descalços e paletó sem camisa, com o peito à mostra. Queriam somente aprender a ler e a contar. Nós, filhos de fazendeiros e de senhores de engenho, é que nos dávamos ao luxo de estudar gramática, geografia e história. E ainda assim postergávamos a gramática, desconfiávamos da geografia e não dávamos fé à história.

2
Mamãe votava-me no embrião à carreira eclesiástica. Com ser eu um buliçoso incorrigível, ela descobriu em mim não sei quê imponderável halo de santidade, não sei quê místico perfume de incenso e de mirra. Seu Fileno duvidava:

— Qual, esse é um cabra da rede rasgada!

Papai franzia a testa, severo.

— O que ele é, é um preguiçoso de marca maior.

Lá em casa todos trabalhavam. Meu irmão mais velho lidava com o gado: curava bicheiras, apartava os bezerros, ajudava a tirar o leite das vacas. Passava a noite coçando-se, virando-se na cama, agoniado com os carrapatos. Pedro fazia de administrador: tomava conta do eito e apontava as diárias dos trabalhadores. Os dois mais novos faziam pequenos serviços, bem como dar milho às galinhas e catar, no chão, à sombra do cafeeiro, os carocinhos de café derrubados por descuido na apanha.

Somente eu não fazia nada: quando não estava trelando, estava sentado na soleira da porta, lendo um velho exemplar, a que faltavam páginas, das Mil e uma noites.

Às vezes, eu acordava de madrugada e ia assistir à botada do engenho. Seu Fileno já lá estava à frente do serviço. Grandes candeeiros de flandres suspensos dos pilares enfurnados. Negros seminus, mexendo-se na meia obscuridade, como numa visão de bruxedo.

O fornalheiro na boca da fornalha, dando de comer ao fogo com uma forquilha. Depois se baixava, bulia no brasido com os carvões dos dedos e apanhava uma brasa para acender o cachimbo. Tinha os cabelos do peito chamuscados como cerdas de porco passado no fogo. Parecia um diabo de catecismo ilustrado.

A fumaça branca e fragrante do mel; fumaça também do corpo quente dos negros, na madrugada fria. Quando içavam uma tacha as línguas do fogo lambiam o assentamento; e à mente me vinha o inferno que me pintava a preta Benedita, com grandes caldeirões cheios de chumbo derretido, em que se debatiam as almas penadas.

Assim que rompia o dia, tia Aspásia aparecia à porta da casa e acenava para o lado do engenho: era o convite para o café. Seu Fileno dava-me uma pancadinha na cabeça e dizia:

— Vamos ao moca, seu Inácio.

Eu passeava uns olhos inquiridores pelos cantos da casa. Ouvira mamãe comentar que no engenho se esperava gente nova. Que espécie de gente era essa que havia de chegar ao engenho? Não via ninguém, além da tia Aspásia e de Leocádia.

Depois do café, ia tomar banho no açude em companhia dos moleques. O açude transbordava sobre imenso lajedo de pedra inteiriça e escorregadia. Os moleques se desnudavam e brincavam de deslizar na superfície lodosa. Em seguida, com as nádegas polidas da fricção, atiravam-se gostosamente à água fria. Eu gostava dos negrinhos como se fossem meus irmãos. E queria de coração a Benedito, um moleque taludo e enxuto, que me secundava em todas as brincadeiras.

Quando voltava para casa, tinha o rosto vermelho de sol e os lábios rachados.

Um dia o telefone tilintou para anunciar aos moradores da Alvorada que no engenho havia novidade. Alvorocei-me todo com a notícia! Até que enfim chegara a tal gente dos comentários misteriosos de mamãe. Corri ao engenho, na esperança de lá encontrar uns dois ou três meninos da minha idade, que aumentariam o número dos meus companheiros de traquinada. Que meninos seriam esses, e o que viriam fazer no engenho, eu não suspeitava; aceitava, apenas, como provável, e provada agora, a hipótese da sua existência. E qual não foi a minha decepção, quando vi que se tratava de criança recém-nascida!

Uma fumacinha trêmula desprendia-se dos cueiros a enxugar ao fogareiro. O perfume forte de incenso despertou-me na lembrança o cheiro da missa celebrada no dia do casamento de tia Aspásia.

— Venha ver sua priminha — disse-me ela, docemente.

Aproximei-me da cama e vi uma carinha arroxeada, que contrastava com os seios brancos da parturiente. Causou-me nojo — o nojo que me causavam as minhocas — e afastei-me com vivacidade.

— Está com medo? — perguntou-me, sorrindo.

Foi então que atentei na maceração do seu rosto, na palidez dos seus lábios. Lembrei-me de mamãe, quando dera à luz Epaminondas. O mesmo ar enfermiço, o mesmo aspecto cansado.

— Não quer nem ao menos saber como ela se chama? — insistiu, vendo que me ia de retirada.

A última sílaba de “chama” já me alcançou na sala de jantar, e à enunciação do nome — Mariana — que me pareceu desmarcado para exprimir coisa de tão reduzidas dimensões, já me metera pelo corredor, fugindo manifestamente àquela que seria, depois, o astro poderoso à roda do qual gravitaria a minha vida.

3
Aos cinco anos de idade, Mariana aflorava-me quase o ombro. Era uma criança graciosa, de cabelos e olhos pretos, lábios vermelhos e nariz petulante.

As minhas correrias pelo engenho degeneraram, então, à leitura do Robinson e das penetrações bandeirantes (minha mania, agora, era a História do Brasil), em explorações de terras incultas. Dividi o país em duas zonas, que pomposamente denominei — uma, que acabava onde começavam as capoeiras, mundo conhecido, e outra, que começava onde acabavam os partidos de cana e os cercados, mundo desconhecido. O mundo conhecido compreendia, portanto, a casa-grande e suas dependências, o engenho, o açude, os partidos de cana e os currais de gado. Tudo mais era o ignoto.

Consistia a minha exploração em abrir caminhos na capoeira e plantar casas à sombra de raquíticas caboatãs a que chamava pretensiosamente pau-brasil. Os caminhos não passavam de angustas veredas e as casas eram feitas de vara e tinham por coberta folhas verdes de carrapateira.

Os meus companheiros de aventura eram os mesmos moleques de engenho dos banhos no açude. Obedeciam-me como cães amestrados. Um dia, deu-me na veneta repetir o episódio do enforcamento do filho de Fernão Dias: agarrei um dos negrinhos pela nuca, passei-lhe uma corda ao pescoço e, trepando-me a uma árvore e pondo-me a cavaleiro de um galho, mandei aos outros que o içassem nos braços, enquanto eu amarrava a corda ao ramo e o deixava a balouçar no espaço. Os olhos se lhe esbugalharam, a língua pendeu-se-lhe da boca escancarada e, se não fosse a corda velha e gasta de muito haver servido para amarrar no campo animais a pastar, o pretinho teria tido a sorte trágica do pobre José Reis. O baraço rompeu-se e ele caiu, a pesar meu, porque se malograsse a reconstituição do fato histórico, e a meu prazer, porque se desfizesse a careta medonha da morte por asfixia, que lhe vi no rosto cor de terra, um instante, e que me apavorou.

A nossa ferramenta eram enxadas e foices velhas, facões de mato com o gume cheio de mossas, facas dentadas, trinchetes enferrujados, toda a sucata, enfim, da fazenda e todo o refugo da cozinha da casa-grande.

Os moleques iam na frente brandindo as foices embotadas, o rosto luzidio de suor, as canelas cinzentas de poeira, as mãos cheias de talhos, os pés cambados de espinhos; eu ia em seguida, empunhando uma faca de rasto que fora esquecida no copiar por um boiadeiro a quem tia Aspásia um dia dera pousada; e Mariana fechava a retaguarda no seu passinho frouxo de bezerro novo.

Constrangia-me às vezes não saber a que título aceitar a sua participação nas minhas brincadeiras: o sexo de um lado e a idade de outro, eram obstáculos a que a tivesse em conta de camarada ou a considerasse minha mulher. Pensava que poderia fazer de filha, mas não me parecia convincente que um explorador de terras andasse com uma filha cosida à sua sombra, como qualquer burguês pacato e estúpido. Quando Tonico tomava parte na brincadeira, eu resolvia a dificuldade casando-a com meu irmão mais novo. Bancava, então, o aventureiro e solitário que trocara a comodidade de uma espreguiçadeira e as solicitudes da família pela fadiga das grandes caminhadas e o perigo das feras.

Benedito era o meu “Guia Lopes”. Eu o chamava Guia Lopes na mais absoluta ignorância de que o segundo nome fosse um nome próprio de pessoa. Lera em uma crestomatia um capítulo da Retirada da Laguna intitulado O Guia Lopes, e pareceu-me que as três palavras se davam as mãos acordemente para designar um simples ofício. Pela mesma razão, Benedito não me agradecia a comparação com o grande sertanista; acudia aos chamados — Guia Lopes, daqui, Guia Lopes, dacolá — com a alegria inconsciente e trêfega de um cachorrinho. Eu lhe soprava a direção: 23 graus e 43 minutos latitude norte. (A precisão matemática era devida a Julio Verne.) E como ele não sabia o que aquilo queria dizer, valia-me de linguagem mais acessível: apontava um rumo qualquer (que eu também não colhia patavina dessa história de latitudes), e seguíamos muito contentes, muito compenetrados do papel de desbravadores. Quando fazíamos alto em alguma clareira para descansar, sacudíamos o pó da jornada, mas não conseguiam os pretinhos ver-se livres do pólen que lhes caíra na carapinha.

Era a hora dolorosa e temida da extração dos espinhos. O paciente deitava-se, eu lhe amarrava as pernas e as mãos, para evitar qualquer manifestação violenta de desagrado, e, com uma faca de ponta, como vira certa vez um almocreve fazer, esgaravatava impiedosamente a planta do pé, onde quer que um pontinho preto denunciasse a existência de um espinho. E quando o pontinho preto não era espinho, mas pulga de bicho, eu exclamava, cheio de heroica indignação:

— Grandessíssimo porco! Criando bicho-de-pé em vez de estrepar-se!

Se bem que em nossas viagens de exploração nunca estivéssemos fora de casa por mais de quatro horas, pretextávamos fome cavilosamente para justificar o cozimento de alimentos no mato, ou o preparo de farnel, que consistia em farinha, carne seca, rapadura e frutas. Se opinávamos pelo cozido, Mariana ficava tomando conta da panela e continuávamos a excursão, até que se extinguisse o prazo que concedêramos ao fogo para cozer a comida. Como, porém, ele, o fogo, era feito de gravetos e Mariana nada entendia dos deveres, que lhe inculcávamos, de vestal, acontecia, não raro, que, ao regressarmos, encontrávamos o lume apagado e o feijão tão cru que, plantado, nasceria. Comíamo-lo assim mesmo. Aliás, de comer feijão cru nunca nos adveio mal algum; o que nos pôs de olhos fundos e de olheiras — consequência romântico-jocosa de um bruto desarranjo intestinal — foram umas tantas espigas de milho verdes que, um dia, a brincar de índios, comemos cruas, numa demonstração prático-simbólica de antropofagia canibalesca.

Embora Mariana fosse tão pequena que, para tomar conhecimento de sua existência, eu tinha de fazer importantes concessões à meninice em prejuízo do desejo, que nutria, de parecer homem, mamãe censurava tia Aspásia por ela “soltar a filha com uma porção de meninos machos”. A esse respeito, mamãe era de um rigorismo cenobítico. Onde os outros viam inocentes cabecinhas louras, ela enxergava a oposição dos sexos. Era inimiga rancorosa das escolas mistas, e creio que, se fosse consultada a propósito da gestação de um casal gêmeo, oporia sérias objeções à Natureza.

O vaqueiro da fazenda era pai de uma menina levada do diabo. Trepava nas árvores sem a mínima preocupação de recato e montava a cavalo em osso, escarranchada. Quando mamãe me via de parceria com ela em folguedos nada femininos, (luta de corpo, quedas de braço, corridas a cavalo), chamava-lhe a ela sem-vergonha e gritava-me que “puxasse para casa”.

— Já estou cansada de lhe dizer que não quero você brincando com menina-feme.

CORNÉLIO GOMES LEAL (Valença Leal) nasceu em Quipapá-PE, em 1913. Lançou o romance Cruz de carne (1944) e o livro de contos Os humildes (1994) e publicou poemas, crônicas, resenhas e críticas literárias em vários jornais. Manteve as colunas Colcha de retalhos, na qual debatia questões gramaticais, e Apontamentos, na qual escrevia sobre estilo e linguagem.

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