Lançamento

O massacre da Granja São Bento

Leia os trechos iniciais do livro sobre o extermínio, em Pernambuco, de seis guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), com lançamento este mês pela Cepe Editora

TEXTO Luiz Felipe Campos

28 de Agosto de 2017

Os guerrilheiros assassinados na Granja São Bento, em Pernambuco, são o tema do livro da Cepe

Os guerrilheiros assassinados na Granja São Bento, em Pernambuco, são o tema do livro da Cepe

Fotos Divulgação

O Capitão do Exército dos Estados Unidos Charles Rodney Chandler era um dos muitos militares estrangeiros matriculados em cursos civis de especialização no Brasil, em 1968, por meio de programas de intercâmbio entre os governos brasileiro e norte-americano. A bolsa de estudos na Escola de Sociologia e Política da Fundação Armando Álvares Penteado, localizada no bairro nobre de Higienópolis, região central de São Paulo, foi uma das gratificações que o capitão recebera na condição de veterano da Guerra do Vietnã – país onde, desde 1965, os Estados Unidos mantinham tropas militares.

Nascido em 23 de julho de 1938, na pequena cidade de Claiborne Parish, estado da Louisiana, Chandler graduou-se em 1962, na Academia Militar de West Point, estado de Nova York, a principal escola de oficiais dos Estados Unidos. Era casado com Joan Koteletz Chandler, com quem tinha quatro filhos: Darryl, Jeffrey, Todd e Luanne. Na manhã de 12 de outubro de 1968 – mesmo dia em que, no município de Ibiúna, a pouco mais de 70 quilômetros da casa de Chandler, a polícia desbaratava um imenso congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), levando presos 719 estudantes –, o capitão retirava sua perua Chevrolet Impala, em marcha à ré, da garagem de sua casa, na Rua Petrópolis, 375, bairro do Sumaré. Pelo retrovisor, Chandler percebeu quando teve a saída bloqueada por um Fusca. Do carro, saltou um homem com um revólver Taurus, calibre 38, e desferiu seis tiros à queima-roupa. Em seguida, outro homem desceu do automóvel e, com uma rajada de metralhadora INA, calibre 45, acertou mais 14 tiros no capitão. A 15ª bala não saiu porque o mecanismo automático da INA travou. Sua esposa Joan e o filho Jeffrey, de quatro anos, que abrira o portão da garagem, assistiram a Charles ser devorado pelos tiros de metralhadora. De dentro da casa, Todd, de três anos, escutou os disparos e correu para fora, onde encontrou o pai morto no banco do Impala.

Após a execução, a família Chandler embarcou em um avião militar de volta aos Estados Unidos, onde o capitão foi sepultado com honras militares e postumamente promovido a major.

A autoria do assassinato foi reivindicada por um grupo até então pouco conhecido pelos órgãos de inteligência da repressão: a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). A sentença de morte do capitão fora decretada um mês antes por um tribunal revolucionário capitaneado pelos guerrilheiros Onofre Pinto, o Ari, e João Carlos Kfouri Quartim de Morais, o Maneco, ambos pertencentes ao novo grupo armado.

A proposta de execução de Chandler foi levada à VPR por Marco Antônio Braz de Carvalho, o Marquito, dirigente do Agrupamento Comunista de São Paulo e homem de confiança de Carlos Marighella – àquela altura, o mais procurado pelo regime militar. A alegação de que o capitão, como veterano do Vietnã, era um agente enviado pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA, para assessorar o governo brasileiro no combate à subversão foi suficiente para a aprovação do que os guerrilheiros chamaram de justiçamento.

A partir de então, a militante Dulce Maia, a Judit, foi incumbida de apurar e fazer levantamento da rotina do capitão e seus horários de entrada e saída de casa. A sentença decretou que o norte-americano deveria ser executado em 8 de outubro, no primeiro aniversário de morte de Ernesto Che Guevara. Naquele dia, no entanto, o capitão não saíra de casa, obrigando os guerrilheiros a adiar a ação.

Por volta das 7h do dia 12, conduzindo o Fusca roubado dias antes, Pedro Lobo, um dos fundadores da VPR, deu início à operação de justiçamento. Conduziu o carro até o bairro de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, onde buscou Diógenes José Carvalho, o Luís, e, em seguida, à Avenida Doutor Arnaldo, onde Marquito os aguardava num ponto de ônibus, de terno, gravata e óculos escuros. De lá, os três iniciaram o percurso de aproximadamente três quilômetros até o número 375 da rua Petrópolis, no Sumaré. Levavam consigo um pequeno arsenal: uma metralhadora INA acompanhada de três carregadores com 30 balas cada, dois revólveres, uma granada e uma carabina M-2, que seria usada em caso de serem perseguidos pela polícia.

Às 8h15, o filho do capitão abriu o portão da garagem. O primeiro a efetuar os disparos, com o revólver, foi Diógenes. Marquito desceu em seguida e metralhou o oficial norte-americano. Lobo permaneceu no carro durante a ação, que não durou mais do que alguns segundos. Diógenes ainda mirou o Taurus em direção à esposa do capitão, que gritava incrédula, mas não atirou. Antes de fugirem do local, os guerrilheiros deixaram panfletos com as mensagens:

“Justiça revolucionária executa o criminoso de guerra no Vietnâme, Chandler, e adverte a todos os seus seguidores que, mais dia menos dia, ajustarão suas contas com o Tribunal Revolucionário”; “O assassinato do Comandante Che Guevara, na Bolívia, foi cometido por ordem e orientação de criminosos de guerra como este Chandler, agente imperialista notório, e responsável pela prática de inúmeros crimes de guerra contra o povo do Vietnâme”; “O único caminho para a revolução no Brasil é a luta armada”; “A luta armada é o caminho de todo revolucionário no Brasil”; “Criar um, dois, três,vários Vietnâmes.”

No depoimento que deu origem à sua biografia, Pedro Lobo negou que o filho do capitão norte-americano estivesse por perto. “Observei toda a operação e não vi nenhuma criança por lá. Isso foi a polícia que inventou para nos difamar”. O fato é que, por meio do assassinato de Chandler, a esquerda armada enviava uma mensagem clara à ditadura: violência seria, a partir de então, combatida com violência.

*****

A escolha pelos meios armados como estratégia de combate ao regime parecia inevitável. Em um conhecido texto publicado na revista Tricontinental, em abril de 1967, Ernesto Che Guevara já sustentava que era preciso criar na América Latina muitos Vietnãs – ou seja, grandes focos de resistência armada às tiranias locais, que guardavam entre si ao menos um ponto em comum: o apoio explícito dos Estados Unidos, imbuídos da missão geopolítica de conter o avanço do ideário socialista na América Latina.

Entre 31 de julho de 1967 e 10 de agosto de 1967, a cidade de Havana, em Cuba, recebeu a 1ª Conferência da Organização de Solidariedade aos Povos da América Latina (OLAS). A abertura da conferência aconteceu no salão do hotel Habana Libre, em Vedado, a cerca de quatro quilômetros do centro histórico da capital cubana, reunindo centenas de organizações comprometidas com a causa socialista na América Latina.

O texto final pregava “a necessidade do estabelecimento de um comando unificado político e militar, para a condução da luta armada, na estratégia de libertação nacional contra o imperialismo ianque”. E concluía: “Nós, revolucionários da nossa América, da América ao Sul do Rio Bravo, sucessores dos homens que nos deram a primeira independência, armados de uma vontade inquebrantável de lutar e de uma orientação revolucionária e científica e sem outra coisa a perder além das cadeias que nos oprimem, afirmamos que nossa luta constitui uma contribuição decisiva à luta histórica da humanidade para livrar-se da escravidão e da exploração. O dever de todo revolucionário é fazer a revolução.”

Movimentos guerrilheiros eclodiram em todo o mundo, influenciados basicamente por duas escolas revolucionárias: a chinesa e a cubana. A primeira propunha a guerrilha a partir do campo, dirigida pelo partido revolucionário, prevendo uma guerra prolongada e difícil. Era a estratégia que estava derrotando os Estados Unidos no Vietnã. E a segunda, de caráter mais urgente, previa a formação de grupos guerrilheiros e início imediato de ação armada, para construir um exército popular. A VPR – e a maioria das organizações formadas no Brasil – decidiu pela escola de Havana, onde boa parte de seus militantes havia se exilado e recebido treinamento armado após o golpe que depôs João Goulart, em 1964. O novo grupo foi formado a partir de remanescentes da Política Operária (Polop) e do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) – fundado pelo político gaúcho Leonel Brizola. Um de seus diferenciais em relação às demais organizações armadas era a origem militar de boa parte de seus membros, vindos principalmente da Marinha e do Exército.

Em 13 de dezembro de 1968, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), esgotaram-se os meios convencionais de oposição à ditadura: o Congresso Nacional foi fechado, entidades estudantis e sindicatos foram colocados na clandestinidade e manifestações populares de rua foram proibidas. O resultado disso, como verifica o relatório do projeto Brasil: Nunca Mais (1985), desenvolvido pelo ex-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, foi a hipertrofia da clandestinidade. Os setores que antes combatiam o governo pelos meios legais foram empurrados para os porões da vida clandestina. “De 1969 em diante, o que se registra é, então, uma nítida regressão das manifestações estudantis em benefício do crescimento das ações clandestinas e das operações armadas”, cita o relatório. O documento também informa que as organizações armadas eram compostas, essencialmente, por estudantes universitários, sindicalistas e, em menor parte, por camponeses e operários.

Alguns dos principais órgãos de repressão ainda não haviam sido criados antes do AI-5. O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/Codi) e a Operação Bandeirantes (Oban) foram montados apenas em 1969. A repressão passou a reconhecer a guerrilha como modalidade nova de subversão, para a qual ainda não estava preparada. […]

O INFORMANTE
O companheiro Jônatas precisou percorrer mais de 3.500 quilômetros, ao longo de quatro países, antes de desembarcar em Santiago do Chile, na noite de 22 de novembro de 1971, uma segunda-feira quente de fim de outono. O percurso até a capital chilena obedecia ao rigor dos esquemas de segurança que orientavam a vida na clandestinidade. O transporte aéreo era opção descartada, já que os aeroportos eram como ratoeiras para gente envolvida em atividades políticas consideradas ilegais. Era preciso ainda que o trajeto fosse fragmentado em várias paradas – para se certificar de que não estava sendo seguido.

Sempre de ônibus, partiu de São Paulo para a cidade fronteiriça de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Na Argentina fez paradas em Santa Fé, Córdoba e Mendoza, de onde seguiu pela Carretera Andina para Santiago, a oeste da Cordilheira dos Andes – seis horas de uma das mais charmosas viagens do continente, atravessando o cordão montanhoso com vista para o monte Aconcágua, ponto mais alto das Américas e do Hemisfério Sul, a quase 7 mil metros acima do nível do mar. 

Na mesma noite, hospedou-se no Splendid Hotel. O tempo era curto. Precisava estabelecer contato com os colegas da VPR exilados em Santiago para viabilizar um projeto no mínimo audacioso: a volta da militância armada ao Brasil com um reagrupamento guerrilheiro na região Nordeste. No entanto, fosse em Santiago, Havana ou Paris, o assunto entre os exilados brasileiros era só um: a deduragem havia se tornado o esporte número um do Brasil. As grandes cidades estavam abarrotadas de gente infiltrada e informantes da polícia. A própria VPR já havia decidido pela desmobilização e a convocação de um congresso para discutir o futuro da organização. 

Em 7 de agosto daquele ano de 1971, um comunicado do Comando da VPR no Brasil determinou: “Suspensão das ações armadas; suspensão de reuniões com condições de segurança precárias; redução ao mínimo indispensável à circulação dos militantes; estabelecimento de contatos apenas encaminhamentos urgentes e comunicações (suspensão da duplicidade de contatos com outras organizações); comunicação imediata às outras organizações da atual perspectiva política da organização, isto é, que a organização está praticamente extinta no Brasil e que estamos desmobilizados definitivamente; criar excepcionais condições de segurança para todos os quadros queimados”. O mesmo documento avisa aos militantes da Vanguarda no exterior: “A O. (organização) no Brasil chegou agora ao esgotamento total. Estamos sem as mínimas condições de atuação e sem possibilidades, por mais remotas, de tirar uma definição consequente, que sirva de guia para uma prática revolucionária.”

*****

Manuel Cabieses Donoso, chefe de redação da revista Punto Final, que chegava quinzenalmente às bancas de Santiago, recebeu Jônatas em seu escritório às 17h daquela terça-feira, 23 de novembro. O jornalista, um combativo esquerdista de bigode cheio e cabelos repartidos, explicou ao brasileiro que a maneira mais simples de contatar seus compatriotas seria ir direto à Embaixada de Cuba, onde havia uma pessoa encarregada de tais assuntos. Deixou ainda o telefone de sua irmã, Mercedes Cabieses, que talvez pudesse ajudá-lo.

Na mesma noite, não viu sinal do prédio diplomático no endereço fornecido por Cabieses, Avenida Los Leones, 1346, no elegante bairro da Providência. Ficou sabendo que a chancelaria havia mudado de endereço, agora sediada na esquina das ruas Los Estanques e Pedro de Valdívia, a menos de um quilômetro dali. Era tarde e ligou para Mercedes Cabieses.

Ela contou que, depois da eleição de Salvador Allende, quase 10 mil brasileiros atravessaram o continente com destino ao Chile, entusiasmados com as promessas de socialismo do novo chefe de Estado. Esperavam encontrar um clima propício que assegurasse, nas palavras dela, além de cama e mesa, um entrosamento com os partidos de esquerda chilenos – o que, de acordo com ela, não aconteceu. Passaram dificuldades para arranjar emprego, estiveram sob constante vigilância policial, e foram avisados pelo próprio ministro do Interior que seriam expulsos caso tratassem de política. Alguns deles foram procurados pelo Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), que pensava em aproveitar experiência e instrução técnica adquiridas em Cuba. O MIR defendia a legalidade do governo e vivia uma guerra aberta contra o Patria y Libertad, grupo paramilitar de extrema-direita, que assinava seguidos atentados para desestabilizar Allende.

– Tenho uma amiga que pode ajudá-lo – disse Mercedes.

Entre as dezenas de brasileiros exilados no Chile, Jônatas buscava um velho conhecido com quem estreitara relação nos tempos de Havana: Onofre Pinto, paulista de Jacupiranga, ex-sargento do Exército e mais forte liderança da VPR, o único capaz de viabilizar seus projetos de desembarcar a luta armada de volta no Brasil.

*****

A recepcionista da Embaixada de Cuba no Chile encaminhou Jônatas para a sala de um homem chamado Julián. Foi recebido de imediato. Antes de assumir o posto na embaixada, Julián visitara alguns brasileiros refugiados ou clandestinos em Cuba e já contava com a informação de que a regional de São Paulo da VPR estava queimada com gente infiltrada.

– Onde foi parar o Palhano? – perguntou Julián.
– Foi preso em São Paulo. Talvez esteja morto – respondeu Jônatas.

Aluísio Palhano, 49 anos, ex-presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, entrou no Brasil vindo de Cuba ainda em 1970, acompanhado de companheiros de organização. Foi preso em 9 de maio de 1971, em São Paulo, e levado à Casa da Morte, em Petrópolis, na região serrana do Rio, onde morreu 11 dias depois.

Julián sabia apenas que Palhano engrossava a lista dos companheiros caídos nas mãos da repressão na capital paulista, e isso era o suficiente para desconfiar. Bombardeou o brasileiro com perguntas – “Morou em Cuba? Quem o despachou de volta para o Brasil? Como entrou no Chile?” Buscava cruzar informações, ligar pontos, mas Jônatas foi convincente, dando nomes, locais, fazendo a autocrítica dos erros práticos da organização. Era uma de suas especialidades: falava sempre de uma forma envolvente, sedutora, com um magnetismo que dominava seu interlocutor.

O diplomata anotou o endereço do Splendid Hotel e assegurou uma resposta até a segunda-feira seguinte, 29 de novembro de 1971. Jônatas não contava com o prazo extenso, mas foi obrigado a entender. O motivo: o primeiro-ministro de Cuba, Fidel Castro, estava em Santiago desde o dia 10 daquele mês, em agenda oficial. A visita, prevista para durar dez dias, já entrava pela sua segunda semana, e toda a embaixada acompanhava de perto a agenda de Fidel. Julián prometeu que trataria do caso com urgência, mas admitiu que só conseguiria responder após o retorno de Castro a Cuba.

O retorno prometido nunca aconteceu, mesmo depois de esgotado o prazo estabelecido por Julián. Jônatas insistiu telefonando para a embaixada, mas a resposta era sempre a mesma: Julián não estava. Sabia o significado das evasivas: não desejava tratar do assunto. A visita de Fidel ao Chile continuava, dia após dia, e só terminaria no início de dezembro.

*****

– Tenho uma notícia para você – falou Mercedes por telefone.

Era uma sexta-feira, 26 de novembro de 1971. Marcaram um encontro e poucas horas depois Jônatas foi apresentado à ativista do MIR em quem apostava todas as suas fichas.

– Estou procurando algum brasileiro da VPR – contou o brasileiro.
– Conheço José Duarte – disse a moça.
– Pode marcar – respondeu Jônatas.

Caiu como uma luva. A sorte lhe havia sorrido pela primeira vez em muito tempo, e dali em diante seria sua inseparável companheira. Ponto marcado para a terça-feira, dia 30, às 18h, em frente ao Banco Estado na Alameda Bernardo O’Higgins, a principal via da cidade. Duarte e Jônatas eram velhos amigos. Abraçaram-se longa e efusivamente. Duarte estava acompanhado de um casal de militantes mineiros, Maria do Carmo Brito, a Lia, e Ângelo Pezzuti – antes da chegada de Onofre a Santiago, Lia havia se tornado a primeira mulher a dirigir uma organização guerrilheira na América Latina.

– Podem ficar tranquilos. É gente da mais absoluta confiança – disse Duarte a Lia e Ângelo, referindo-se a Jônatas.

Conversaram brevemente sobre os antigos colegas. A clandestinidade fizera com que muitos deles desaparecessem – mortos ou escondidos nos cafundós do mundo. Zé Duarte atualizou o velho companheiro: seu irmão, Antônio Duarte, vivia na Suécia, e o amigo Avelino Capitani estava ali no Chile, articulando-se com exilados do MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro). A aparência de Duarte chamou a atenção. Estava irreconhecível, envelhecido, magro, com o rosto cheio de rugas e sulcos profundos. Duarte despediu-se, conspiratório, alegando que não poderia circular pelo centro, por onde andavam muitos brasileiros. Não queria ser visto, fosse sozinho ou acompanhado.

Sentaram-se os três, Lia, Ângelo e Jônatas, num bar e pediram chopes. Jônatas explicou que, por conta da viagem, não pôde continuar cobrindo os pontos (encontros entre militantes clandestinos) com os companheiros, em São Paulo, mas que, se não fosse a Santiago, não conseguiria reagrupar o pessoal no Nordeste – o que considerava a prioridade para a VPR. Conversaram sobre a morte de Carlos Lamarca, no que todos concordaram que o MR-8 parecia ter abandonado seu maior comandante.

– Conheço a região, aquilo não é lugar para guerrilha – disse Lia sobre o sertão baiano, onde Lamarca foi caçado e morto.

Mataram a curiosidade sobre como andavam as coisas no Brasil. As notícias que chegavam ao Chile falavam de prisões em efeito dominó, o que acabou despertando a desconfiança de que haveria homens infiltrados a serviço da polícia repassando informações sobre os pontos, planos e aparelhos usados na guerrilha urbana.

– Na minha área, não, só se for do lado que Moisés não me passou – defendeu-se Jônatas, que tinha na capital paulista a maior parte de seus contatos.

Moisés era o ex-sargento da Marinha José Raimundo da Costa, pernambucano do Recife e principal homem da VPR no Brasil.

– E o cabo Anselmo? – perguntou Lia.
– Está vivo e em segurança – respondeu.

Havia poucos meses, em agosto, uma carta remetida pela militante Inês Etienne Romeu, presa no Dops desde maio de 1971, trazia a denúncia de que José Anselmo, o lendário cabo Anselmo, havia sido preso e “entregara-se à repressão”. De acordo com a carta, o ex-marinheiro agora colaborava como informante do delegado Sérgio Fleury. Repercutida entre os exilados brasileiros, a denúncia de Inês conseguia explicar como tanta gente havia desaparecido em São Paulo, naquele último semestre. Jônatas ora respondia, ora desconversava – era muito bom nisso. Para ele, mesmo com as quedas e todo o aparelhamento policial que estraçalhara a guerrilha no país, lotando celas e pavilhões penitenciários, era hora de retomar a ação ofensiva, possivelmente em algum lugar do Nordeste. 

Contou que havia descoberto, no Recife, antigos túneis cavados pelos pernambucanos na resistência à invasão holandesa do século XVII. Essas covas, segundo ele, poderiam ser usadas para abrigar um estado-maior guerrilheiro. Ângelo escutava calado, na maior parte do tempo, confuso com toda aquela história. “Como é que um cara chega e diz isso tudo? Ele devia dizer que chegou para um contato com a organização x. Agora, para dizer que está preparando a volta de gente...”, comentaria Ângelo, alguns anos mais tarde, já morando em Paris, em entrevista publicada n’O Pasquim

A aparência do companheiro também chamou a atenção de Ângelo. Jônatas discursou sobre a satisfação de trabalhar onde a revolução estava, de fato, se fazendo cotidianamente, apesar de todas as dificuldades. Às vezes até passavam fome, disse. “No pré-consciente, no entanto, eu me dizia: esse cara tá tão bem nutrido, queimado de sol, com cabelo grande”. Falava com o sorriso no rosto e parecia um homem perfeitamente saudável.

O casal ficou dividido: estavam com a pulga atrás da orelha com toda aquela demonstração de bravura e coragem, ainda mais partindo de um companheiro que estava no Brasil e que, por isso, não podia ignorar a desvantagem em que se encontravam os grupos guerrilheiros em relação aos órgãos de repressão política da ditadura. Contrariava inclusive a decisão da VPR de recolher as armas. Por outro lado, foram, de certa forma, seduzidos pelo falatório do companheiro Jônatas. “Foi um cara que me impressionou muitíssimo”, disse Ângelo, na mesma entrevista ao Pasquim. E foi por isso que Jônatas conseguiu um encontro com Ribeiro – Onofre Pinto – para dali a alguns dias.

Sua impressão, porém, era de que aquele chope de boas-vindas estava próximo de se tornar uma inoportuna pedra no sapato. “A moça e o rapaz me reconheceram”, datilografou horas mais tarde no registro que manteve durante a estada em Santiago, como um diário de viagem. Estava correto. Não foi sem propósito que Lia perguntara pelo tal cabo Anselmo. Ângelo não fazia ideia, mas ela puxou à memória: aquele homem, que agora propunha um novo e perigoso empreendimento guerrilheiro no Brasil, se tornara bastante famoso nos dias que precederam o golpe de 1964 – ainda que seu nome fosse bem mais conhecido do que seu próprio rosto. Nos jornais, aparecia falando para multidões ou carregado, como herói, por jovens marinheiros. O homem que acabava de se despedir presidira a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, com sede na Rua São José, centro do Rio de Janeiro, e se notabilizara como líder da rebelião em que centenas de marinheiros reivindicaram melhores condições de trabalho e a conquista de direitos civis como estudar, casar, votar e andar à paisana nas horas de folga. Metido na clandestinidade desde que instaurada a ditadura, nascido José Anselmo dos Santos, em Itaporanga D’Ajuda, cidade próxima a Aracaju, capital de Sergipe, o mítico cabo Anselmo era um tipo vaidoso, que gostava de ser reconhecido e bajulado, e em diversas ocasiões apelava para o “você sabe com quem está falando?”. Na viagem a Santiago, ao contrário, fizera questão de não ser identificado. 

Começaram a ligar os pontos: se era verdade que o cabo Anselmo fora preso, então como ele estava ali em Santiago, seis meses depois, saudável, falante e cheio de planos? 


*****

A notícia do cabo Anselmo no Chile logo se espalhou entre a comunidade de brasileiros exilados. Muitos não tinham notícias dele havia um ano. Com as mortes e prisões em série, as organizações de esquerda estavam débeis e fragilizadas, e uma nuvem de desconfiança pesava sobre todos. Os grupos acusavam abertamente uns aos outros. Ninguém confiava em ninguém, e cada um que encontrasse uma teoria para chamar de sua. Em suas memórias, Avelino Capitani, ex-dirigente da AMFNB, definiu o Chile daqueles tempos como um “imenso laboratório”. “Era o caos”, escreveu. Por isso, a denúncia de que o cabo Anselmo havia trocado a guerrilha pelo trabalho de agente duplo da polícia soava como uma enorme fantasia, coisa de filme de espionagem. “A maioria da VPR encarava com ótimos olhos a presença dele em Santiago e acreditava que aquilo iria estimular a militância”, recorda Aluizio Ferreira Palmar, um dos homens do grupo em Santiago àquela altura.

Onofre não só desqualificou as informações vindas de Inês, no Brasil, como atacou o comportamento de todos os que acreditavam na história. Acusou Lia de trabalhar para a repressão e insistiu que Inês deveria tê-lo confundido com outro sujeito, Edgard Aquino Duarte, que estava preso no Dops paulista, bastante parecido com o cabo – mais tarde descobririam que Anselmo e Aquino foram presos na mesma ocasião, no apartamento de um deles em São Paulo, em maio de 1971. As denúncias continuariam chegando, mesmo depois que Anselmo partiu de Santiago. Onofre, como uma metralhadora verbal, disparava contra todos os que acusavam o companheiro de traição.

A intransigência de Onofre intensificou mais as enormes divergências que já rachavam a VPR. De um lado, uma maioria comandada pelo ex-sargento. Do outro, alguns poucos gatos pingados, entre os quais Lia e Ângelo, para quem a chegada de Onofre ao comando da VPR no Chile fora nada menos que um golpe dentro da organização. Ele chegou a Santiago ainda em 1971, quando o comando local estava nas mãos de Lia. Veio de Havana a pedido do Coletivo de Cuba, com a atribuição de exigir prestações de contas de todo o pessoal da VPR no exterior – em suas próprias palavras. Era um sujeito enérgico e centralizador. Negro, forte e alto, não suportava ser chamado de Negão, um de seus apelidos. Acreditava que derrubar a ditadura brasileira era uma missão que passaria diretamente por suas mãos e ordens. Como ex-sargento, nutria uma verdadeira adoração pela hierarquia e pela disciplina. Por sua formação militar, era visto como um homem de poucos dotes intelectuais por parte da militância de esquerda – a que vinha do movimento estudantil e das profissões liberais. Segundo Pedro Viegas, mais um ex-marujo vivendo no Chile, Onofre “nada tinha de teórico marxista, mas sua dedicação à prática revolucionária era inquestionável”.

Do Chile, Onofre fez com que Jamil, que era o responsável pela VPR em Paris, repassasse todas as informações da Europa e exigiu que Lia e Ângelo fizessem o mesmo. Argumentava que existia uma crise de confiança em relação a Ângelo no Chile. Em seguida dissolveu o Coletivo do Chile, interrompendo as reuniões periódicas do grupo. Dividiu os exilados em células, de acordo com critérios próprios, cada uma com um coordenador. Para Ângelo e Lia, do outro lado, a crise que sacudia a VPR, tanto no Brasil quanto no exterior, exigia a convocação de um congresso que discutisse o futuro da organização.

Naquela mesma noite do encontro no bar, um homem bateu à porta da casa onde morava o casal de mineiros. A mãe de Lia atendeu, e escutou o sujeito dizer, com ar conspiratório e voz de espião de cinema, que procurava “o homem”. As desconfianças eram tão grandes, que Onofre enviara um capanga, com medo de que Ângelo e Lia pudessem ter desaparecido com o cabo.

*****

Apesar das denúncias, o encontro entre Anselmo e Onofre aconteceu numa manhã de quinta-feira, início de dezembro, sem maiores desconfianças. “Com Onofre, a conversa foi fluida e fácil”, escreveu o cabo em seu registro de viagem. “Com palavras escolhidas e rodeios esotéricos, mostrei-lhe que era o herdeiro moral e político de Palhano e Moisés, os dois esteios da VPR, sendo que o primeiro não teve condições de desenvolver sua capacidade”, continuou. O ex-sargento estava disposto a proteger o ex-marinheiro, e blindá-lo contra as acusações que vinham do Brasil e repercutiam em Santiago. Como ninguém aceitava voltar para São Paulo, Anselmo se colocou como o responsável pelo reagrupamento da VPR no Nordeste. “(Onofre) temia por minha segurança. Não queria que eu continuasse em São Paulo. Afirmei que estava por sair, mas antes deveria concluir o trabalho que Moisés deixara. (...) Não tive outra saída. A pressão contra São Paulo e Rio é muito grande.”

O ex-marujo deixou aquele encontro-relâmpago com a autorização para a missão. Já tinha em mente onde montaria o aparelho, embora ainda não tivesse revelado a Onofre: Olinda, cidade histórica ao norte do Recife, Pernambuco. Era um município grande e populoso, onde poderia montar sua fachada sem maiores problemas. “Os recursos financeiros para viabilizar o projeto vieram da Argélia, onde estava guardado o que restara do cofre do Adhemar, por meio do Jamil”, conta Aluizio Palmar.

Para a missão no Nordeste, Onofre colocou 300 mil dólares à disposição de Anselmo – quase metade dos 700 mil dólares de que a VPR dispunha. O recurso inicial, 50 mil dólares, cobriria o aluguel de uma casinha no Varadouro, um dos bairros centrais de Olinda; a compra ou aluguel de um pequeno sítio em Abreu e Lima, ao norte de Olinda; a compra de um Fusca e mais o que bastasse apenas até conseguir um trabalho que garantisse o seu sustento diário. Manteriam correspondência, e receberia mais dinheiro sempre que necessário. Onofre insistiu ainda em colocar um guarda-costas na cola de Anselmo, pelo menos até que ele entrasse em segurança no Brasil, mas não conseguiu convencê-lo. “Saí fora da deferência, porque não sabia quem seria, como iria atuar para assegurar-me a vida no caso de um pega, nem se era conhecido de quem estivesse operando na fronteira”, justificou o cabo no seu relato de viagem.

Anselmo deixou Santiago e seguiu de ônibus até Uruguaiana. Caso estivesse acompanhado do guarda-costas, a história provavelmente teria terminado com uma imensa chuva de balas ali mesmo no posto de imigração. Foi um golpe de sorte. Na fronteira, era o próprio delegado Sérgio Fleury quem o aguardava. Para Fleury, não havia cabo Anselmo ou Jônatas. Aquele era o agente Kimble – alcunha inspirada no personagem Dr. Richard Kimble, do seriado de televisão norte-americano O Fugitivo. Era o preferido entre todos os seus “cachorros” – nome usado pelos militantes de esquerda para designar os que trocavam de lado e colaboravam com o regime que antes os perseguia –, uma peça fundamental para desmontar o que ainda restava dos agonizantes grupos guerrilheiros. Mais que uma corriqueira operação policial de “combate à subversão”, como outras tantas que naquele exato instante aconteciam em diversas partes do Brasil, o engenhoso plano de Fleury era desferir um golpe de misericórdia na esquerda armada. Da fronteira, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), levantaram voo com destino a São Paulo.

A arapuca estava sendo montada. 

LUIZ FELIPE CAMPOS, jornalista formado pela Universidade Federal de Pernambuco, em 2011. Concebeu o livro-reportagem O massacre da Granja São Bento como trabalho de conclusão de curso.

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