Modernos antes do Modernismo
Leia trecho do livro 'Pernambuco modernista', de Bruno Albertim, lançado pela Cepe Editora
TEXTO Bruno Albertim
01 de Fevereiro de 2022
Parte da obra 'Eu vi o mundo'
Ilustração Cícero Dias
[conteúdo na íntegra | ed. 254 | fevereiro de 2022]
Assine a Continente
Cícero Dias e um Surrealismo úmido e tropical
Tudo era assunto entre os dois. Alto, magro como uma caricatura, dono de uma gargalhada que lhe agigantava a boca discreta, óculos que lhe pareciam saídos do ventre da mãe, o paulistano consagrava-se como o autor do primeiro romance nitidamente moderno e brasileiro. Baixinho, trancado em ternos desde os primeiros raios de sol de cada dia, seu amigo pernambucano tinha olhos fundos como a vida que ia reinventando na pele de um dos primeiros poetas libertos das gaiolas parnasianas. Seria apenas mais um grande exercício de intimidade entre confrades, não fosse o destinatário da missiva um modernista de primeira hora e de genialidade tão grande quanto à daquele que lhe escrevia. No manuscrito de 1928, Manuel Bandeira tinha uma (nem tão) inesperada confissão da homossexualidade de Mário de Andrade.
Especulada por amigos de seu barulhento círculo de artistas e pelos pouquíssimos leitores de um país com ainda 70% de analfabetos, a tão bem dissimulada sexualidade do autor de Macunaíma seria blindada da curiosidade alheia pelo pudor da família até a abertura da carta para pesquisa pública, 77 anos depois de escrita, nos arquivos da Fundação Casa de Rui Barbosa. Naquelas linhas para o poeta de Estrela da manhã, Mário de Andrade saía de um armário mais pesado que a arte passadista e acadêmica que ambos queriam destruir:
Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que podia ajuntar em grandeza ou milhoria (sic) pra nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e elucidar você sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade? Em nada. Valia de alguma coisa eu mostrar o muito de exagero nessas contínuas conversas sociais?
Até o fim da vida, Andrade seguiria documentando em missivas a amizade com Bandeira. Noutra carta, comentava com entusiasmo a descoberta de um certo rapaz saído diretamente da Zona da Mata Sul de Pernambuco para os estudos fundamentais no tradicionalíssimo Colégio de São Bento, no qual parte dos bem-nascidos do Rio de Janeiro atravessava os anos infantes de formação. Ainda no engenho de nome Jundiá, propriedade da família no município de Escada, região açucareira da Mata Sul pernambucana, o rapaz recebera as primeiras letras. Para treinar até em línguas estrangeiras o meninote de mangas de camisa tão claras como a pele — uma inteligência precoce aprendendo a falar no contraste com as crianças negras, de braços e pernas cortados pelas folhas laminosas do canavial ao redor de tudo — professores eram especialmente deslocados do Recife. Já no Rio de Janeiro, como aluno da vetusta Escola Nacional de Belas Artes, Cícero Dias chamava a atenção daquele novo cânone da cultura brasileira. Mário de Andrade enchia-se de entusiasmo diante da sexualidade vigorosa e libertadora na obra recente do “jovem artista surrealista”: “Cícero possui uma personalidade surpreendente. Uma expressão formidável e seus valores psicológicos principais são a sexualidade, o sarcasmo e o misticismo”.
A carta de Mário respondia a uma missiva anterior, em que Bandeira chancelava com igual entusiasmo a primeira exposição individual do pernambucano na então capital da República. O autor de Os Sapos — poema com o qual fizera tremer os afrescos do Theatro Municipal de São Paulo, entre vaias e aplausos, durante aquela semana de eventos artísticos no ano de 1922, em que uma nova arte moderna fora apresentada, para desilusão e deleite, à elite letrada cafeeira curiosa por saber do abrasileiramento daqueles códigos estéticos eclodidos na Europa — escrevera:
A novidade aqui é um rapaz de Pernambuco que vive no Rio — Cícero Dias. Uma arte profundamente sarcástica e deformadora, por exemplo, uma entrada da Barra com o fio do carrinho elétrico do Pão-de-Açúcar preso na outra extremidade ao galo da torre da igrejinha da Glória, e a igrejinha toda torta.
“Acho muita imaginação e verve nele”, dizia Bandeira. “Entre os que entendem e pintam, está cotado. No meio modernista, claro. Assim como o Goeldi, o Di, o Nery gostaram muito”.
Não era, portanto, um desconhecido da beligerante nova arte moderna brasileira aquele pernambucano de 30 anos e carinha de 20. Na ocasião, o artista expunha, pela primeira vez, o painel que o consagraria. Ou melhor, tentava expor. Mesmo paparicado pelo novo alto clero da cultura brasileira, Cícero Dias seria impedido de exibir, no Rio de Janeiro, a obra Eu vi o mundo... ele começava no Recife. Pelo menos, na totalidade do painel.
O jovem pernambucano havia sido recebido como um potente aliado no grand monde da militância por uma arte tão moderna e não menos inauguralmente brasileira. No dizer dos críticos Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz (2012), “Cicero Dias desponta no Rio de Janeiro nos anos 1920 com incontrastável frescor. Suas aquarelas eram os sonhos eróticos de um menino de engenho fascinado pela metrópole”. Pouco tempo depois daquela carta a Mário, Bandeira expunha sua convicção em Cícero Dias num artigo impresso nas páginas do noticioso carioca A Província para desqualificar a arte exposta e engessada nos salões da velha academia:
O Salão é uma galeria grotesca onde vou mais para exercer o senso humorístico. Não me pode interessar de outra maneira aquela exibição de um monótono realismo anedótico. Os pintores que admiro são outros e não expõem na Escola. Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Di Cavalcanti, Gomide, Cícero Dias, é nos quadros destes que encontro fantasia plástica, emoção, poesia.
À esquerda, Cícero Dias, em foto tirada na década de 1920, antes de sua ida a Paris. À direita, O sociólogo Gilberto Freyre durante tarde de autógrafos, em 1959. Imagens: Divulgação
Na ausência de instituições ou galerias para rivalizar com a Escola de Belas Artes, Cícero Dias precisaria, contudo, recorrer a um hospício para expor sua arte e poder impressionar, além de Mário e Bandeira, ao público. O conjunto de obras do estreante seria uma das atrações de um congresso da também novidadeira psicanálise no país. Rechaçado pelo Palace Hotel, em cujo hall de entrada, na Avenida Rio Branco, a elite social e econômica do Rio balançava as taças e roçava os bigodes a pretexto de eventos culturais, Cícero Dias era acolhido pelo psicanalista Juliano Moreira, na Policlínica do Rio de Janeiro. Seus desenhos e pinturas ofereciam grande teor onírico, mais que adequado para o congresso, no dizer do próprio diretor da policlínica, “realizado lá no hospício”. Um registro do vespertino A Noite dimensionava o impacto do evento naquele 1928:
É a primeira manifestação da pintura surrealista no Brasil. O surrealismo é uma libertação ainda mais intensa do que o expressionismo. Depois da rigidez mathematica do cubismo, o surrealismo surgiu para exprimir lyricamente a realidade transcendente, que não é a dos cinco sentidos, que é a do sonho, é da imaginação, indifferente às leis da geometria e da mecânica. Esta é a arte actual de Max Ernest, Tanguy, Miro, Man Ray, Arp, que procederam de Cherico, Bracque e Picasso. A elles, se junta o pintor Cícero Dias, que com extraordinárias qualidades pintoricas, exprime em seus trabalhos a poesia deliciosa do seu estranho e maravilhoso inconsciente.
Cícero era presença constante na vida boêmia e intelectual de endereços como o Bar Central e o próprio Palace Hotel, determinado a não acolher sua exposição. Ao permutar brindes e ideias com figuras como Murilo Mendes, Ismael Nery, Lasar Segall, Di Cavalcanti e o próprio Mário, via-se saudado como imprescindível novidade. Tinha consciência da condição de recrutado:
Tinha razão o Di Cavalcanti ou José Lins do Rego quando se referia ao grupo como um bando, uma legião, defendendo novos valores. Tudo explodia, um vulcão. Havia grande inquietação no meio intelectual. Eu representava novos valores? Uma nova filosofia? Apresentava-me com qualquer coisa de novo. Verdadeiras assombrações. Longe de tudo o que os professores ensinavam.
Logo depois, numa entrevista para o mesmo A Noite, ele relativizava-se: “Não fazia obra de escândalo. Trazia para a minha pintura o sentimento popular do Nordeste”.
Arquiteto que faria do modernismo um monumento plausível e cotidiano com a futura construção de Brasília, Lucio Costa assume em 1931 a direção da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Fundada ainda em 1816 por um decreto-lei de Dom João VI na esteira da histórica missão francesa no Brasil, a Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios fora a primeira instituição a quebrar o monopólio do ensino de arte no Brasil pela Igreja Católica. Pela primeira vez, a ENBA rompia os cânones herdados do Renascimento para abrir suas galerias à incipiente arte moderna. Cícero já havia trocado a arquitetura de regras matemáticas e limitantes pela experimentação das aulas de artes plásticas — contra as quais também começava a se aborrecer. Seu nome foi, portanto, tratado com cálida naturalidade ao ser escalado para a exposição dos modernos.
Estava com uma turma boa de briga. Ao lado de Anita Malfatti, de Lasar Segall e do introvertido mineiro Alberto da Veiga Guignard, Cícero Dias seria um dos artistas no elenco do Salão Anual de Belas Artes de 1931. Ou, como entraria para a história, o Salão Revolucionário de 1931. Um ano antes, o pernambucano integrara também a missão de artistas brasileiros em exposição no nova-iorquino Museu Nicholas Roerich. Outra vez, de ombros com Anita, Tarsila, Guignard, Di, Ismael Nery e Gomide, era um dos nomes no catálogo daquela primeira exposição de arte moderna brasileira fora do Brasil. The First Representative Collection of Paintings by Brazilian Artists era o nome da mostra.
Disposto num dos salões da instituição, o painel Eu vi o mundo.... ele começava no Recife por pouco não rachou o antigo prédio da Escola Nacional de Belas Artes. Os refluxos subiam tanto dos estômagos conservadores como pela traqueia dos modernistas. Não se sabia o que mais incomodava, a narrativa ou o suporte. O uso dos materiais — aquarela sobre papel kraft colado numa extensão, originalmente, de 15 metros — representava em si um certo desrespeito à nobreza e às pretensões de eternidade do métier. A temática, sobretudo, faria corar os dois lados do balcão.
Desenho de Cícero Dias para a primeira edição de Casa-grande & senzala. Imagem: Divulgação
Ícone da sexualidade que tanto encantara Mário de Andrade, o painel pintado entre os anos de 1926 e 1929 num ateliê do bairro carioca de Santa Tereza oferecia libido em demasia para um Brasil de 1930 prestes a ter Vargas como presidente. As mulheres só teriam o direito de voto dali a dois anos. Precisariam usar um pesado tecido de baeta como maiô caso ousassem ir à praia a pretexto de um mergulho “medicinal”. Sexualmente, a maior parte da população feminina tinha ainda o papel restrito à função de receptor seminal para a reprodução das famílias. Mas elas estavam ali no painel de Cícero, em performances um tanto diferentes das habituais. “O painel de aproximadamente 12 metros, em sua transparência de forma e tema, profanava o distanciamento diante das sensações e narrativas mais ordinárias”, indicam Herkenhoff e Diniz (2006).
Em sua luxuriante luminosidade tropical, Cícero usara como pretexto a trajetória do conterrâneo abolicionista Joaquim Nabuco para destilar seu erotismo úmido de menino de engenho excitado pela metrópole. Diria:
Tudo se mexia na minha cabeça. Imagens do começo da minha vida. Tantas coisas: mulheres, histórias fantásticas, escadas de Jacó, as 11 mil virgens. Levaria todas essas imagens para dentro de um grande afresco?
Um dos trechos da narrativa visual seria especialmente ruidoso. Trazia a imagem de mulheres nuas, sexos expostos numa clara evocação da sensualidade lúgubre, nesse Brasil quente e tropical de Cícero Dias, dos feudos familiares açucareiros ao cosmopolitismo das cidades de um país em puberdade industrial. Toda a nudez seria castigada: tamanho alvoroço causado, depredado pela audiência nas partes em que trazia seios e vaginas iluminados, o painel seria reduzido dos seus 15 para os atuais 12 metros — tamanho com o qual, apenas no século seguinte, seria exibido pela primeira vez no Recife que lhe empresta o título.
Entusiasta colecionador de Cícero, Mário de Andrade possuía já dez obras do modernista pernambucano até aquele começo da década de 1930. Embora tenha comentado numa carta à amiga Tarsila do Amaral, exagerando o tamanho da obra, seu espanto diante do painel (“Aqui, ou por outra, aqui perto no Rio, grande bulha por causa do Salão em que o Lúcio Costa permitiu a entrada de todos os modernos”, escreve, “e o Cícero Dias apresenta um painel de ‘44 metros de comprimento’ (sic) com uma porção de imoralidades dentro. Os MESTRES estão furibundos”), Mário de Andrade calou-se. Um silêncio tácito. Não expôs em público suas opiniões sobre Eu vi o mundo...
Dias, afinal, o havia traído. Não apenas a ele, mas a todos os modernistas sudestinos que o haviam acolhido em púbere entusiasmo. Naquele momento, Cícero deixava claro ao autor de Pauliceia desvairada: ele teria de contar a Oswald de Andrade e aos demais barulhentos de 1922 que o projeto hegemônico não seria possível. Não haveria apenas um modernismo de brasilidade uniformizante e equacionado a partir da São Paulo caipira como identidade reducionista basilar de um novo Brasil moderno.
Cícero Dias veio ao mundo para desandar a cor caipira, a paleta que Mário de Andrade quis ver, a partir de Tarsila, como alavanca para seu projeto bandeirante de predomínio simbólico do Brasil modernista. Já na década de 1920, as aquarelas desse Chagall selvagem rejeitavam o reducionismo (HERKENHOFF e DINIZ, 2006).
Com Cícero e alguns de seus conterrâneos contemporâneos — Lula Cardoso Ayres e os irmãos Monteiro, notadamente —, os paulistanos teriam, portanto, que soltar muito mais fumaças nas chaminés para imprimir um discurso hegemônico na nova arte moderna brasileira. O gesto não foi pequeno. Se a Semana de 1922 seria um grito primal e instintivo, o Salão Revolucionário de 1931 era a primeira grande chancela de institucionalização da arte moderna brasileira. O modernismo ganhava salões, cabeças e molduras hegemônicos.
Cícero Dias havia arranhado a predominância dos amigos de Tarsila dentro das paredes da Escola de Belas Artes. Com ele, o modernismo brasileiro teria também um sotaque moreno, tórrido, saturado. Quase sempre alvo de tentativas de apagamento nestes cem anos oficiais de arte moderna no Brasil. Um modernismo pernambucano. Os sotaques estariam abertos. Em sua pintura carnal, Cícero intuía, “toda uma história do Nordeste” passaria pelo seu próprio corpo.
O encontro com Freyre e a demarcação do Nordeste
Naquele ano seminal de 1928, Cícero Dias chega ao Recife bem recomendado por uma carta de Manuel Bandeira a Gilberto Freyre. Ao lado do futuro amigo sociólogo, passa um dia perambulando entre as cores e cheiros vívidos dos mercados e feiras da cidade. Confirmando a força das afinidades eletivas, conversam sobre as características atávicas da região, as lembranças talhadas da infância em engenhos e tudo o mais redundando na vivacidade de sua pintura.
A conservadora diretoria do histórico Teatro de Santa Isabel, no Centro do Recife, não acolhe a novidadeira pintura de Cícero para uma exibição em seu imponente hall de entrada. Consegue-se, então, outro lugar de boa fruição para as elites letradas. Parte dos trabalhos anteriormente expostos na Policlínica do Rio de Janeiro é apresentada com textos de Freyre no saguão do Hotel Central do Recife.
No primeiro arranha-céu da cidade, erguido na Rua Manoel Borba, onde visitantes como o futuro presidente Vargas, Carmem Miranda ou Orson Wells se hospedariam com vista para o céu cuja luz, no olhar de Freyre, “não é a mesma um só minuto”, Cícero Dias teria sua primeira exposição individual no Recife. Trouxera 126 pinturas e desenhos. Da cidade, aliás, sairia para uma ousada exposição de arte moderna em Escada, sua acanhada e rural cidade de origem onde o dinheiro do açúcar ainda fazia lustrar a prataria. O fato, aliás, pode nos sugerir como, a despeito de seu cosmopolitismo urbano, o modernismo brasileiro se respaldou também pelos interiores do Brasil, onde o dinheiro agrário movia a roda nacional.
A cumplicidade entre ambos havia sido instantânea. Dias comentava:
Teria sido Gilberto o primeiro a mostrar-me os verdes que empregava nos quadros? Os verdes dos mares pernambucanos, quando todos os pintores pernambucanos convencionalmente olhavam os mares azuis? Curioso que os pintores copiadores da natureza, ao retratar os verdes, os faziam azuis. Ignoravam os verdes mares.
Assim como o acolhimento de Freyre, a pouca compreensão à sua arte seria também imediata. Era, afinal, um tempo de aberturas, rechaços e algumas poucas conciliações.
O noticioso recifense A Província saudava a volta do filho pródigo:
O jovem pintor brasileiro Cícero Dias, que é pernambucano, resolveu expor os seus calungas, que conquistaram o enthusiasmo do grande artista russo Segall na tranquilidade de Escada. A exposição inaugura-se hoje na mais pernambucana das maneiras: com foguete e folha de canella (...).
Os coronéis, o prefeito e as sinhás-damas engordados com a cana dos quintais não eram, contudo, tão docemente unânimes no entusiasmo do artigo. Tanto apoiavam como censuravam a iniciativa. Tamanha lubricidade aquarelada era demais para o açúcar local. Para acontecer, a mostra precisaria de autorização até do pároco local. Ao deter-se sobre as composições aquareladas, o Vigário Pedrosa, aliás, não se esquivou em destilar sua verve crítica. “Aquilo era arte do diabo”, sintetizou. Para realizar sua exposição, Cícero Dias contou com as forças aliadas do prefeito. Primo do pintor, reconhecido como “um dos donos de Escada” pelo próprio Cícero, o alcaide José Pereira de Araújo Filho forneceu a montagem, os acepipes e o prestígio para regalo dos convidados de opiniões divididas. Conhecido no município apenas como Doutorzinho, oferecia também a defesa da poética. Mandou dizer que aquilo trazido pelo primo chegado do Rio de Janeiro era arte — e quem não entendesse a grandeza daqueles nudes aquarelados não passava de “gente ranzinza e sem discernimento”. O vigário, então, rugiu mais baixo.
A côte com Cícero, Gilberto Freyre era mais conciliatório. Antecipando pendengas, resolveu censurar seu texto para o catálogo. Suprimia com cuidado os trechos em que evidenciava a sexualidade explícita para evidenciar os argumentos cromáticos do novo amigo. Cícero, informava Gilberto, não mimetizava o surrealismo europeu. Ao contrário, o subordinava a si. Tinha dicção própria. “É o grande pintor dos azuis e encarnados puros”, subscrevia. E “pureza”, não é demais lembrar, seria um termo caríssimo às mediações de Freyre para a arte do Nordeste.
Capa do livro de publicação da Cepe Editora. Imagem: Reprodução
No Recife, a receptividade também não rimava com unanimidade. Nem o corpus psiquiátrico da cidade teria metade da boa vontade dos médicos do “hospício” carioca em que Cícero estreara seu surrealismo tropical. Funcionário de uma curiosa Liga de Higiene Mental de Pernambuco, um estudante da Faculdade de Medicina de Pernambuco de nome Gonçalves Fernandes publica um artigo motivado pela presença da obra de Cícero no Recife. A agressividade é anunciada desde o título: Surrealismo e esquizofrenia (contribuição sucinta ao estudo da arte na psiquiatria nos Arquivos da Assistência a Psicopatas). Como argumento central, ele imbrica a relação entre patologias mentais e o surrealismo: “A infantilidade de uma tela de Cícero ninguém pode negar. Que ele é sincero na sua arte, nós o sabemos. Sabemos, também, que é um esquizoide”.
Um sobrinho distante daquele Vigário Pedrosa tomaria, num futuro próximo, a tarefa de esclarecer e defender a pintura de Cícero Dias. Nascido na diminuta e canavieira cidade de Timbaúba, Mario Rodrigues seria perseguido e exilado do país pelas duas principais ditaduras brasileiras do século XX. As prisões pelo Estado Novo de Vargas e pelo 1964 de novas botas militares enriqueciam sua biografia de militante comunista, professor, ensaísta e articulista. A cada estada forçada na Europa, voltava com mais prestígio internacional. Pedrosa havia estudado quando criança na Suíça. Com teses e amizades firmadas entre nomes-instituições da arte europeia — Miró, Breton e Joaquim Torres Garcia eram alguns dos que tomavam com ele um cafezinho —, ia se tornando o grande teórico dos novos modernismos brasileiros.
Jornalista combativo e criador da jurisprudência metodológica da nova crítica nacional, Pedrosa escreveria, duas décadas depois, o texto-redenção sobre a arte de Cícero quando este, já maduro, voltava a provocar rebuliço entre o público lustroso e tacanho da cidade do Recife. Mário Pedrosa seria taxativo:
Nenhum pintor brasileiro fez evolução mais radical do que esse menino de engenho que se passou para Paris. Os quadros das primeiras épocas, com seus temas populares, suas cores puramente simbólicas de estados de alma, não anunciavam o pintor desnudo, ortodoxo, todo entregue a problemas de cores, de luz, de formas que ele é hoje.
Antes disso, a falsa cientificidade da psiquiatria recifense insistindo na esquizofrenia da pintura de Cícero não arranharia as opiniões que de fato lhe motivaram. Em 1932, Cícero voltava com suas aquarelas e cavaletes para residência permanente na cidade de onde sairia, apenas, sete anos depois. Convidado a se retirar tanto pelo Estado Novo como pelo mercado e crítica acanhados, Cícero iria para a morada definitiva e derradeira em Paris, a partir de 1939.
O pintor já tinha, contudo, no Recife um casamento indissolúvel de véspera. Um ano depois de chegar, o artista faria as ilustrações de Casa-grande & senzala. Seu pincel imaginoso daria visualidade ao tratado de interpretação do Brasil a partir do Nordeste patriarcal que consagraria Gilberto Freyre como um redescobridor do país em 1933. No ano seguinte, outra prova do matrimônio intelectual: Cícero Dias ilustraria os cartazes do Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, idealizado pelo sociólogo de Apipucos para discutir no Recife a contribuição africana à identidade brasileira. Com Cícero, e mais alguns futuros professores da Escola de Belas Artes do Recife, o ideólogo Freyre teria um grande aliado para a construção de uma visualidade simbólica e capaz de, num paradoxo aparente, forjar a modernidade e estabelecer a tradição de um certo Nordeste emergente. Não apenas no plano do discurso: vários de seus amigos artistas dariam plasticidade a suas ideias. Emprestavam com gosto os traços aos livros de Freyre.
Do encontro de Gilberto Freyre e Cícero Dias, o modernismo pernambucano ganharia um dos marcos iniciais para se configurar o que seria um modernismo de longa duração, coerente e tão longevo como apagado pelo sucesso historiográfico do projeto artístico de Mário de Andrade e seus amigos de 1922. Quase sempre irredutível em sua cartilha de cores próprias e deliberado figurativismo. Na periferia do sistema cultural de maior musculatura no Brasil, um modernismo pouquíssimo subserviente à ditadura abstratificante da arte brasileira concreta e neoconcreta da qual o próprio crítico Mário Pedrosa seria um dos artífices a partir do final dos anos 1950. Um modernismo mantido com vigor até as primeiras décadas deste século XXI.
Ainda jovem, Francisco Brennand fora morar no bairro da Várzea, onde convertera a antiga fábrica de cerâmica do pai em sua enorme e impressionante oficina-museu. Raramente saía da cidadela por ele construída. Abrigava-se no escritório-ateliê, no qual livros faziam as vezes de paredes para emoldurar seus longos pensamentos sobre a natureza de seu ofício. Naquele 2019, dois anos antes de sua morte, conversei algumas vezes com o artista. De barbas longas e mãos ligeiramente trêmulas pelo Parkinson discreto, o artista usava a bengala mais para apoiar o pensamento que os braços. Sob uma nesga de sol rasgando o vidro da janela, numa daquelas manhãs, seu rosto iluminava-se: Brennand confirmava a perenidade do projeto inaugurado, ainda que a princípio não de todo consciente, pelo amigo Cícero Dias. “Minha arte é moderna. Moderníssima, no sentido de que ela contraria todos os cânones da arte contemporânea. E ela se refere sempre a uma ancestralidade, a uns arcaísmos e, sobretudo, a arquétipos. Então, neste momento, eu permaneço moderno e propositadamente antigo. Sobretudo, quando trabalho com cerâmica, muito mais do que quando eu pinto”, me dizia Brennand.
Francisco Brennand contrariava a uniformidade de um modernismo brasileiro de ascendência paulistana. “São Paulo tomou isso para si, mas não há nada mais contestado. Até porque, com o regionalismo de Freyre, começou-se a se tomar essa região para ser entendida como Nordeste, e não apenas como território, mas com características de vida, de cultura, de clima, um projeto de identidade além da estética”, ele dizia. “O Sul ainda olha com um certo desdém para o Nordeste, mas isso não vai sanar nunca. Isso acontece... Esses conflitos... Em todas as regiões do mundo”. A luz de sua pintura, ele dizia, gravitaria ao redor da solaridade captada pelo antigo amigo e, mais velho em idade, mestre. “Cícero Dias sempre me dizia: ‘Querem entender a luz da minha pintura? Olhem para a luz do Recife, uma luz no limite no perfeito. Comparável, talvez, apenas, à luminosidade de Taormina, na Sicília’”.
Quase um século depois de Cícero Dias, de Lula Cardoso Ayres, dos irmãos Monteiro e de outros pintores e desenhistas, alguns deles antigos colegas de Brennand na extinta Escola de Belas Artes de Pernambuco, artistas pernambucanos seguiam e seguem comungando de uma arte francamente moderna no Recife, Olinda e arredores. Coerente com o vernáculo visual original, um modernismo de longa duração. Ainda que exceções brilhantes confirmem a regra, um modernismo vívido, saturado, se comparado a outras latitudes pictóricas nacionais. Decidido a não cumprir os dogmas de uma academia exigente de uma pintura executada em pinceladas contínuas e capazes de apagar seus traços até a tridimensionalidade e a verossimilhança do objeto. Predominantemente figurativista.
José Claudio, Tereza Costa Rêgo, Samico, Guita Charifker, José Cláudio, Raul Córdula, Abelardo da Hora, Delano, Virgolino, Ladjane Bandeira, Renato Valle, Roberto Ploeg, Badida, entre tantos do que poderíamos chamar de uma terceira ou quarta gerações do Modernismo Pernambucano, confirmam o cenário. Mais jovens, Delson Uchoa ou Bruno Vilela, de grandes trânsitos no nicho mercadológico da arte contemporânea, ampliam a latitude. O modernismo pernambucano ramifica-se por cronologias várias.
Muitos Modernismos
O carioca Marcus Lontra havia já militado nas redações de O Globo, da extinta Tribuna da Imprensa e das revistas Módulo e IstoÉ quando trocou de vez a perspectiva do esquadro, ou seja, o jornalismo crítico pela curadoria e historiografia da arte brasileira. Como diretor da escola carioca de artes visuais do Parque Laje, Lontra seria um dos curadores da exposição Como anda você, Geração 80?. Em princípio menos despretensiosa, a exposição era destinada a radiografar o pensamento de alguns daqueles alunos e professores do centro de estudos artísticos no bairro carioca do Jardim Botânico. Mas entraria para a história: ao evidenciar ou consolidar nomes como Cildo Meireles, Adriana Varejão ou Beatriz Milhazes, a exposição seria, preservadas as proporções, para a chamada arte contemporânea, o que 1922 havia sido para a arte moderna. Um catalisador do pensamento.
Anos de curadoria acumulados, Marcus Lontra confirma, em relação às artes, o que acontece a outras narrativas oficializadas por aqueles com capacidade de construir o senso comum e hegemonia nacionais. “A história é sempre escrita pelos vencedores. Pelas mesmas razões pelas quais Frei Caneca não é considerado um herói nacional, o Modernismo Pernambucano ficou preso em suas fronteiras físicas. Não se trata de discutir ou menosprezar a extraordinária contribuição do Modernismo Paulista que, com a criação de uma universidade como a USP, soube gerar, através de trabalhos acadêmicos, uma hegemonia modernista paulistana — aí, sim, de uma maneira discutível —, mas de reconhecer a extraordinária contribuição do Modernismo Pernambucano que, no ensino oficial, aparece quase que como um apêndice”, me diria ele, anos depois, numa conversa no pátio do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, o Mamam da Rua da Aurora, por ele dirigido nos anos 1990 para, além de ecoar a produção local, inserir o Recife numa nova rota de grandes exposições internacionais.
Lontra seria também um dos curadores da exposição Modernismos, mais recente. Sediada no Rio de Janeiro como efeméride pelos 90 anos da Semana de 1922, a mostra afirmava: o evento paulistano teve como principal função catalisar e organizar o pensamento moderno no país. O título, em plural, subscrevia a diversidade de modernismos no país. “Todo o Brasil tinha desejos de modernização, e se pensava: que país é este? O que acaba ficando de mais significativo do modernismo é a construção de uma identidade nacional”, Lontra raciocinava. “Houve e há vários modernismos no Brasil. Um dos de maior duração e densidade, ainda não devidamente reconhecido na história, é o Modernismo Pernambucano”.
Antes de se criar uma arte moderna em Pernambuco seria, preciso, contudo, criar o próprio Nordeste como região.
BRUNO ALBERTIM, jornalista, antropólogo e escritor. Autor de Tereza Costa Rêgo, uma mulher em três tempos (Cepe) e Nordeste – Identidade comestível (Massangana).