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Esta cidade anfíbia e seus caminhos

Leia trechos do livro ‘Arruando pelo Recife’, do pesquisador Leonardo Dantas Silva, publicado pela Cepe Editora

TEXTO Leonardo Dantas Silva

01 de Julho de 2021

"...e eis o Recife, sol de todo o sistema solar da planície: daqui é uma estrela ou uma aranha, o Recife", Josué de Castro

Foto Alcir Lacerda

[conteúdo na íntegra | ed. 247 | julho de 2021]

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1. O RECIFE POR DEVER

O Recife, sim! Recife, não!
Gilberto Freyre

A denominação da atual cidade do Recife resulta do acidente geográfico ao qual Bento Teixeira (c. 1561-1600) chamou “a cinta de pedra, inculta e viva, onde quebra Netuno a fúria esquiva” (Prosopopéa, 1601). Sua designação é registrada pela vez primeira no Diário de Pero Lopes de Souza, que denomina seu porto natural de Barra dos Arrecifes (1532), e no chamado Foral de Olinda (1537), no qual o primeiro donatário, Duarte Coelho Pereira, nomeia-o Arrecife dos Navios. Também no mapa do cartógrafo João Teixeira Albernaz I, Carta Leste do Brasil, no Livro que dá razão do Estado do Brasil (1618), encontra-se registrado Lugar do Recife, menção certa aos primórdios da primitiva povoação, depois Vila de Santo Antônio do Recife (1709) e, finalmente, Cidade do Recife (1823).

Como bem demonstrou José Antônio Gonsalves de Mello,  arrecife é a forma antiga do vocábulo recife, ambos originários do árabe ár-raçif, que significa calçada, caminho pavimentado, linha de escolhos, dique, paredão, cais, molhe. Em sua forma arcaica, arracefe, o vocábulo é encontrado desde 1258 e, a partir de 1507, aparece como arrecife que, ainda no século XVI, é também consignado como recife, segundo registra o dicionarista José Pedro Machado.

Durante quatro séculos, a exigência do artigo definido masculino precedendo o topônimo designativo de nossa cidade foi mansa e pacificamente aceita até pelos holandeses, que nela estabeleceram a sua capital entre 1630 e 1654. Nos documentos da época, e até em gravuras — como a que aparece no livro de Joannes de Laet (1630) —, o artigo definido masculino het, ou em sua forma abreviada’t, antecedia sempre o topônimo designativo da capital do Brasil holandês:’t Recife.

A regra geral ensina que todo topônimo originário de um acidente geográfico é antecedido pelo artigo definido. Adverte Gonsalves de Mello, antes citado:

Porque se originou de um acidente geográfico — o recife ou o arrecife —, a designação “do Recife” não prescinde do artigo definido masculino: “o Recife”, nunca “Recife” e não “em Recife”, “de Recife”, “para Recife”. E isto pela mesma razão porque ninguém diz “em Rio”, “de Bahia”, “em Pará”, “em Amazonas”, “em Rio Grande do Sul”, “em Paraíba” etc.

Como se não bastasse a lição, Gilberto Freyre corrobora a mesma regra em seu O Recife, sim! Recife, não! Pequeno guia do Recife escrito para não-recifenses pelo recifense de Apipucos, no qual esclarece: “todo bom brasileiro de Pernambuco diz o Recife e não Recife, como diz o Brasil e não Brasil, o Rio e não Rio”. O recifense, constata Gilberto Freyre, diz “chegar ao Recife, vir para o Recife, sair do Recife, voar sobre o Recife. Quando é outro o modo de a pessoa se referir ao Recife, o recifense conclui: é gente de fora”.

No mesmo diapasão, são as observações de Valdemar de Oliveira:

Isso de dizer em Recife é ignorância de gente do Sul, que não sabe muito de tais coisas, só sendo de lamentar que recifenses autênticos deem curso a essa bobagem, já numerosas vezes — e por vozes mais autorizadas que a minha — combatida, sem contradita possível. A erronia se vai alastrando, mas é dever meu contraditá-la. Porque eu sou — e com muita honra — do Recife.

As outras vozes mais autorizadas, a que se refere Valdemar de Oliveira, seriam as do reverendo Jerônimo Gueiros, em “Cidade de Recife ou cidade do Recife?”, Revista Arquivos, nº 1, 1942; do jornalista Mário Melo, em “O nome da capital pernambucana”, Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, v. 8. 1944; além do ex-reitor e fundador da Universidade do Recife, Joaquim Amazonas, e do escritor Luiz Estevão, que sobre o tema dissertaram longamente em sessão do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.

Quem despreza o artigo definido masculino antes do nome de nossa cidade, por certo nunca conheceu o, nem residiu no, e muito menos é originário do Recife. Com muito orgulho, como diria o poeta Antônio Maria.

O Recife assim deseja.

Rio Capibaribe registrado na altura do Cais da Jaqueira. Foto: Leonardo Dantas Silva

2. O ARRECIFE DOS NAVIOS

O Recife é um arrecife.
Johannes Baers (1630)

“Um porto tão quieto e tão seguro, que para as curvas das naus serve de muro”, na descrição da Prosopopéa (1601), do poeta cristão-novo Bento Teixeira, escrita em Pernambuco na segunda metade do século XVI, seria a origem humilde da povoação do Recife.

Situada no cruzamento do paralelo, a oito graus e três minutos e 45,8 segundos de latitude sul, e do meridiano a 34 graus e 52 minutos e 14,8 segundos de longitude oeste, a Barra do Arrecife, assim chamada no Diário de Navegação de Pero Lopes de Souza pela Costa do Brasil até o Rio Uruguay (de 1530 a 1532), veio a ser a ribeira do mar dos Arrecifes dos Navios, a que se refere o donatário Duarte Coelho Pereira na chamada Carta Foral de 12 de março de 1537, uma minúscula povoação de mareantes e alguns pescadores que viviam em torno da ermida de São Frei Pedro Gonçalves, por eles denominada de Corpo Santo.

No início do século XVII, fora o Recife um porto por excelência, o de maior movimento da América Portuguesa, escoadouro principal das riquezas da mais promissora de todas as capitanias: Pernambuco. Tal riqueza logo despertou a cobiça da Holanda que, em guerra com a Espanha, voltou suas atenções para o açúcar, produzido por 121 engenhos e exportado por meio desse porto.

Em 14 de fevereiro de 1630, utilizando a maior esquadra que até então cruzara a linha do Equador, formada por 65 embarcações e 7.280 homens, os holandeses vieram se instalar na antiga capitania Duartina, iniciando uma dominação que se estendeu até janeiro de 1654.

Durante 24 anos, passou o Recife de povoação acanhada do século XVI e início do século XVII a capital do Brasil holandês. Foi tanto o crescimento do primitivo Arrecife dos Navios, foram tantos os melhoramentos obtidos, particularmente durante o governo do conde João Maurício de Nassau (1637-1644), que, mesmo após a expulsão dos holandeses (1654), o Recife jamais voltou a depender de Olinda.

O povoado dos Arrecifes era coisa do passado. O primitivo porto veio a ser disputado até pelos governadores que teimavam em ocupar o Palácio de Friburgo, construído pelo conde Nassau na primitiva Ilha de Antônio Vaz, deixando de prestar assistência à sede da capitania, Olinda, motivando assim os reclamos junto ao rei de Portugal.

A riqueza súbita dos habitantes do Recife, apelidados de mascates pelos naturais de Olinda, fez do antigo porto um núcleo de progresso, por vezes ofuscando a capital de Pernambuco e contrariando os senhores da terra. Fato notório para comprovação de tal progresso seriam as construções religiosas do final do século XVII, algumas delas hoje consideradas verdadeiras joias do barroco meridional com lugar de relevo em nossa arquitetura colonial. É deste período o início das edificações das igrejas dos jesuítas (1655), Nossa Senhora da Penha (1655), Santo Amaro das Salinas (1681), Convento do Carmo (1667), Capela Dourada (1696) e Ordem Terceira do Carmo (1696), na Ilha de Santo Antônio, que, juntamente com as igrejas de Nossa Senhora do Pilar (1680-86, restaurada entre 1898 e 1906) e Madre de Deus (1679), são testemunhos de uma época de fausto e riquezas.

No governo de Sebastião de Castro Caldas (9 de junho de 1707 a 7 de novembro de 1710), o primeiro governador nomeado por Dom João V, de Portugal, possuidor de nítido partidarismo em favor dos mascates, para desgosto dos olindenses e da chamada nobreza da terra, foi o Recife elevado à categoria de vila. Com o nome de Santo Antônio do Recife, por Carta Régia de 19 de novembro de 1709, foi instalada a nova vila. No Largo do Corpo Santo (bairro do Recife), foi erguido o pelourinho, símbolo do poder municipal, em 15 de fevereiro do ano seguinte (substituído por outro de maior porte, em 3 de março do mesmo ano). Logo foram escolhidos os primeiros vereadores de sua Câmara, aos quais caberia a administração municipal, não se devendo mais obediência aos vereadores de Olinda. 


Capela-mor da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, toda em
talha dourada, é obra de cerca de 1780. Imagem:
Leonardo Dantas Silva

O território da então Vila encontrava-se circunscrito às freguesias de São Pedro Gonçalves e Santo Antônio, área compreendida pelos atuais bairros do Recife, Santo Antônio e São José.

Com o passar dos anos, por meio de aterros dos terrenos de alagados e de cursos d’água, foi o Recife crescendo em área. Somente em 1817, por provisão de 6 de dezembro, foram desmembrados do termo de Olinda os bairros da Boa Vista e a povoação dos Afogados. Por resolução da presidência do Conselho, de 20 de maio de 1833, em obediência ao art. 3º do Código de Processo Criminal, foram unidas ao Recife as freguesias da Várzea, do Jaboatão e parte da de São Lourenço da Mata. Pela lei provincial nº 117, de 8 de maio de 1843, foram separadas do termo de Olinda e incorporadas ao do Recife a freguesia do Poço da Panela e a parte da Boa Vista que ainda lhe pertencia. Em 1862, o município do Recife era composto pelas freguesias de São Pedro Gonçalves, Santo Antônio, São José, Boa Vista, Afogados, Muribeca, Poço da Panela, Várzea, Santo Amaro do Jaboatão e São Lourenço da Mata.

O Recife foi elevado à categoria de cidade pela Carta Imperial de 5 de dezembro de 1823 e, por Resolução do Conselho Geral da Província, passou a capital de Pernambuco em 15 de fevereiro de 1827.

Em 1873, pela lei nº 1093, de 24 de maio, quando da constituição do município do Jaboatão, foi a este anexada a freguesia da Muribeca, até então pertencente ao termo do Recife. Pela lei nº 1805, de 13 de junho de 1884, foi constituído o município de São Lourenço da Mata, sendo para isso desmembradas do termo do Recife as freguesias de Nossa Senhora da Luz e a de São Lourenço da Mata.

O município do Recife permaneceu com seu território inalterado até 1919, quando, no governo de Manoel Antônio Pereira Borba, o Congresso Legislativo do Estado de Pernambuco, pela lei nº 1430, sancionada em 10 de junho de 1919, determinou os novos limites com o município de Olinda. Por aquele diploma legal, estabeleceu-se uma linha divisória a partir da Fortaleza do Buraco,

do marco subterrâneo colocado na raiz do molhe que nasce no istmo de Olinda e limita a bacia do porto, por uma linha imaginária à Ponte da Tacaruna [...] até alcançar o marco divisório das propriedades Piaba e Jardim, próximo à margem do Rio Paratibe; sobem, em seguida, o curso deste rio até a foz do Riacho Cova da Onça, daí acompanhando os limites da propriedade desse nome até o marco do Córrego Riacho Seco, ponto terminal da divisória dos dois municípios.

No que diz respeito à titularidade de terrenos dos respectivos municípios que, em virtude do novo ordenamento jurídico, ficaram dentro dos limites do outro, em seu artigo segundo, a lei estadual nº 1430 estabelece:

Os terrenos que, atualmente, pertencem a um dos municípios [Recife e Olinda] e que por este ato passam para o outro, serão considerados ipso-facto entregues a cada um dos municípios para o qual foram transferidos, independentemente de mais formalidades, desde que for publicada a presente lei.

Em 1928, a lei nº 1931, de 11 de setembro, que trata da nova divisão administrativa do estado de Pernambuco, estabeleceu em seu artigo 3º o acréscimo do território do município do Recife.

pela anexação que lhe é feita dos distritos de Beberibe e do Arruda e os territórios do povoado de Coqueiral e de toda a vila de Tejipió, excetuada a parte denominada de Sycupira, os dois primeiros desmembrados do município de Olinda e os dois últimos do de Jaboatão.

O município do Recife possui, em nossos dias, uma área de 221 km2 e 471 mil m2, onde vive uma população de cerca de 1,5 milhão de habitantes, estando localizado numa planície, formada pelas terras de aluvião trazidas pelo delta dos rios Capibaribe, Beberibe, Jiquiá, Pina e Jaboatão, bem como pelos constantes aterros realizados pela mão do homem ao longo desses últimos quatro séculos. Eis a paisagem dessa “cidade-sereia”, para usar a expressão de Gilberto Freyre, cortada pelos braços dos diversos rios, banhada por um mar de águas mornas, de coloração verde-esmeralda.

O Recife tem seu centro urbano constituído por três ilhas: a do Recife, a de Santo Antônio e a da Boa Vista, as quais se interligam com o continente por meio de pontes que são como braços a unir toda a cidade, cruzando estreitos rios e 66 canais. Sua condição de planície tropical, refrescada pelos ventos alísios que nos chegam do Atlântico, sem registro de grandes temperaturas, estiada na maior parte do ano, com o eterno fascínio das praias de águas mornas, transforma a capital de Pernambuco num eterno convite para passeios a pé, nos quais o caminhante ganha as ruas sem maiores compromissos, gozando do cenário de suas pontes e da beleza de seus monumentos, como a repetir os versos do poeta alagoano Ledo Ivo:

Amar mulheres, várias,
Amar cidades, só uma — o Recife
e assim mesmo com as suas pontes
e os seus rios que cantam.
E seus jardins leves como sonâmbulos
e as esquinas que desdobram o sonho de Nassau.

Amar senhoras, muitas. Cidades,
só uma, e assim mesmo com o vento amplo do Atlântico
e o sol do Nordeste entre as mãos.

Mulheres, inúmeras. Cidades, só uma
e assim mesmo diante do mar.

Prédios da Associação Comercial e Centro Cultural da Caixa Econômica (à esquerda), destacam-se na grande esplanada do Marco Zero. Foto: Leonardo Dantas Silva

3. O RECIFE QUE FASCINA

Amar cidades, só uma — o Recife.
Ledo Ivo

Para os naturais da terra ou para os que o adotaram como pátria-mãe, o Recife se torna um imenso e multifacetado brilhante. São tantas as cores, tantos os sabores, diversos os sons, curiosos nomes de ruas e recônditos pátios, escondendo monumentos e acariciados pela brisa que nos chega do alto-mar, que não dá para calar esta paixão latente e sempre presente na alma de todo recifense, a exemplo do poeta Antônio Maria, no Frevo nº 1 do Recife:

“Sou do Recife, com orgulho e com saudade”.

O fascínio que exerce a paisagem desta cidade sobre os seus moradores e visitantes foi sempre uma constante ao longo dos quatro séculos de sua história. Desde Gabriel Soares de Sousa e Ambrósio Fernandes Brandão, no século XVI, até os cronistas de nossos dias, o Recife se transforma num verdadeiro caleidoscópio a despertar as atenções do olhar do observador; ele se revela num simples abrir de janelas.

Para o forasteiro, o Recife não é uma cidade que agrade à primeira vista. Faz-se necessário penetrar em seu âmago, na alma alegre de sua gente, para entender suas características únicas e a formação do ideário nativista de seu povo. Quando esteve no Recife, o escritor Alceu de Amoroso Lima, conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde, fez observações das mais interessantes, em artigo intitulado Sereia dos trópicos, publicado no jornal A Tribuna, edição de 23 de março de 1957, no qual ensinou como entender melhor o Recife:

[...] Foi preciso pôr o pé em terra e, sobretudo, abrir as janelas do sobrado sobre a foz do rio para que um novo alumbramento se produzisse e a cidade singular de outrora revelasse, com a graça maliciosa de quem entreabre um manto, o que guardava de cantos secretos e renovados. Não mais de fora para dentro, como outrora, mas de dentro para fora é que se podia já agora compreender e tocar de perto o encanto sem par dessa sereia tropical. Encanto é coisa que as palavras não exprimem. Como não exprimem fisionomias ou mesmo paisagens. São, quando muito, aproximações e notas à margem. Os sentidos são os únicos que podem reproduzir el embrujo das coisas, das cidades ou das pessoas. E como a presença é uma síntese dos sentidos e da inteligência, só ela nos dá a sensação do encanto e do desencanto de a tentarmos exprimir verbalmente. O do Recife é feito de contradições: terra e mar, aristocracia e democracia, finura e espírito de bravura de caráter, graça florentina e violência sertaneja, riqueza e miséria.

Uma das descrições mais felizes da paisagem da cidade do Recife nos chega por meio da pena do recifense Joaquim Nabuco, em artigo publicado no jornal O Paiz (Rio de Janeiro), edição de 30 de novembro de 1887. Nabuco, ao servir de cicerone ao escritor português Ramalho Ortigão, pinta, com a mão de um mestre, as belezas de seu torrão natal, utilizando-se das mais contagiantes cores de sua palheta. Observando a planície do terraço da Sé de Olinda, enfatiza:

[...] Não é uma dessas vistas de altura, das quais o mar fica tão baixo aos pés do espectador, que perde o movimento e a vida, parecendo uma tela diáfana estendida sobre o fundo vazio do ar, vistas em profundidade, que dão vertigem e nas quais a perspectiva é tão longínqua como se víssemos por um óculo virado. A vista de Olinda é outra; é uma vista em comprimento, em que os planos se sucedem uns aos outros como o desenvolvimento da mesma sensação visual, em que desde Olinda até ao Recife, e mais longe até o Cabo de Santo Agostinho, o olhar não precisa mover-se para apanhar a totalidade do cenário que se prolonga à beira do mar, salpicado das velas brancas das jangadas, penas destacadas das grandes asas da coragem, do sacrifício e também da necessidade humana! [...] O que faz a grande beleza deste nosso torrão pernambucano é em primeiro lugar o seu céu, que muda a cada instante, leve, puro, suave, onde as nuvens parecem ter asas, e que não é o mesmo um minuto; é depois o nosso mar, verde, vibrátil e luminoso, as nossas areias tépidas e cobertas de relva, os nossos coqueiros, que se vergam desde o soco até ao espanador de um brilho metálico e dourado, com que parecem ao longe sacudir as nuvens brancas, as jaqueiras e as mangueiras cuja sombra rendada é um oásis de frescura e abundância...

O que mais impressionava ao visitante e ao seu cicerone era a limpeza da cidade: “O que primeiro fere a vista no Recife é a limpeza da cidade, a brancura de toda ela. Vê-se bem a cidade de um povo de rio, que vive n’água, como o pernambucano. É um reflexo da Holanda, que brilha aqui!”.

O Marco Zero da cidade do Recife. Foto: Leonardo Dantas Silva

O branco era a cor predominante da cidade de então, que logo despertava a atenção dos viajantes e fazia do Recife “a mais bela do Brasil”. Ramalho Ortigão viu esse branco nas casas, nas pontes, nos edifícios, nos navios, nas velas e nas nuvens, sob luz forte de um sol tropical

que lhe dá o poder calcinante dos espelhos de Arquimedes, quando ele só é irresistivelmente belo ao luar, que dá a essa cal crua e reverberante um tom de pérola que faz a cidade parecer toda de mármore, mas de um mármore tirado das jazidas dos sonhos e da alvura imaterial dos fantasmas.

E continua Nabuco:

Eu verdadeiramente sinto que o eminente artista não se tenha demorado aqui à noite, para ver esse Recife, onde a imaginação de Castro Alves se povoou de todos os seus sonhos de poesia, de liberdade e de grandeza, o Recife do seu [poema a] Pedro Ivo, [...] dormindo imensa ao luar!

Possuído do orgulho de ser do Recife, enfatiza Joaquim Nabuco, com o seu poder de observador:

Para conhecer uma paisagem não basta vê-la, é preciso muito mais, é preciso que as duas almas, a do contemplador e a do lugar, cheguem a entenderem-se, quantas vezes elas nem mesmo se falam! Não é a todos que a natureza conta os seus segredos e inspira o seu amor, mas mesmo com os poucos de quem ela tem prazer em fazer pulsar o coração é preciso que eles se aproximem dela sem pressa de a deixar, com tempo para ouvi-la. Os viajantes nunca estão nessa disposição de espírito em que é possível estabelecer-se o magnetismo da paisagem sobre os sentidos, de fato sobre o coração. Felizmente, Ramalho Ortigão é uma máquina fotográfica instantânea, que apanha num segundo o seu objetivo todo, e acontece que hoje as boas máquinas percebem e notam sombras na pele, que não se veem a olho nu, e que servem para conhecer a enfermidade latente. Ele não terá sentido os eflúvios desta nossa terra, os quais talvez seja preciso ser pernambucano para sentir e que podem não ter realidade e magia senão para nós mesmos, mas a impressão que lhe causou a nossa Veneza há-se render-nos uma pintura que durará como as gravuras holandesas do século XVII.

4. AS VÁRIAS FACETAS DO RECIFE

Como as pessoas, as cidades
ou não se dão, ou se dão.
São elas introvertidas,
ou extrovertidas são.
O Rio se entrega todo
logo à primeira vista.
Mas o Recife, ao contrário,
se furta ao olhar do turista,
Que precisa procurar,
Com um bom e pronto guia,
Para que possa encontrar,
Nas suas ansiedades,
Donjuanescas e incontidas,
Da magra e esquiva cidade
As suas graças escondidas.
Carlos Moreira

Qual seria, entre tantas, a mais bela faceta desse nosso por vezes maltratado brilhante? Quem sabe qual seria a mais bela vista desse nosso Recife?

Esse nosso brilhante parece opaco e sem brilho, na imensa maioria de suas facetas, mas, com um pouco de boa vontade e olhando-se mais com o coração, a parte obscurecida do belo, por certo, tornar-se-á aos nossos olhos.

Vista do alto, a cidade pode ser assemelhada a uma meia estrela vista do Leste da qual se vislumbra a parte superior, tendo por centro a Ilha do Recife, com seus raios espargindo-se em busca dos subúrbios.

Pode também ser comparada a uma aranha, com sua teia apegando-se ao longo da planície como se estivesse sendo tragada pelo Oceano Atlântico. Assim pareceu o Recife aos olhos do poeta João Cabral de Melo Neto, quando visto De um avião:

........................................

e eis o Recife, sol de todo
o sistema solar da planície:
daqui é uma estrela
ou uma aranha, o Recife,
e estrela, que estende seus dedos,
se aranha, que estende sua teia:
que estende sua cidade
por entre a lama negra. 

Josué de Castro, em artigo publicado no Boletim da Cidade e do Porto do Recife (nº 19-34), observa que

o Recife, como qualquer outra cidade, não se deixa penetrar em sua essência, nem consente em revelar o sentido de sua alma aparentemente dispersa nos contrastes da paisagem, senão de um determinado ângulo visual. [...] A cidade só se deixa captar na unidade de sua expressão urbana, quando vista do alto dos aviões, em sua perspectiva vertical.

É das alturas das nuvens que se recebe todos os eflúvios de sua poesia urbana, subindo violentamente, através da atmosfera varada em todos os sentidos pelos reflexos da luz sobre as águas. Cidade construída numa planície encharcada, formada de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e paús, envolvidos e salpicados por manchas d’água por todos os lados, é impossível captar-se a expressão do seu rosto, do nível do solo ou do mar.

Mas qual seria a mais bela paisagem do Recife? De onde seria este ponto de onde pudéssemos captar aquele micro horizonte que viesse a ser um símbolo de nossa cidade?

O fato é que, estando localizado numa planície quaternária aluviônica, o Recife deve ser visto do alto, como demonstra Josué de Castro e como bem captou o poeta João Cabral de Melo Neto. De lá vislumbraríamos todo o delta do Capibaribe e as principais vias de penetração, como uma mão esquerda espalmada, com o seu punho voltado para o Atlântico, apoiada no Marco Zero, de onde partem cinco avenidas, formando depois uma verdadeira teia de aranha, como se estivesse sendo tragada pelo Atlântico.

Na falta de um mirante, poderíamos optar pelo Recife visto dos arrecifes, mais ao sul, ponto de onde Frans Post (1612-1680) retratou a Mauritiopolis do conde João Maurício de Nassau, em gravura publicada no livro de Gaspar Barlaeus, datada de 1645. De uma tomada dos arrecifes, o célebre pintor registrou, em primeiro plano, uma jangada e o arrecife de pedra com o Forte do Mar, seguindo-se do bairro portuário, com nove naus ancoradas, o casario português com seus sobrados, alguns de quatro pavimentos, e a primitiva ponte de madeira (1643). Do lado da Ilha de Antônio Vaz, onde fora erguida a cidade Maurícia, a paisagem é marcada pelo Palácio de Friburgo (1642), o primeiro observatório astronômico de George Marcgrave, a igreja dos calvinistas franceses e o casario a obedecer o traçado de Pieter Post, vendo-se ao longe Olinda e as colinas terciárias que cercam a antiga baía do Recife.

Quem sabe se poderíamos escolher a vista do Recife tomada da cabeceira leste da Ponte do Pina, ponto de referência usado por José Gonçalves da Fonseca em panorama datado de 31 de março de 1766? De lá, descortinaríamos a imensidão da Bacia do Pina, com o colorido dos armazéns do Cais José Estelita, vendo-se a Ilha do Recife e o seu porto; o bucólico bairro de São José, hoje mutilado nas empenas de seus sobrados pela insensibilidade de alguns comerciantes, mas ainda ostentando as velhas e seculares torres de suas igrejas.

Visto do Norte, em hora da preamar, da Ponte do Limoeiro ou do terraço do edifício-sede da prefeitura, teremos uma singular vista de Olinda e do Cais da Rua da Aurora, com a Ilha de Santo Antônio e as pontes que assinalam o centro da cidade. De suas cercanias, no Forte do Brum, foi desenhada uma das cromolitografias da série de W. Bassler, publicada em Dresden, em 1847. Hoje, de lá podemos, ainda, vislumbrar o bairro de São José, os jardins do Palácio do Campo das Princesas, as cúpulas da Assembleia Legislativa e do Palácio da Justiça, o casario da Rua da Aurora e alguns prédios modernos a manchar a paisagem com seus letreiros. Do lado contrário, da Ponte Velha ou da antiga sede da Rede Ferroviária, avistaríamos o Recife com suas pontes, com o rio ladeado pelas ruas da Aurora e do Sol, e a Casa da Cultura, que, a exemplo de outros importantes monumentos, encontra-se escondida pelo manguezal, plantado no centro da cidade em 1989.

A vista de Olinda pode ser captada da Ponte Princesa Isabel, particularmente quando da preamar. De lá o nosso olhar, por entre a vegetação do mangue e os jardins da Rua da Aurora, centra-se na Ponte do Limoeiro e assim chega até o Alto da Sé, de onde sobressai sobre o verde da colina a Igreja do Salvador do Mundo, o Seminário e o conjunto da Misericórdia.

Se vista do Alto da Misericórdia, em Olinda, a paisagem da planície do Recife, que tanto fascinou Ambrósio Fernandes Brandão (1618) e o reverendo Joannes Baers (1630), aparece como que surgida de uma cromolitografia de W. Bassler (1847). De lá podemos exclamar, como o poeta Carlos Pena Filho:

Ninguém diz é lá que eu moro, diz somente é lá que eu vejo!

Outras visões poderiam ser tomadas do Recife, até de pequeninos horizontes, como o bucólico Pátio de São Pedro. Lá, numa tarde de domingo, o poeta Mauro Mota, no colonial e bucólico bairro de São José, chegou a vislumbrar:

Um voo de pomba acaricia o espaço quieto
O Espírito Santo baixará no Pátio de São Pedro.

5. O BAIRRO QUE DEU NOME AO RECIFE

Ali é que é o Recife mais propriamente chamado.
Carlos Pena Filho 

Para o recifense, no Bairro do Recife encontra-se a origem de toda a cidade. No subúrbio ou mesmo nos bairros centrais de Santo Antônio e de São José, é comum a expressão como referência certa ao nascedouro do antigo Arrecife dos Navios: “lá dentro do Recife...”.

Quem chega a Pernambuco começa seu caminhar pelas ruas do velho Bairro do Recife: “Ali é que é o Recife / mais propriamente chamado”. Em torno dele, ao longo de seu porto, com seus 3 mil metros de cais acostável, estão às origens do povoamento do Recife quatrocentão. De lá se avistam as ondas quebrando sobre a muralha dos arrecifes, ponto onde o visitante sentirá na alma os versos do cristão-novo Bento Teixeira, escritos ainda nos primeiros anos de nossa colonização:

Hé este porto tal, por estar posta,
Huma cinta de pedra, inculta e viva,
Ao longo da soberba e larga costa,
Onde quebra Neptuno a fúria esquiva;
Antre a praya, e pedra decomposta,
O estranhado elemento se diriva,
Com tanta mansidão, q. hua fateyxa
Basta ter à fatal Argos anneyxa.
Prosopopéa, 1601.

Ao contemplar esta muralha, o sábio inglês Charles Darwin (1809-1882), autor da Teoria da evolução das espécies, quando esteve no Recife a bordo do navio H. M. S. Beagle, em 12 de agosto de 1836, assim registrou em seu diário :

O objeto mais curioso que observei nesta vizinhança foi o recife que forma o ancoradouro. Duvido de que em todo mundo haja outra estrutura natural que apresente aspecto tão artificial. Percorre uma extensão de vários quilômetros em absoluta linha reta, paralela à praia e pouco distante desta. A largura varia entre 30 e 60 metros e tem superfície nivelada e macia; compõe-se de arenito duro de estratificação obscura. Durante a preamar, as ondas se quebram sobre ele, mas, na vazante, a parte superior fica seca, de sorte que se apresenta como um quebra-mar construído pela mão de ciclopes.

 
O escritor Leonardo Dantas Silva e sua obra. Imagens: Divulgação

Depois de afirmar que a formação dos arrecifes da costa pernambucana se deve a um aglutinado de restos de animais marinhos, “pelo sucessivo crescimento e morte das pequenas conchas serpulae, juntamente com algumas bernaclas e nulliporae”, conclui:

Esses insignificantes seres orgânicos, especialmente as serpulae, prestam excelente serviço ao povo do Recife; pois, sem o auxílio da sua proteção, a barreira de arenito, de há muito, teria sido inevitavelmente destruída, e sem essa barreira nunca haveria de existir um ancoradouro.

LEONARDO DANTAS SILVA formou-se em Direito na Unicap em 1969. Trabalhou como jornalista, tendo atuado no Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco. Realizou pesquisas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Portugal) e em arquivos da Europa. Atualmente, é consultor e responsável pela coordenação do setor de pesquisa do Instituto Ricardo Brennand (PE).

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