A história do Brasil pelo olhar dos Albanos
Leia os primeiros capítulos do romance 'Espaço terrestre', de Gilvan Lemos, relançado pela Cepe Editora
TEXTO GILVAN LEMOS
01 de Outubro de 2018
Foto Reprodução
[conteúdo na íntegra (degustação) | ed. 214 | outubro de 2018]
Em julho de 1949, José Albano Neto amanheceu com vinte e um anos de idade. Estirado na cama, de costas, olhos bem abertos, sentidos aguçados, permaneceu vigilante, à espera. De que, particularmente, não sabia. Tenso, mal respirava, e só a longos espaços batia as pestanas, receoso de quebrar o sortilégio do que poderia acontecer. Mas, nada aconteceu. Aos poucos foi soltando a respiração, descontraindo os músculos, logrado porque enfim não descobriu em seu corpo, no ar que respirava ou nos objetos em redor, qualquer diferença que comprovasse estar ocorrendo um fato extraordinário em sua vida.
Haviam-lhe dito que aos vinte e um anos atingiria a maioridade, consequentemente se tornaria homem. Homem, não necessitava passar moscas no púbis para que ali nascessem cabelos. Homem, não teria de acreditar que os pelos do rabo do cavalo postos num caco de água viravam besouros; que a concubina do padre se transformava em mula sem cabeça e à noite, sem motivo aparente, saía em desabalada correria pelos campos; e que havia uma classe de indivíduos que viravam lobo e enquanto não estavam uivando para a Lua destinavam-se a atacar quem lhes aparecesse pela frente. Um homem é um homem, esclarecia sucintamente o avô. Embora fossem os próprios homens que imputassem e perpetuassem tais crendices.
José Albano Neto, no entanto, verificava que os dedos dos seus pés se friccionavam da mesma maneira de ontem, de anteontem e de anos atrás, obedecendo-lhe a vontade, dele, José Albano Neto, que, desse modo ancestral — assim, o pai, assim, o avô - espantava a preguiça mal desperta à jornada do trabalho; que seus olhos então piscavam com a mesma indolência e desinteresse, a enxergar objetos, reais ou imaginários, do mesmo modo fracionados pela desatenção ou pelo acúmulo de lembranças superpostas, como se o olhar desses olhos, movido por uma força remota, persistente, intencional, tivesse o só propósito de livrá-lo dos meandros do sono e da carência. E que, sob a penumbra do aposento onde dormia ao lado do pai, entremostravam-se as imagens de todos os dias, ligadas às primícias da aurora: a cantoria dos pássaros, a tropelia das cabras, os berros, o tilintar dos seus chocalhos, o azinhavre campestre da natureza delas, almíscar que o acompanhava desde menino, entranhado em sua pele, sua roupa, e que era o mesmo do pai, não do avô. Por que não do avô? José Albano Neto, curiosamente, nunca o sentira no avô, somente em si e ainda no pai, que há quatro meses em coma havia perdido o contato com os caprinos e mesmo assim o conservava. O pai, que ali estava, respirando, o coração batendo, e ele morto.
José Albano Neto, diante de tais evidências, aventou a hipótese de que os antigos próceres de Sulidade não tivessem restaurado corretamente o calendário, visto que, no transcurso da diáspora, tinham-no negligenciado e, assim, perdido a sequência dos dias, meses e ano em que viviam.
Dizia o avô que, anos depois de estabelecidos em Sulidade, os fundadores da vila guiando-se por calendário improvisado, aparecera um forasteiro que lhes dissera: “Estamos a 6 de janeiro de 1838”. Daí, eles constatarem que fazia exatamente 11 anos, 7 meses e 21 dias que haviam iniciado o êxodo, pois tinham partido do Recife em 15 de maio de 1826.
Contudo, quem podia asseverar que o forasteiro os informara honestamente? Nesse caso, ele, José Albano Neto, poderia estar com 18 ou 20 anos, ou menos, ou mais. Perturbado pela influência da arbitrária contabilidade duma velhinha da aldeia que, tendo nascido de sete meses descontava todo ano dois meses do total de sua idade, não lhe ocorria, a ele, José Albano Neto, que vindo ao mundo em determinado dia, mês e ano, mesmo pelo calendário improvisado, a partir daí é que sua idade passaria a ser computada, independentemente de que os antigos próceres, antes, tivessem perdido a sequência do calendário verdadeiro e o recuperado impropriamente. Fosse assim, todos os habitantes de Sulidade, inclusive os Albanos, teriam vivido em épocas trocadas, anos errados, portanto permanecido por mais de um século desgarrados no tempo e no espaço. O que, de resto, não estava longe de ser verdade, diria o avô.
Em número, os Albanos seriam os menos atingidos nessa troca. A partir do primeiro Albano, seu trisavô Albano Nuno Varela, nenhum dos seguintes conheceu a própria mãe. Albano Filho, seu bisavô, perdeu-a ao nascer; José Albano, seu avô, e Albano José, seu pai, igualmente. Sem falar dele mesmo, José Albano Neto, cuja mãe também morreu de parto, em decorrência do qual ele veio ao mundo.
Em cinco gerações, cinco Albanos, um em cada geração, restando no momento três: ele, o pai e o avô, sendo que o pai, em coma há quatro meses, não morria porque o avô, aos noventa e seis anos, se recusava a ir primeiro, e nenhum Albano morria antes do pai.
Era possível que ele, José Albano Neto, anteriormente já tivesse atingido a maioridade, se tornado homem desde o dia em que o avô o levara ao arruado a fim de conhecer mulher. Talvez o tivesse visto descomposto, ao amanhecer, ocasião em que comprovara a eficácia do expediente das moscas esmagadas sobre o púbis, a que correspondia sem rebuço o sarçal de finos restolhos de cor avermelhada, como tostados pelo sol, colocados em desordem na cavidade pelviana do seu corpo. Quem sabe o tivesse flagrado em alguma noite de insônia ou em libidinagem com as cabras. O certo é que o avô fora ao pai:
— Neto precisa desdomar a natureza de homem.
— Com tanta cabra aí?
— A cabra remedia mas não mata a fome.
— Encarregue-se disso o senhor. Pra mim, como pai, fica mais dificultoso.
O avô não pretendia para ele uma mulher qualquer, dessas que já faziam seu comércio airoso no lugarejo, agora invadido por forasteiros de toda espécie. Aspirava-lhe, se possível, um casamento, de preferência com uma descendente dos antigos Marinheiros, gente que ele conhecia de rama e raça. A viúva de Anselmo Solha, consultada, fora categórica:
— Ave Maria! Meu Jesus! E me apetecem mais essas gaifonas romanescas?
A Sara Mondega, passada em anos, encostada porque, na época propícia ao casamento, estava em noivado com as febres e outras mazelas, também recusara:
— Vocês, Albanos, matam as mulheres no primeiro parto. Acha que não vou mais prosperar? Olhe que não é por acaso que me chamo Sara.
Outra viúva, a Mercedes, fora mais compreensível:
— Pra casar, não. Não tenho mais paciência, e era mais um filho que eu ia criar. Olhe que pra certos encontros até que eu aceitava, remédios se tomam enquanto há esperança. O que precisamos, para decoro da convivência, é de uma coisa: segredo. Assim acertado, mande o rapaz.
Aos sábados, depois de vender o queijo na feira, José Albano Neto ia ter com ela, a Mercedes, que, a despeito da idade, era enxuta de corpo; sem dúvida, bem melhor que uma cabra. A única vez que a vira nua José Albano Neto estranhara. Era como se lhe faltasse uma coisa. Assim como se lhe tivessem cortado a cauda, caso ela tivesse tido uma. Uma cauda que, nela, em vez de ter nascido atrás fosse localizada à frente. Mercedes o usava como remédio, apenas uma mezinha à carência dos seus quebrantos, dela, dos dois. Não o afogava em abraços voluptuosos, não o beijava, mas, ao cabo, sempre dizia:
— Você tem ranço de bode.
Mercedes porém não o serviu por muito tempo. Morreu duma doença que se prolongou por mais de um mês, doença sem cura. Aos sábados, depois da venda do queijo, José Albano Neto ia vê-la, não pra saber de sua saúde, mas para certificar-se de que ela não o podia atender. Mercedes sorria, tristonha, narinas arregaçadas, como a lhe dizer que o estava sorvendo, sentindo-lhe o ranço de bode. Depois de sua morte, José Albano Neto voltou ao convívio das cabras, sob o olhar analítico do avô, que acompanhava o aviltamento a que o submetia a força secreta hominal.
Do avô José Albano, com quem mais convivia, é que José Albano Neto ganhava os conhecimentos: da labuta no campo, das mudanças do tempo, das desgraças, das intempéries, do louvor à bonança, da conformação ao sofrimento, das imposições da vida e da inutilidade da luta inglória contra o que já estava traçado por um Ser invisível que não chamava Deus, mas que, ao referir-se a Ele, erguia os olhos ou apontava o céu com o indicador rústico, apocalíptico, de determinação imemorial. Do avô, que igualmente convivera com todos os Albanos conhecidos e a todos ouvira, é que José Albano Neto apreendia as histórias da família e de Sulidade, as que provavelmente teriam acontecido ou que supunha possíveis de terem acontecido. Histórias não documentadas, não contadas em livros, sujeitas portanto a interpretações pessoais, diminuições ou acréscimos próprios de narrativas que, por muito repetidas, vão-se deturpando naturalmente. Não obstante, para José Albano Neto, o avô era o centro de tudo que dizia respeito a Sulidade e à família Nuno Varela, o avô era sábio.
Desde criança José Albano Neto ouvia falar do primeiro Albano que aportara ao Brasil, por volta de 1810,12,20, por aí, vagamente, ninguém sabia ao certo, como ao certo não se sabia de que região de Portugal ele viera. De Portugal, da Galiza, da Espanha. Ou não viera de parte alguma, aqui nascera e se criara, remanescente dos holandeses que, no século XVII, dominaram por mais de vinte anos a região pernambucana. O próprio José Albano, a quem o neto recorria, desculpava-se, ranzinza:
— Ah, que queres? Eu estava com doze anos quando ele morreu, não tinha interesse por essas patranhas. Além do mais, naquele tempo era de uso os netos respeitarem os avós. Neto não puxava conversa com avô, nem o acusava de ser aparvalhado.
Às vezes, José Albano o dava como alto, troncudo, de pernas musculosas e ágeis. Mas, quando mal-humorado, principalmente sob as impertinências do neto, referia-se a ele como “aquele nanico da bunda baixa”, corrigindo-se logo entre estalidos de língua:
— Já o conheci velho. Embora que, à vista de hoje, ele pra mim era um menino.
O primeiro Albano, sob a ótica fantasiosa de José Albano Neto, podia até ser descendente de algum pirata inglês, do tempo em que esses piratas costumavam saquear os armazéns de açúcar existentes no Recife, então simples aldeia de pescadores, com o porto já em pleno funcionamento, exportando produtos da terra para a Europa. Um desses piratas teria se desgarrado dos seus comparsas e aqui constituído família. Ou de francês, um que tivesse vindo do Maranhão, no período em que os franceses fundaram São Luís. Não se descartando a hipótese de que esse mesmo Albano tivesse sangue judeu correndo em suas veias, tal o número de marranos que se estabeleceram na província, também chamados de cristãos-novos, denominação a que se submeteram, ou a que foram submetidos, a fim de se livrarem dos rigores da Inquisição. Sobre isso os últimos Albanos calavam.
Quanto a ser louro, de olhos claros, não havia discordância. Os Albanos eram todos louros e de olhos claros. José Albano Neto, diante do que ia aprendendo ou descobrindo, achava, sem revelar ao avô, que mesmo que assim não tivessem sido, assim tê-los-iam classificado, porque, na verdade, tais atributos, ao correr dos anos, principalmente agora que Sulidade se descaracterizava, constituíam a maior glória e o constante orgulho dos Albanos. Tanto que quando se referiam a um deles, aos dois anteriores que José Albano Neto não conheceu, concluíam, sentenciosos: era louro dos olhos azuis.
Em Sulidade, mesmo quando somente constituída dos antigos Marinheiros, viam-se muitos suspeitos de misturas raciais, sem faltar o moreno trigueiro, bem escuro. Desses, dizia- se que tinham sangue mouro. Para os de Sulidade não havia desdouro se a mestiçagem tivesse sido processada em Portugal. Não queriam era ter-se misturado aos negros do Brasil, negros escravos. E se bem que os da primeira geração blasonassem de sua origem portuguesa, adotando sem pejo a alcunha de Marinheiro, a partir do momento em que, aos poucos, iam-se desligando da Terra procuravam, por razões de pureza de sangue, raízes em outras civilizações, de preferência nórdica, angla ou saxônica, mesmo que os desses povos tivessem tido passado pouco honroso, como os piratas ingleses, por exemplo. Daí José Albano Neto jamais ter dado crédito à confusa formação da estirpe do primeiro Albano, o Nuno Varela, às suposições, aos remanejos cometidos com o fim de torná-lo mais lendário do que era, mesmo porque...
O escritor pernambucano em seu apartamento na 7 de setembro, no Recife, de onde pouco saía. Foto: Rafael Gomes/Divulgação
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Albano Nuno Varela fora trazido numa canoa, desembarcado no cais do trapiche, jogado à terra como volume duma mercadoria qualquer, o corpo moído da travessia realizada em condições precárias, num navio que parecia somente balançar em vez de navegar, despojado do muito que era seu, o vigor, as intenções, a esperança, tudo vomitado, ora pois, nas águas do oceano.
Cegava-o, aquela inesperada claridade tropical, revolviam-lhe o estômago aqueles odores nauseantes, agressivos, de óleos e gorduras carregados, penetrantes, enjoativos. No corpo, desfalcado de alguns quilos, a roupa colava, inundada de suor. Faltava-lhe a respiração, o alento. Doía-lhe o desamparo, intranquilizava-o o inaugural encontro com a solidão.
Teria ficado ali, entregue à fatalidade, se um dos companheiros não o tivesse pegado pelo braço, o amparasse, conduzindo-o a uma hospedaria próxima. Era o atilado da turma que em camaradagem se formara durante a travessia, o informante, o orientador: viajava pela terceira ou quarta vez, do velho ao novo continente e deste àquele.
Na hospedaria, desorientado, Albano Nuno Varela se refazia inconscientemente, sob o olhar suspeitoso do hospedeiro, que ao certo não sabia se dele receberia pagamento. Seu benfeitor havia desaparecido, Albano Nuno Varela não lhe guardara o nome e, no estado em que se encontrava, seria incapaz até de reconhecê-lo. Tampouco, pensava, seria reconhecido por ele. À chegada, todos se dispersaram. Dali em diante, cada um por si, lei natural, inerente à sobrevivência.
Somente no terceiro dia da chegada, dinheiro acabado, o hospedeiro a ameaçá-lo com a polícia, Albano Nuno Varela conseguiu lugar num armazém de secos e molhados, ali mesmo, no bairro portuário. Era dum português casca-grossa, novo ainda, o Manuel, que não lhe marcara ordenado nem lhe designara serviço específico. Albano Nuno Varela fazia de tudo e quase nada recebia de ganho, salvo a comida e um lugar para dormir, o que, nas circunstâncias presentes, já era muito.
Contudo, fora difícil a adaptação ao mundo novo que se lhe oferecia. Esquecido dos projetos açodados pelo interesse, a ambição de enriquecer facilmente, permanecia horas e horas à janelinha de guilhotina, do sótão onde se alojara, refazendo o caminho da chegada, ansioso para repeti-lo de volta. Mas as ondas do mar a quebrar com violência contra os arrecifes, os fortes do Buraco e do Brum fechando a passagem da Barra Grande, por onde chegara à Barra Pequena, esta com mais um forte a guarnecê-la, o do Picão, impediam-lhe qualquer projeto de esperança, imprimiam-lhe compressivo sentimento de impotência.
Igual ao que sentira anos atrás, ao voltar da eira e dar com a mãe sentada num tamborete, em trágica mudez, diante do corpo do pai estirado na cama grande, vestido ainda com a roupa da labuta, mas descalço, um lenço cobrindo-lhe o rosto por causa dos moscardos, ou nem por isso: talvez a morte ali necessitasse doutros resguardos. Ao retirarem-no para o ataúde, permaneceram por algum tempo duas cavas redondas, impressas pelos seus duros calcanhares na palha do colchão. Dois sulcos que, como se em ferro abrasado fossem, marcaram-no para sempre, aprisionando-o à destinação de um dono que nem por estar ausente deixava de dominá-lo, reprimir-lhe a vontade, castigá-lo. E a rematar-lhe as penas, de lá como de cá, havia, ainda, ao alcance de sua visão, uma cruz de pedra elevada sobre o istmo que seguia até Olinda. Nem portentosa nem poética: crua, muda, enegrecida. E cruel.
Segundo lhe haviam informado, Olinda continuava a ser a capital da província, embora o Recife já a ultrapassasse em número de habitantes, movimento comercial e tudo o mais, tendo avançado da ilha onde se originara até às outras vizinhas e alcançado o continente, dando mostra de que pretendia dilatar-se, enquanto Olinda minguava em seu ressentido orgulho, nostálgica dos antigos faustos, os mesmos que tinham despertado a cobiça dos holandeses, há quase dois séculos. Incendiando Olinda e instalando-se no Recife, que, nesse tempo, não passava de pequena aldeia de pescadores, os holandeses o valorizaram e o tornaram mais importante que Olinda, assim a derrotando duas vezes.
Por mais que lhe contassem fatos da história local, que o esclarecessem sobre costumes aos quais não estava habituado, Albano Nuno Varela não conseguia entender satisfatoriamente aquela nação de brancos, negros, índios e mulatos. De negros que se diziam escravos e brancos que se proclamavam livres mas que não gozavam, estes como aqueles, de plena liberdade, havendo sempre uma entidade maior que os governava a todos, um poder supremo que, vindo do rei, dos governadores, dos senhores de engenho, dos altos comerciantes, dos potentados, enfim, unifica-se, tornando-se um só, impalpável, invisível mas invencível.
A princípio, Albano Nuno Varela julgara que ia encontrar portugueses como os da Terra, mas aqui os próprios portugueses se dividiam, alguns bandeados com os nativos que deveriam igualmente ser portugueses, mas que como tal não se consideravam. Enquanto que o rei, que deveria sê-lo tanto de lá como de cá, era-o somente de lá, segundo proclamavam, descontentes, os de cá. Daí a insatisfação geral, o clima de guerra em que se vivia, a insegurança dos reinóis, de consequências penosas a recair sobre os menos afortunados ou privilegiados, como ele, pejorativamente chamados de marinheiros. Marinheiro-pé-de-chumbo, galego, cotruco, cupê, mascate, mondrongo, talaveiro, parrudo, e tudo que de depreciativo pudessem encontrar para insultá-los.
O bairro portuário era o mais densamente povoado, com sobrados de quatro, cinco e não raro seis andares, que abrigavam no térreo grandes casas comerciais, armazéns fornecedores de açúcar, algodão, madeira e outros produtos da terra destinados ã exportação. Assim como pequenas indústrias de fios, cordas, artefatos de couro, móveis e utensílios, vasilhames de cobre, instrumentos de ferro, colchoarias, teares. Em certos aspectos, lembrava Lisboa, que ele não chegara a conhecer a fundo. Em Lisboa, foi só chegar, tomar o navio e vir desiludir-se. Pelas esquinas e ruelas que lhe lembravam sempre quelhas imundas que ele vira de passagem por Lisboa, aglomeravam-se tanoeiros, marceneiros, entalhadores, relojoeiros, sapateiros que, em seus ofícios, eram geralmente orientados por indivíduos que os exerceram anteriormente e que, tendo através deles obtido algum rendimento, os transferiam para a execução dos escravos. Para os brancos, na maioria portuguesa, e para os brasileiros que lhes imitavam os costumes, era vergonhoso executar trabalhos manuais, artesanais, peculiares às classes baixas, senão aos escravos. No mercado e no pátio da igreja, vendiam-se frutas, raízes e cascas de pau. Negras quase nuas preparavam comedorias, carnes e peixes em molhos de cores vivas, a mexer com colheres de pau os panelões reluzentes de gordura e de fuligem, que lhes lançavam ao rosto o vapor que se lhes misturava ao suor, nem por isso impedindo-as de fumar o cachimbo que quase todas acomodavam, pachorrentas, na boca de lábios grossos, repuxados com desdém.
Negros recém-chegados d’África, uns na força da idade, machos e fêmeas, crianças e até velhos, agrupavam-se em frente aos armazéns, à espera de compradores. Encurralados, submissos, sem aparentar nenhuma vontade consciente de fuga ou de revolta, tal o estado em que se encontravam, espalhavam-se, desligados de afeição ou afinidade uns com os outros. Deitados, acocorados, ausentes, só as crianças brincavam, despreocupadas, livres em sua inocência. Vestiam-se sumariamente, os homens cobertos por uma tanga, as mulheres de peitos à mostra, algumas delas ocupando-os na amamentação dos filhos. Vários traziam na pele marcas de doença, pústulas ou cascas de bolhas mal saradas, ressequidas, que eles coçavam, ferindo-se. Nos riscos cinzentos deixados pelas unhas passavam o dedo molhado de saliva, talvez procurando apagá-los, como se aquilo fosse a única mácula a desonrá-los.
Do magote exposto, de vez em quando aproximavam-se outros negros — estes cativos mas acomodados, já propriedade de algum senhor — à procura de entendimento, notícias do mundo deles, quem sabe por solidariedade. Davam-lhes frutas, doces, roletes de cana, puxavam conversa em dialetos, para ver se descobriam donde tinham vindo. Os escravos à venda recebiam os mimos e os mastigavam sem dar mostra de estarem prazerosos ou agradecidos.
Muitos havia prodigiosos, de músculos notáveis em sua carnadura, cujo suor devia ser preto como a pele que os exsudava. O cheiro deles, muito ativo, deixava em Albano uma dúvida. Seria do seu corpo aquele odor, ou do humor de suas chagas, ou da imundície em que se encontravam, ou era aquela a fragrância própria da escravidão? Albano Nuno Varela apressava-se em se afastar dali, porquanto lhe parecia vislumbrar nos olhares de algumas negrinhas adolescentes o desejo humilde e terno de serem compradas por ele.
Até então, por certo, Albano não as desejava nem mesmo para deleite do corpo, prática em que as iniciavam senhores inescrupulosos, em conluio com os demais empregados de suas casas e até com outros escravos, incentivando-os abertamente, com vistas à prosperidade de seus plantéis. As negrinhas, logo parindo, aumentavam-lhes o cabedal. Relativamente apenas ao prazer, isso desses senhores inda era pouco, se comparado à atividade de certos comerciantes que costumavam servir-se de jovens impúberes, trazidos da Terra para caixeiros e amantes, jovens imberbes que, muita vez puros, muita vez inocentes, a tudo se submetiam, por timidez e necessidade.
A propósito, Albano Nuno Varela verificava que se amava em demasia no novo mundo. Nas esquinas, nas areias do trapiche, à sombra morna de sensualidade pegajenta das jaqueiras, às bermas das estradas, nos porões, nos sótãos dos sobrados coloniais, às margens do rio, no massapé enlameado, voluptuoso atrativo do excitamento ao sexo, com seu rumor lembrado de lascívia. Havia como uma premente inadiável deliberação em povoá-lo, sem que para isso o bem-estar ou os interesses de todos fossem consultados, tivessem algum sentido útil. Isso era o que se via nas classes menos importantes, publicamente, as mulheres pobres abrindo as pernas à procriação desenfreada. Se bem que as senhoras da classe alta, nunca vistas senão em cerimônias religiosas ou a caminho de reuniões fechadas, também elas fechadas em liteiras portadas por escravos, assim como em carruagens tiradas por cavalos de escol, fossem protagonistas, segundo se comentava, de romances secretos em cantos de jardim, caramanchões floridos, em parceria com primos estudantes de Coimbra, jovens bacharéis recém-vindos da corte — os dedos fidalgos ainda livres da marca do anel de pedra de rubi — e até com robustos escravos, a quem caprichosamente seduziam e em seguida faziam-nos sacrificar.
Persuadido de desejos, a Albano Nuno Varela as vibrações sonoras provocadas pela viração marítima não eram nada mais que ofegos de cansaço no ato do amor; o bafio instável da maresia, glutâmico, não mais que o do cio, de instigante lubricidade. Sabia-se entretanto despreparado à submissão daquela orgia de luxúria, portanto se retraía em caminhadas solitárias, uma mágoa antiga a sufocá-lo, a reprimir-lhe a vontade: arrependia-se de ter vindo. Se era pra viver debaixo da mesma contenção, da pobreza inata, não devia ter saído de sua terra. Lá pelo menos contava com a mãe, estava mais perto da lembrança do pai.
Furtava ao patrão as horas de lazer, com o intuito de encontrar melhor ocupação, talvez um emprego mais promissor. Deixava o bairro portuário, aventurava-se mais longe. Uma ponte dava acesso à Ilha de Santo Antônio, que prosperava, com a igreja frontal, ruas novas, edifícios em construção, o erário público situado no que restava de um dos palácios construídos por Maurício de Nassau, a cadeia, casas de espetáculos. Mais além havia outra ponte, esta ligando Santo Antônio ao Bairro da Boa Vista, que se formava sobre mangues aterrados. Restaurada, com bancos para sentar enfileirados no passeio, a Ponte da Boa Vista atraía senhores bem situados no comércio, cachopas e gamenhos. Em constante movimento, entendendo-se como cachopas as mulatinhas livres, vestidas com elegância, prazenteiramente oferecidas.
Na Ponte da Boa Vista, Albano tivera sua primeira oportunidade amorosa, na pessoa duma dessas mocinhas, uma de pele quase branca, que o abordara delicadamente com o bico dos seus sapatinhos brancos de cetim, seu olhar langoroso a sobressair-se debaixo da capa negra que lhe protegia a cabeça. Albano logo deduziu: mulher de vida alegre que, pelos atavios mais ou menos luxuosos, deve cobrar bem caro. E pôs-se em retirada, sob o espanto irônico da mestiça. Dias depois, um patrício de meia-idade, que fazia compras no armazém em que Albano trabalhava, mostrou-se-lhe simpático, ao saber que ele provinha da mesma região de Portugal donde também viera. Por conta disso, convidou-o a visitá-lo em sua quinta, perto de Olinda. Num domingo ensolarado, mandou dois escravos apanhá-lo no armazém. Com a permissão excepcional do Sô Manuel, Albano seguiu-os, apagado, neutro, sumido entre seus poderosos músculos. Navegaram de canoa, margeando o istmo, subindo o Rio Beberibe que, àquela altura, já tinha suas águas tomadas pelo mar, as margens bordadas de manguezais. Ao passarem perto da cruz de pedra, a mesma que Albano avistava da janela do sótão, os negros largaram os remos a fim de se benzerem. Era a Cruz do Patrão, disseram-lhe, muitos de sua raça estavam enterrados por ali, junto com criminosos, por isso o local era mal-assombrado. À noite povoava-se de duendes, almas do outro mundo, zumbis. Ouviam-se gemidos pavorosos, gritos e arrastar de correntes.
Para além dos manguezais, brotavam árvores frondosas, clareiras donde surgiam casebres e uma ou outra residência de aspecto senhorial. Olinda postava-se à direita, era a capital da província, quase que simbolicamente. Permanecia como sede do bispado e seis meses por ano hospedava o governador. Tinham-lhe dito isso, não lembrava quem. Albano pediu confirmação aos negros que, sob a compulsão dos remos, apenas riram. Nada tinham compreendido, haviam tomado a pergunta por uma pilhéria, pilhéria de branco.
Logo mais a canoa peitava a praia, a quilha pontuda enterrando-se na areia. Os dois escravos carregaram Albano nos braços, depuseram-no em terra firme. O patrício o esperava, em ceroulas, camisa de algodão aberta ao peito, donde despontava um emaranhado de cabelos negros, alguns já embranquecidos. Festejou-o, conduziu-o à casa, um chalé de ar simpático, batido por ventos salinosos. Duas redes já se encontravam armadas no alpendre, além de outra cujos punhos se amarravam em coqueiros.
Uma negra risonha, de quadris redondos, em longa saia estampada, casaco de meias-mangas, um pano branco na cabeça, braços roliços repletos de pulseiras e berloques, apareceu com a bandeja composta de licores, vinho, queijo e guloseimas várias, tudo do reino, do de além-mar, conforme se apressara a esclarecer o patrício, acrescentando, com referência à matrona:
— É minha esposa —, seguindo-se à revelação uma piscadela marota, percebida pela mulher, que fez questão de emendar, ao mesmo tempo em que se lhe afastava do rosto o riso festeiro de há pouco:
— Mas não sou escrava não, não sou escrava, fique sabendo, meu senhor.
O português riu a gosto, batendo-lhe nos quadris:
— Mas que tal despropósito disseste, meu tesouro? Na verdade, eu é que sou teu escravo. Não é pra ti que trabalho?
Depois do almoço foi que a outra apareceu. A outra era a mestiça que topara Albano no passeio da Ponte da Boa Vista. Aqui mais bela, porque mais simplesmente vestida, e mais discreta, porque em casa. Na casa dos seus pais. Era filha do português com a negra dos quadris redondos. Albano, por outro lado, não sabia dizer se estava sendo reconhecido. A moça inundada em água-de-cheiro, não dava mostra disso. O patrício, que já se havia livrado do casaco e arrastado para a rede a suposta esposa, fez um gesto para que Albano se afastasse com a filha. Albano nada disse, mas demonstrou, numa expressão de surpresa, o embaraçoso da situação. O patrício largou uma gargalhada comprida, sem peias e, quando pôde, cochichou:
— Oras, são negras.
Albano ficou assistindo em casa do português. Sempre que tinha oportunidade ia ao chalé passar o dia e lá ficava com a filha dele, aprendendo as novidades da terra. E a mulatinha, nesse ínterim, deixou de frequentar o passeio da Ponte da Boa Vista. Certamente se resguardava para Albano.
Entretanto, uma vez o patrício apareceu no armazém de modo inesperado, demonstrando certa preocupação. Fora somente pedir a Albano que não mais o visitasse. Havia uma pessoa de posição interessada em sua filha. Assunto sério, negócio pra casamento. Homem de posse, ele dizia, um figurão.
— E ela quer? — perguntou Albano, ingenuamente.
O português bateu-lhe na barriga, então divertido e auspicioso:
— E tem escolha, catano? Ela vai ser uma senhora branca.
Desde 2016, a Cepe Editora tem reeditado obras de
Gilvan Lemos. Imagens: Reprodução
GILVAN LEMOS nasceu em 1928, em São Bento do Una, agreste pernambucano. Noturno sem música, seu primeiro romance, foi escrito em 1951 e publicado em 1956. Vencedor de vários prêmios regionais e nacionais, publicou romances, livros de contos e novelas. O escritor pertencia à Academia Pernambucana de Letras e faleceu em agosto de 2015.