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“A ópera tem que estimular temas próximos à sensibilidade contemporânea e brasileira”

Nesta entrevista, o multiartista e pesquisador Armando Lôbo aborda o gênero em várias dimensões da atualidade no Brasil

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

03 de Janeiro de 2023

O músico e pesquisador Armando Lôbo

O músico e pesquisador Armando Lôbo

Imagem SUZANNE HEFRON/DIVULGAÇÃO

[extra à reportagem A ópera viveed. 265 | janeiro de 2023]

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De arte multimídia, Armando Lôbo entende: seu doutorado, concluído em 2018 na Universidade de Edimburgo, foi sobre ópera multimeios. “O nome da tese é Iludens, e combinou composição com reflexão musicológica e filosófica sobre a natureza do jogo e do ritual na música e na cultura como um todo”, explica o músico, que compôs a ópera Noiva (2014), com libreto do poeta paulista Renato Rezende, e Migrações (2019), em parceria com o compositor Beto Villares e o poeta Geraldo Carneiro.

Sua terceira ópera concebida para os palcos, Dadá, “sobre uma madrugada aflita na vida madura da viúva de Corisco”, estreou no último dia 10 de dezembro, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Já suas duas óperas-filme, Penélope 19 e Último dia, concorreram em diversos festivais de cinema — havendo, a segunda delas, ganhado três prêmios nacionais e quatro internacionais. Nossa conversa com Armando abordou o papel da ópera contemporânea, o perfil das elites culturais do país e as limitações dos gestores culturais e das leis de incentivo.

CONTINENTE Em que as leis de incentivo à cultura e os respectivos editais públicos precisariam se aperfeiçoar para estimular a difusão e formação de plateia operística?
ARMANDO LÔBO A ópera tem que recuperar seu papel renovador, sua ênfase na integração das artes, além de estimular temas próximos à sensibilidade contemporânea e brasileira. A proporção de produções de óperas inéditas deveria ser bem maior. Não me agrada uma abordagem museológica em relação à ópera, que, desde seus primórdios, tem se apresentado como desbravadora de caminhos, não apenas na música, mas também no teatro, na filosofia estética. Os editais deveriam valorizar mais a aventura criativa, o hibridismo, e não tanto a manutenção da ópera tradicional. O público tem que ser conquistado pelo aspecto inovador e impactante da ópera. Os editais também devem flexibilizar suas linhas de ação, permitindo que a ousadia estética apareça em propostas que desafiem o formato muitas vezes dispendioso da ópera convencional. Mais do que preservação do passado, a ópera deve ser uma abertura ao mesmo tempo etérea e frenética ao devir. O objetivo da ópera não é a música nem o teatro, é o sublime, atingido pela combinação de meios múltiplos.

CONTINENTE Quais caminhos os compositores de música de concerto poderiam seguir para estabelecer uma melhor comunicação com o público em geral, em termos estéticos, de modo a popularizar a ópera? Ou ainda: como competir com outras artes audiovisuais que possuem maior apelo contemporâneo, como o cinema, a televisão e as séries de streaming?
ARMANDO LÔBO Remontar óperas pertencentes a um repertório desgastado é a pior opção. Como disse antes, projetos de óperas que se aproximam da sensibilidade contemporânea deveriam ser mais contemplados. O mais importante na ópera é o risco, o desafio do sublime, o apelo universal e atemporal. “A Eternidade é enamorada dos frutos do Tempo”: este provérbio de William Blake poderia ser levado em conta em todos os processos de produção de uma ópera atual, desde o libreto até a montagem. Repetir Mozart ou Puccini infinitamente depõe contra a natureza desbravadora da ópera. A dramaturgia tem que ser cuidadosa, para enredar o público na trama emocional das obras. A música tem que ser rica e desafiadora. Todos os aspectos musicais e cênicos devem construir uma unidade sedutora e abismal. A veiculação online também ajuda na expansão do público operístico, mas o imprescindível é o cuidado com a qualidade artística da música e encenação. Antes de tentar ser mais popular (já que a ópera costuma ser patrocinada, dependendo menos de bilheteria volumosa), o mais importante é a qualidade artística dos projetos! A busca por um público mais abrangente é muito necessária, mas isso deveria acontecer apenas no estágio de divulgação. A obra tem que ser concebida e desenvolvida com um propósito 100% artístico! É preciso honrar o patrocínio público. Precisamos mais do poeta do que do produtor metódico.

CONTINENTE Como compositor de duas minióperas para o YouTube (Penélope 19 e Último dia), esse formato seria um caminho financeiramente viável, ou a ópera estaria ainda limitada a ter alguma rentabilidade apenas em teatros? Ou, atendo-nos ao campo estético, esse formato poderia ser mais bem explorado, digo, aderido por mais compositores?
ARMANDO LÔBO Eu criei duas pequenas óperas em formato de vídeo, além de outras duas para palco (sem contabilizar Dadá) — todas com baixíssimo orçamento e resultado, creio, bastante original. O formato cinematográfico é importante, pois acho que a ópera-filme deve ter abordagem cinematográfica, não ser uma ópera filmada de forma burocrática, como teatro filmado. Com minhas óperas-filme eu consegui abrir espaço no meio da videoarte e do cinema independente, acessando um público que provavelmente nunca tinha visto uma ópera no palco. Todos os formatos tecnológicos são bem-vindos. A internet é ótima ferramenta para a expansão do público.

Cena da ópera-filme Último diaImagem: Raphael Malta Clasen/Divulgação

CONTINENTE A elite econômica, que, ao final das contas, é quem tem a maior capacidade de investimento nas artes, parece bastante reacionária culturalmente (ao menos no Brasil), restando à academia e aos artistas explorarem novas possibilidades estéticas. Como conceber que aqueles que mais têm acesso à educação e à cultura não busquem mais uma educação estética?
ARMANDO LÔBO A nossa elite econômica gosta de muita porcaria, isso quando ainda chega a considerar arte algo importante. Elites culturais eu nem sei se existem no Brasil direito. Por exemplo, no Brasil há muita gente supostamente “culta” que tem um gosto musical altamente duvidoso: música popular frouxa e pop “alternativo” clichê. A MPB acabou por estabelecer um parâmetro de qualidade bastante questionável. As potencialidades da música brasileira telúrica foram de certa forma diminuídas pela chamada “MPB”. Acho bem mais potente a música dos aboios, das carpideiras, dos violeiros, das lavadeiras, das tradições afro-brasileiras e indígenas, os sambas de morro, o choro etc. do que a leitura asséptica e pequeno-burguesa que a MPB fez da tradição. Estou traçando um panorama geral, sabendo, é claro, que existem honrosas e gloriosas exceções. Talvez eu esteja sendo demasiado bartokiano, mas, até em termos meramente estéticos, o canto rubato de um aboiador é mais relevante que a MPB. A música brasileira precisa se ligar... DJs japoneses de hip hop são mais instigantes artisticamente do que o charminho cínico de cancionistas “descoladinhos” do Brasil atual. O termo alternativo prejudica a música brasileira, geralmente é refúgio de “artistas” preguiçosos e sem imaginação, e que não representam uma alternativa, mas apenas uma máscara elitista, quando não oportunisticamente ativista, do mainstream.

CONTINENTE E quanto aos gestores culturais, muitos dos quais participam de comissões de avaliação de editais ou são pareceristas?
ARMANDO LÔBO Ressuscitem Diaghilev! Meu desejo é que gestores e pareceristas se convençam da necessidade de renovação artística, em diversos contextos. A arte é um mergulho colorido no abismo, no indizível. Querer transformar o artista criador em empreendedor burocrata é uma das piores consequências dessa cultura de planilhas, tão atrelada aos sistemas de incentivo. Precisamos de mais produtores e agentes culturais conhecedores e engajados nas linguagens poéticas e estéticas mais relevantes de todas as formas de arte. É um crime cultural um projeto ser aprovado porque se encaixou nas restrições de um edital, porque tem uma planilha orçamentária impecável, ou porque o produtor responsável tem histórico de prestação de contas ágil. Essa burocratização “eficiente” da produção cultural é reacionária, e significa a morte de muitas propostas relevantes artisticamente. É preciso que se diga uma coisa: muitas vezes os produtores seguem o caminho mais fácil para submeter um projeto devido justamente à irrelevância dele, porque este teria um apelo mais fácil para ser aprovado. O que deveria ser mais privilegiado é o potencial inovador, a surpresa, a diversidade real, o brilhantismo e ousadia de uma proposta. Após a aprovação, uma equipe técnica seria escalada pelo sistema de incentivo para aperfeiçoar e adequar questões de execução do projeto. Os criadores são mais importantes que os virtuoses de planilhas ou aqueles que preenchem editais com conveniência oportunista. Afinal de contas, é arte ou não é?



CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista, pesquisador, crítico musical e compositor.

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