Invisível foi filmado em La Boca, um bairro ao Sul de Buenos Aires historicamente relacionado à classe trabalhadora. Foi lá que nasceu o próprio Giorgelli. Mas o cineasta garante que não há nada de autobiográfico no filme. E não há mesmo nenhum afeto nostálgico no modo como ele filma o lugar. Ely percorre desencantada as ruas da cidade. A Buenos Aires do filme é um reflexo de uma crise contemporânea na Argentina, de um sistema político e social sufocante, que não atende às necessidades de seus cidadãos.
Mora Arenillas vive Ely, a protagonista do filme. Foto: Divulgação
Este é o segundo longa-metragem que Giorgelli dirige. O seu anterior, As acácias, sobre um caminhoneiro que dá carona a uma mãe solteira e sua filha de oito meses, circulou comercialmente no Brasil em 2013, também distribuído pela Vitrine Filmes, dois anos depois da sua estreia mundial, em 2011. Agora, com Invisível, o país é o primeiro a receber o filme em circuito. No Recife, está em cartaz desde quinta (16/11) depois de uma única exibição no X Janela Internacional de Cinema do Recife no último sábado (10/11).
Giorgelli, que tem circulado o país para apresentar o filme, veio ao festival para um debate após a sessão e recebeu a revista Continente para uma breve entrevista.
CONTINENTE O que motivou o filme tematicamente? PABLO GIORGELLI Foi um processo, uma combinação de coisas. Não foi um tema específico que originou o filme. Sei que aqui no Brasil se fala muito dele como “o filme do aborto”, e não é essa a sua origem, que tem mais a ver com a adolescência; com a solidão e o desamparo que uma pessoa às vezes sente na adolescência. Um olhar para a adolescência, essa foi a origem. E, por outro lado, uma sensação de angústia minha como adulto, mas também uma que lembrei de adolescente. Não só a angústia de hoje, mas daquele momento também. O que me interessava, enfim, era fazer um filme sobre a adolescência, a sua angústia, a solidão, a busca da identidade, a incomunicação com o mundo adulto e também sobre a falta de registro desse mundo. Muitas vezes, os adultos não veem os seus próprios adolescentes.
O filme também tem a ver com a maternidade, com as distintas maternidades. As acácias, meu filme anterior, tinha mais a ver com a paternidade. Agora é a mãe a figura que aparece como gatilho. Então, temos a personagem da mãe, a relação entre Ely e sua mãe, e o clima dessa casa, que está estancada, que não se move. Ely está um pouco presa, sem poder sair dessa dinâmica e se afastar dessa mãe angustiada e deprimida. Uma situação em que ela se encontra por sua própria história e também por um sistema político e social que não ajuda as pessoas como ela. Esse sistema gera gente deprimida, que se fecha e não quer sair. Aí, aparece algo que também me interessava: a dimensão política, social e econômica. O mundo em que Ely tem que desabrochar, o capitalismo, que gera cada vez mais desigualdades e dificuldades para algumas pessoas — no trabalho, no acesso à saúde, tudo. Interessa-me como nosso sistema político, social e econômico, que no Brasil e na Argentina são muito parecidos hoje em dia, têm consequências diretas sobre a vida de pessoas. Sobretudo de pessoas como Ely e sua mãe, da classe trabalhadora, que às vezes têm menos possibilidades de se defender dessas consequências que o sistema gera.
Quando aparece a questão da maternidade, é que aparece a questão da gravidez. E quando aparece a questão da gravidez adolescente de Ely, aparece a pergunta: “E agora, o que faço?”. E aí, sim, aparece a possibilidade do aborto. Então, a gravidez e o aborto surgem depois, não no começo do processo nem na origem do filme. Não foi um filme que surgiu de um tema, foi um processo. E para mim, fazer um filme é atravessar esse processo.
CONTINENTE Você faz um filme de personagem, como se poderia dizer. Mas é um personagem que é adolescente hoje e, além disso, é uma personagem feminina. Como, então, você aborda esse outro? PABLO GIORGELLI Eu tive que pesquisar algumas questões concretas sobre gravidez, aborto e saúde. E também tive que fazer uma pesquisa rigorosa sobre a adolescência de hoje em dia. Fui adolescente há muito tempo, eu tenho 50 anos. Então, também tive que voltar a me conectar com a minha própria adolescência para comparar com a de hoje. Descobri que são bastante parecidas, o celular é a única diferença. O espírito, o essencial do que um adolescente atravessa, não é tão diferente naquele momento e agora. Sim, mudam as tecnologias, as coisas menores. O essencial, porém, não muda muito. Então, fiz uma pesquisa muito grande e escrevi o roteiro com uma mulher, María Laura Gargarella, quem também me ajudou a começar a entender melhor certas questões de um ponto de vista feminino. Mas eu sabia claramente que o filme teria que ser contado do ponto de vista da personagem, seria Ely quem contaria a sua história, e não eu. Por todo esse processo, tive que me colocar no lugar de Ely. Eu sou Ely. Por momentos, eu sou ela. Ponho-me em seu lugar. É o que faz um ator e foi o que tentei fazer: por-me em seu lugar para fazer o filme pelos seus olhos, e não pelos meus, os de um adulto, homem de 50 anos. Isso foi difícil, mas a maneira que encontrei de fazer isso foi trabalhando com colaboradores, pesquisando muito, trabalhando com uma atriz que, sim, é uma adolescente, mulher. E ela me ajudou muito a entender algumas questões.
CONTINENTE O final do filme é um pouco ambíguo. O que o levou a optar por uma conclusão mais aberta? PABLO GIORGELLI Eu, pessoalmente, penso que não é ambíguo. Eu entendo que alguém possa ficar com alguma dúvida. Mas o filme conta um momento dos dias. Não há um final, a coisa continua. E, para mim, o importante era encontrar que decisão poderia tomar Ely de sua perspectiva, tomando em consideração a sua realidade, e não um desenlace em que eu apareço como autor, como diretor. Justamente o que eu queria era desaparecer como diretor. Eu não existo. Eu sou Ely. Então, esse final tinha que ser orgânico, para com Ely, para com seu mundo, sua realidade. Um final que ela poderia decidir. E aí, bem, várias coisas me levaram a pensar num final como esse. Ele tinha que estar relacionado à sua mãe, sua casa, a esse pântano a que está presa e de que não pode escapar; à sua realidade, sua expectativa de futuro. As decisões têm que estar ligadas à realidade de cada um. Não sei se foi correta ou não, mas me parecia que era uma decisão que devesse ser quase uma reação instintiva de sair desse pântano que é a sua casa, de enfrentar essa pulsão de morte ou de abandono de sua mãe, de sacudir. E, de nenhum modo, há uma visão moral. O filme não tem nenhum indício para considerar que a decisão de Ely tenha a ver com uma questão moral. Não há ideia de bem ou mal. Há uma questão prática de se converter em outra pessoa, sair desse lugar, encontrar proteção, tornar-se visível para ela mesma e para a sociedade.
CESAR CASTANHA é jornalista, crítico de cinema e autor do blog Milos Morpha.