‘Tom na fazenda: desejo de amor, pulsão de morte
Sucesso nacional e internacional, peça chega ao Recife pelas mãos do ator e produtor Armando Babaioff, com direção de Rodrigo Portella, para falar de luto, homofobia, patriarcado e família
TEXTO Márcio Bastos
13 de Abril de 2023
Armando Babaioff é ator (protagonista) e produtor da peça
Foto Victor Pollak/Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Quando o publicitário Tom (Armando Babaioff) chega à propriedade pertencente à família de seu companheiro, falecido em um acidente de trânsito, seu ar cosmopolita, com roupas, vocabulários e gestos refinados, destoa daquele ambiente. Não demora para que ele comece a ser atravessado por aquele lugar e suas pessoas, com marcas que vão além de manchas de terra na sua roupa, mas também na sua psique. Como uma queda livre em um abismo, ele se depara com os vazios deixados pela morte, pela fantasia, e a mentira, em um processo que o convoca a repensar sua visão sobre a pessoa que ele amou e sobre si.
Tom na fazenda (2017, 120 minutos, 18 anos), peça que ganha duas sessões no Recife – nos dias 15 e 16 de abril (sábado e domingo), às 20h e 19h, respectivamente, no Teatro do Parque – pode ser lida de várias maneiras. É uma história sobre o luto, mas também sobre as estruturas machistas e homofóbicas da sociedade. Aborda o desejo universal por amor e aprovação, ao mesmo tempo em que explicita a pulsão de morte que habita os seres humanos. Não deixa de ser, também, um estudo sobre o desejo e a violência – e como ambos andam lado a lado, muitas vezes se retroalimentando.
Com direção de Rodrigo Portella, a montagem brasileira é uma adaptação do texto do canadense Michel Marc Bouchard, que estreou no país de origem do dramaturgo em 2011. Em 2013, a obra foi levada ao cinema pelo diretor Xavier Dolan, que assinou o roteiro junto a Bouchard. Foi através da versão cinematográfica que o ator e produtor pernambucano Armando Babaioff teve contato com a obra e decidiu traduzi-la para o português (leia abaixo a entrevista com Babaioff).
Em 2017, Tom na fazenda estreou nos palcos do Rio de Janeiro e, desde então, tem circulado pelo Brasil, além de cumprir temporadas no Canadá e na França, onde participou do famoso Festival de Avignon, em 2022, e, este ano, em Paris, onde foi aclamada pelo público e pela crítica, incluindo o jornal Le Monde. Durante sua trajetória, já venceu, entre outros, os prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte, da Associação de Produtores de Teatro e o Shell.
A longevidade da peça nos palcos brasileiros (já são mais de 250 apresentações e um público de cerca de 45 mil pessoas) é uma exceção em um cenário cada vez mais complicado para as artes cênicas e se torna ainda mais impressionante quando se leva em consideração a densidade do texto e da encenação. Ainda que contenha momentos delicados e até cômicos, a montagem mantém um clima constante de tensão, quase como um thriller. Existe um perigo iminente que cerca o protagonista, seja ele instigado por terceiros ou pelo próprio Tom.
Sua presença na fazenda da família é disruptiva e perturbadora, pois para sua sogra Agatha, interpretada por Soraya Ravenle, e seu cunhado Francis, vivido por Gustavo Rodrigues, ele nunca existiu. Para surpresa de Tom, seu falecido namorado manteve sua orientação sexual em segredo, ao menos oficialmente, pois os parentes sabiam a verdade, mas preferiam negá-la ou, em última instância, omiti-la. Nesse pacto da heteronormatividade, apagar as sexualidades dissidentes é também negar reconhecer sua existência e, portanto, facilitar sua eliminação.
A peça trabalha esse choque entre a verdade e as convenções sociais de forma perspicaz. Ao entrar no jogo de aparências estabelecido pela sogra e pelo cunhado, Tom não está apenas querendo ser aceito pela família do namorado. Existe um desejo, que é acompanhado de um atordoamento e uma indignação, de conhecer outros lados ocultos da pessoa que ele amou, agora para sempre ausente em presença física. Quantos segredos mais seu companheiro escondia? Por que ele evitava voltar para o seu lugar de origem?
A decisão de Tom de permanecer por algum tempo como hóspede na casa da família do companheiro, a princípio por insistência da sogra, que o acolhe como um “amigo” do seu filho, parece partir dessa vontade de elucidar essas lacunas, mas na medida em que a ação se desenrola, as motivações do personagem parecem cada vez mais difusas. Exposto a vários tipos de violência, sejam simbólicas, como seu apagamento enquanto parceiro do morto, físicas e psicológicas, Tom desenvolve uma relação abusiva com aquele núcleo familiar, especialmente com Francis, que funciona como uma espécie de seu oposto complementar.
Francis é um homem arisco, bruto e explosivo. Rude, trata o namorado do irmão com deboche, ameaças veladas e explícitas. Enquanto Tom se apresenta inicialmente com um aspecto impecável de limpeza, Francis está quase sempre sujo, por conta de suas exaustivas jornadas de trabalho nos cuidados com a fazenda. Entre esses dois homens, vai se criando uma espécie de disputa, mas também de cumplicidade. Uma cumplicidade doentia, é verdade, mas, ainda assim, um consegue acessar áreas que o outro tenta a todo custo manter ocultas. Para Francis, o visitante traz uma companhia e uma delicadeza que há muito lhe eram negadas. Para Tom, o convívio com o cunhado dispara vários gatilhos, inclusive o contato com sua própria brutalidade e crueza.
Gradativamente, Tom passa por um processo de desintegração psicológica. Os abusos emocionais e físicos, permeados também por momentos de uma falsa sensação de pertencimento, o levam a absorver o absurdo da situação e a se colocar em lugares sombrios. Quando ele solicita que sua amiga Sara (Camila Nhary) vá encontrá-lo na fazenda, forçando-a a assumir o lugar de uma namorada fictícia do seu ex-companheiro, apenas para saciar as fantasias e projeções de sua sogra, a plateia já está diante de um homem emocionalmente quebrado. Uma pulsão de morte parece mantê-lo preso àquela situação, mesmo ciente da perversidade da situação.
Cena com Tom (Armando Babaioff) e Francis (Gustavo Rodrigues). Foto: Victor Pollak/Divulgação
A dramaturgia de Michel Marc Bouchard é complexa, mas a força extraordinária da montagem brasileira se deve à combinação da direção ousada de Rodrigo Portella e às atuações vigorosas do elenco. Todos conseguem transitar com maestria pelas emoções complexas exigidas pela história, em uma montanha-russa emocional à qual ninguém passa impune; nem os personagens nem o público.
Quanto mais absurda e brutal a situação se torna, quanto mais aqueles personagens se ferem, a si e aos outros, mais opressora vai se tornando a cena. A lama que toma conta de todo o palco apaga qualquer resquício de assepsia e inocência que Tom carregava ao chegar àquele local. Não existem heróis e mocinhos nesse drama, o que torna tudo mais fascinante. Tom na fazenda explicita as contradições da condição humana, seu potencial (auto)destrutivo, mas ainda terno. Estão ali pessoas quebradas, enlutadas, cada uma com as marcas deixadas por uma sociedade machista e homofóbica. No fundo, estão todos em busca de afeto e redenção, mesmo que, nessa jornada, deixem um cenário de terra arrasada.
Confira, a seguir, a entrevista com Armando Babaioff, concedida por e-mail, de Paris.
CONTINENTE Primeiramente, gostaria que você falasse da sua relação com a peça. Como conheceu o texto e o que te fez querer adaptá-lo?
ARMANDO BABAIOFF Conheci o texto através de um amigo cinéfilo, era o ano de 2014 e estávamos falando de filmes, tínhamos acabado de sair de uma sessão de Boyhood, no Festival do Rio. Durante o papo, ele me indicou o filme homônimo do Xavier Dolan e me disse que era baseado numa peça de teatro. Então pedi que ele parasse de me contar a história e que iria achar o texto teatral na internet, que encontrei no mesmo dia. Li o texto e ali, no meu quarto, já comecei a imaginar quem faria o quê, quem ocuparia qual função, já comecei a produzir. O que me bateu de cara foi a temática e a maneira como o Michel Marc Bouchard se utiliza das palavras e das cenas para construir uma obra que fala de tantas coisas para além de uma discussão sobre homofobia; homofobia foi algo que aconteceu no passado e que determina o presente dos personagens. Tom na fazenda fala de relacionamentos humanos dentro de um núcleo familiar, onde nem tudo é o que parece ser.
CONTINENTE Além de atuar e produzir, você também assina a tradução da dramaturgia. Como foi seu contato com a produção de Michel Marc e como foi o processo de transpor o texto para o português?
ARMANDO BABAIOFF Quando eu descobri o texto, enviei para o meu amigo e diretor da peça, Rodrigo Portella, para que ele me desse uma opinião, enviei a versão em inglês, ele me respondeu que não lia em inglês e daí eu decidi traduzir para o português por conta própria, era o ano de 2014. Quando estava na metade da tradução, entrei em contato com o Michel Marc Bouchard e comecei o processo de comprar os direitos autorais. A minha tradução é impregnada da minha maneira de ver o mundo, traduzi os textos todos falando em voz alta, tem muito da minha mãe na Agatha, tem partes que eu escolhi cortar para não afastar o público da realidade que estávamos propostos a contar, ou seja, de que se trata de um lugar num interior qualquer do Brasil.
CONTINENTE Visualmente, a peça é muito instigante, além de ter um ritmo vigoroso. Gostaria que você falasse um pouco sobre o processo de construção do trabalho, como vocês foram encontrando a estética, mas principalmente o corpo desses personagens. Há algo de muito intimista, com momentos de ternura, mas ao mesmo tempo de muita violência. A impressão é de que você, enquanto ator, termina a sessão exaurido, física e emocionalmente.
ARMANDO BABAIOFF Viajando para o exterior com a peça, pude entender um pouco mais sobre a maneira como nós brasileiros/latino-americanos colocamos o texto no corpo, como ele reverbera no corpo e como vira cena, diferente daqui (ele estava em Paris, durante a entrevista), onde a prioridade é o texto e onde há uso de projeções, de microfone. De repente, chega uma trupe que faz teatro, apenas teatro e que propõe uma reflexão, sobre o não uso de cenário, performance, dança e teatro, no lugar do mais simples jogo de teatro. Responder essa pergunta depois de fazer tantas vezes é chegar ao lugar onde o que importa é o jogo, tudo o que acontece em cena é cena, ainda mais onde o cenário é orgânico e instável. Manter esse estado de atenção constante é mentalmente cansativo, é um estado. E fisicamente é o que se pode ver, é uma verdadeira maratona.
CONTINENTE Tom na fazenda estreou em 2017, pouco mais de seis meses após o golpe contra Dilma Rousseff e um ano antes da eleição de Jair Bolsonaro. Era um período muito conturbado politicamente, que só se aprofundou com a ascensão de Bolsonaro ao poder. Durante essas mudanças, vocês, enquanto elenco, sempre se posicionaram politicamente. Como você enxerga a sua relação com a peça na medida em que essas mudanças foram ocorrendo? Digo, com o desenrolar dos acontecimentos políticos, você sentia que isso transformava o trabalho de vocês em cena?
ARMANDO BABAIOFF Quando começamos a ensaiar, uma mulher ocupava o mais alto cargo da democracia deste país. Estreamos durante o governo Temer. Ao mesmo tempo em que tínhamos despontado como um trabalho a ser visto, as atividades no setor encolhiam ao longo dos anos até chegar a esse governo de extrema direita que não nos queria por perto. Vimos e vivemos isso acontecer de perto e nos afetou demais. Era impossível dissociar uma coisa da outra, dependíamos e dependemos de políticas públicas – que estão garantidas na constituição, mas que não foram respeitadas. Tom na fazenda não parou, continuou por insistência. Fazer 275 apresentações dessa peça é o meu maior gesto político. Sinto também que a peça vem mudando ao longo das apresentações, mesmo depois de tanto tempo, continua conseguindo absorver diversas camadas de entendimento que vão se somando aos significados anteriores e que modificam a cena, a peça está em movimento. Ainda mais quando temos o patriarcado como a base estrutural de todo questionamento da peça, e que leva a todos os outros, ou seja, estamos falando de nós hoje.
CONTINENTE A pergunta anterior tem como origem algumas questões que estão latentes na peça, a meu ver. O ambiente ao qual Tom chega é marcado por uma estrutura patriarcal, machista e homofóbica, que se sustenta em uma ideia de “normalidade”. A presença de Tom ali é um fator disruptivo. Apesar de não ser um texto daqui, reflete muito a realidade brasileira. Você já sentiu algum tipo de represália ou de preconceito em relação à peça por conta dessas temáticas que a atravessam?
ARMANDO BABAIOFF Represália não, mas vi de perto alguns casos de censura. Vi Renata Carvalho ser censurada no Festival de Inverno de Garanhuns. Na temporada do Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, no final de 2022, duas senhoras vaiaram a peça no final e um homem não se conteve quando viu uma nudez masculina parcial em cena e precisou gritar que não estava gostando do que estava vendo. Ainda em 2022, no Teatro Sesi Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, notei a plateia mais dispersa, mais falante e menos educada, diferente de quando fomos lá cinco anos antes. Sinto que o público desaprendeu a ser público.
CONTINENTE Como você sente a recepção do público internacional à montagem brasileira? Há alguma questão do texto ou da encenação que se sobressaia mais para as plateias de fora?
ARMANDO BABAIOFF O que chama a atenção no exterior é a nossa encenação, a maneira como a história é contada. A peça, de alguma maneira, é conhecida do público de língua francesa, já foi encenada várias vezes e virou filme nas mãos do diretor Xavier Dolan. Tanto em Avignon quanto agora em Paris, tinham outras versões de Tom à la ferme em cartaz ao mesmo tempo, tanto que não pensei duas vezes em manter o título da peça em português, para deixar clara a origem: trata-se de uma encenação brasileira. Sinto que alguma coisa aconteceu, assim como no Brasil, um lugar para além do gosto ou não gosto da obra, mas, sim, um lugar de discussão sobre a maneira como fazemos, como escolhemos fazer essa peça. É um lugar mais visceral, mais animalesco, mais vibrante, com uma invasão de espaços pessoais que mexem com o público que não está acostumado com um teatro “mais perigoso”, mais realista, menos encenado, apesar de ser teatro. Acho que a encenação do Rodrigo Portella chega a um lugar onde o truque está à mostra, se vê o teatro aberto, sem subterfúgios, isso, de cara, já leva o público a experimentar uma maneira diferente de ver a peça.
Foto: Victor Pollak/Divulgação
CONTINENTE Tom na fazenda é um dos casos cada vez mais raros de peças que conseguem circular por muitos anos após a sua estreia. Atualmente, qual o maior desafio de produzir e trabalhar com teatro neste país?
ARMANDO BABAIOFF Falta investimento e boa vontade para transformar o setor cultural e praticar um pensamento de economia criativa. A peça sobrevive dela mesma, das temporadas e do público. É bastante complexo, mas foi possível através de muito estudo de orçamento e objetivos pensados de maneira estratégica e coletiva, embora a trajetória de Tom na fazenda seja um ponto fora da curva, é possível, mas o sistema precisa mudar urgentemente. O maior desafio foi mudar um raciocínio e colocar o teatro como prioridade nas nossas vidas e entender a potência da peça, aonde ela consegue chegar e sempre focados em internacionalizar o projeto. Foram cinco anos de pensamento até chegar ao momento de levar a peça para Avignon, o que está acontecendo conosco em Paris é fruto de investimento em Avignon. O que vai acontecer depois de Paris, ainda não sabemos, mas terá ecos certamente. Uma turnê pela Europa? Uma coprodução? Tudo pode acontecer. Mas um fato é: produzir é o segredo e é difícil, pois não há manual, cada produção é uma produção, o maior desafio sempre será ser um produtor de teatro no Brasil. O que fizemos com Tom na fazenda foi investir em algo mais distante da nossa realidade, fomos visionários e internacionalizamos uma produção de teatro independente, colocamos o teatro brasileiro em uma prateleira de destaque aqui em Paris, a maneira como se pensa cultura aqui é diferente do Brasil, a peça no Brasil talvez perdesse o fôlego e parasse, o que fizemos foi projetá-la pro mundo.
CONTINENTE Como tem sido para vocês poder voltar à estrada? Você tem sentido uma maior avidez do público para voltar ao teatro?
ARMANDO BABAIOFF Resolvemos voltar à estrada assim que começou a retomada das atividades, mas sempre com segurança. Reabrimos as portas do Cine Teatro São Luiz, em Fortaleza, e do Teatro São João, em Sobral (CE). Ambos os teatros lotados. Sinto que o público deu uma esvaziada nas salas de teatro, houve uma evasão, um desaprender talvez do sair de casa e assistir a algo que acontece ao vivo num determinado horário. Assim, como descrevi logo acima, que o público desaprendeu a se portar como público. Sinto as pessoas mais ansiosas por coisas que as arrebatam também, nos extremos, do humor ao drama.
CONTINENTE: Você é pernambucano e, aqui, apresentou a peça em Garanhuns, mas no Recife é a primeira vez. Há quanto tempo você não trazia um trabalho para a capital? E qual a importância, para você, de trazer este trabalho para a cidade?
ARMANDO BABAIOFF: Essa é a primeira vez que me apresento no Recife e me sinto muito feliz em saber que é com o Tom na fazenda. Serão duas apresentações importantes e marcantes, espero que a experiência para o público seja tão intensa quanto será para nós e nada pode ser mais importante do que a troca.
MÁRCIO BASTOS, jornalista cultural.