O espetáculo, que desloca o messias para um corpo trans, acabou servindo de alvo para os conservadores brasileiros e chegou a ser censurado em Jundiaí e Salvador, em 2017. Recentemente, em junho deste ano, Jesus foi perseguida mais uma vez. Agora, pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que tentou proibir a encenação na cidade pela mostra Corpos Visíveis. “Quando a gente corporifica Jesus num corpo travesti, despertamos ódio. Todo mundo é imagem e semelhança de Jesus, menos nós, pessoas trans”, diz Renata em um trecho da entrevista abaixo, exclusiva à Continente Online. O espetáculo acabou sendo realizado no Rio e, tamanha a demanda, ganhou uma sessão extra.
Não é a primeira vez que Renata Carvalho se depara com a rejeição e precisa brigar para poder dar existência à sua arte e à sua própria vida. Aos 37 anos, 22 de carreira, a atriz tem enfrentado diversas portas fechadas para seu corpo feminino. A transfobia – que faz do Brasil o país que mais mata travestis e transexuais no mundo – a expulsou de casa e dos palcos, e a obrigou, como muitas outras travestis, a se prostituir. “Não sei se estaria viva se não tivesse saído da prostituição”, afirma em outro trecho.
Desde que ganhou projeção com a peça, Renata tem se dedicado à militância junto a outras artistas trans. É criadora do Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans) e ferrenha opositora ao transfake. “Quando atores cisgêneros fazem papéis trans, eles reforçam que nossa identidade não é valida, é falsa”, defende.
Conversamos no Recife, onde ela apresentou seu monólogo a convite do Trema! Festival de Teatro. A sessão no Apolo teve superlotação (leia nossa cobertura). Em uma entrevista sem pressa, repleta de divagações à beira da piscina do Recife Plaza Hotel, a atriz falou sobre exclusão do corpo trans, representatividade, censura e religião. “As pessoas que querem me matar estão em nome de Deus”, afirma.
CONTINENTE Existem diversas exclusões partilhadas pela população trans, mas quando você pauta a representatividade nas artes cênicas e cria o movimento Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans), você traz à tona algumas exclusões específicas do campo. Eu queria que você falasse um pouco desse lugar. RENATA CARVALHO A arte é um espaço de poder e, portanto, é um lugar de exclusão. Primeiro, os homens brancos cis excluíram as mulheres brancas cis. Depois, os homens e as mulheres brancas cis excluíram – e ainda excluem – os corpos negros. O corpo trans ainda está começando a falar de inclusão. Mesmo com a questão das cotas e da criminalização do racismo, os negros não estão nos espaços de artes como deveriam. Estão servindo cafezinho nos sets, na faxina. Nós, travestis, ainda não entramos no set nem pra servir o café. A gente está falando de uma exclusão histórica no teatro. A nossa identidade não é validada profissionalmente porque não é sequer considerada humana. As pessoas não nos querem perto. Eu era a única da família que nunca tinha repetido de ano. Quando eu assumo minha corporeidade travesti, acabou. É por isso que nós não estamos no convívio do dia a dia. Não tem uma recepcionista, não tem uma garçonete travesti. E na arte, é a mesma coisa. Os coletivos não têm atrizes travestis. Mas os artistas cis querem interpretar personagens trans. Fazem sucesso e, se bem-feito, ganham prêmios. Personagens trans alavancam a carreira das pessoas cis.
CONTINENTE Uma das tuas principais pautas é, mais do que a visibilidade, a representatividade trans. Você tem se posicionado veementemente contra o que se chama de transfake (pessoas cis que interpretam personagens trans). Explica como você vê a importância desse debate. RENATA CARVALHO A representatividade é o ato de estarmos presentes – com corpos presentes. Visibilidade é tornar algo visível. Só visibilidade não nos tira da marginalidade, porque tornar visível não obrigatoriamente inclui. A representatividade é o ato de incluir e, por isso, é tão importante. A transfobia só vai acabar quando a gente naturalizar e humanizar os nossos corpos, identidades e vivências. Porque você vai desmistificar aquele corpo. Nós, travestis, nunca somos pensadas para personagens cisgêneros. Isso é um fato. Quando um ator ou uma atriz cisgêneros interpretam um ou uma personagem trans, tira-se a possibilidade de aquele papel ser interpretado por um artista trans. Quando atores cisgêneros fazem papéis trans, eles reforçam que nossa identidade não é válida, é falsa. É homem de saia. Nossa identidade continua deslegitimada e, ainda mais, porque muitas dessas representações são feitas de forma satírica, caricata e estereotipada. A gente quer que parem de fazer isso pra que a gente possa ser incluída nesses lugares. Quando um grupo é representado, a autoestima desse grupo aumenta, a identidade desse grupo é validada e legitimada. Imagina se em cada novela tivesse duas pessoas trans, as travestis aparecessem nos programas de todas as emissoras, nos filmes. Esse corpo estaria sendo natural, fazendo parte do dia a dia. Quanto mais a gente esconder esse corpo, quanto mais a gente excluir, mais marginaliza.
CONTINENTE Ainda tem o ponto da remuneração... RENATA CARVALHO Redistribuição de renda. Vocês estão lucrando com nossas vidas. Tudo bem, mas vamos dividir? Eu sou radical. Acho que papéis de pessoas trans não devem ser feitos por artistas cisgêneros.
CONTINENTE Nunca ou nesse momento? RENATA CARVALHO Nesse momento. Um dia esse manifesto não vai nem precisar mais ser usado. Talvez quando isso acontecer, eu vá poder começar a falar da minha carreira, sabe?
CONTINENTE Durante um tempo, você se reconheceu – e era lido - como um homem cis homossexual. Quais são as diferenças de ser um ator cis e uma atriz trans? RENATA CARVALHO Quando meu feminino foi começando a aflorar, eu comecei a perder papéis. Comecei a ter dificuldade em fazer projeto em escola – quem vai aprovar uma peça infantil de uma travesti? Aí eu comecei a trabalhar como maquiadora, fui trabalhar em produção, virei diretora de teatro. Eu transicionei trabalhando como diretora. Só voltei a atuar, que é o lugar em que eu mais me identifico, depois de muito tempo.
CONTINENTE Ao te ouvir falar na mesa do Trema!, fiquei muito interessado no que você chama de nova gramática: outros significantes, como transpofagia, transcestralidade e traviarcado. Me explica cada um desses significados? RENATA CARVALHO Transpofagia vem do conceito da antropofagia. É quando pesquisamos, lemos e conhecemos a nossa transcestralidade (ancestralidade trans); quando nos alimentamos de nós mesmas, da nossa história, nos afetando, nos amando, nos entendendo. Tem o traviarcado, em contrapartida ao patriarcado, onde são aceitos todos os corpos transvestigêneres, outra que estamos utilizando bastante. Tem outra palavra que acho linda que é “percebimento”, em vez de transição. E transvestigêneres vem da Idianare Siqueira e da Érica Hilton. Tem o transfeminismo, que dialoga muito com o feminismo negro. A nossa língua é fascista, já dizia Roland Barthes. A gente quer pautar essa gramática que não nos contempla. A gente precisa recriar o conceito de humanidade. A gente quer questionar não só a gramática, quer questionar a medicina; a gente quer uma psicologia pautada por pessoas trans. A gente quer falar do judiciário, do banheiro, dos direitos, enfim, de todos esses lugares. A gente precisa entrar nesses lugares.
CONTINENTE Você acabou por tomar uma centralidade dentro da causa trans por uma série de questões: pelo seu talento, pela sua militância e também pelos casos de censura envolvendo O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, que você tem enfrentado com muita força. Como você se sente diante de uma exposição que te coloca como alvo de violências, ameaças, perseguições e, ao mesmo tempo, assumindo um papel incansável na militância por representatividade? RENATA CARVALHO É difícil, viu? Eu não me coloco como uma pessoa que fala por todas as pessoas trans. Eu uso o meu trabalho como um instrumento para alcançar a grande massa. Quando você é militante, você sente a responsabilidade de ser a primeira a chegar em um lugar, abrindo espaço para que outras pessoas não precisem passar por isso. Mas, às vezes, eu só quero comprar pão. A questão da transfobia é muito forte no nosso país. E é um país que se diz laico, mas é extremamente religioso. As pessoas que querem me matar estão em nome de Deus... Elas fazem tudo em nome de Jesus, em nome de Deus. A igreja chegou aonde o Estado não foi e aonde a militância não chega. E muitas propagam discursos que reforçam a matança das travestis. Os ataques, chega uma hora que a gente não vê mais. Eu não vejo comentários (nas redes sociais e sites de notícias) porque são péssimos. Eu tenho esse cuidado de me proteger. Eu estou fazendo terapia e procurando um equilíbrio. Antes, eu jogava energia pra todo lado. Eu gastava energia discutindo com uma pessoa no Facebook, mesmo se o perfil fosse falso. Mas agora eu me pergunto: qual a briga que vale a pena entrar?
CONTINENTE O que você acha de ter sua obra analisada sempre pelo viés da militância? Como se fosse um privilégio da arte não militante (e cis, branca, hétero) ser entendida pelo seu viés estético-formal e criativo. RENATA CARVALHO É um teatro intencionalmente político. Mas é muito louco que, por exemplo, eu que tenho 22 anos de carreira tenha que antes de falar da peça, falar de gênero, de identidade, de representatividade e que a gente está morrendo e só no final um “convido todos vocês...”. Tem um pouco de não ter credibilidade artística. É um monologo, com uma travesti, mas não vão críticos especializados em prêmios. A arte trans ainda não está nesse lugar de ser consumida por essas pessoas que validam o teatro. A maioria fala mais da polêmica em si. Teve até uma matéria que saiu assim: “Festival Trema! vai receber dois espetáculos polêmicos”. A minha identidade de gênero é a questão que vem sempre primeiro. É muito marcado.
CONTINENTE Essa peça atravessa questões importantes sobre religião e poder. E, não por acaso, se inscreve na narrativa persecutória que ela mesma denuncia – e que extrapola o campo das artes. Como você enxerga o avanço conservador e fundamentalista pelo qual passamos e sua interferência na arte? RENATA CARVALHO A gente tem que voltar uns 500 anos ou mais pra poder falar desse assunto. Qualquer pessoa física que tivesse o curriculum da Igreja seria chamada de assassina, psicopata, serial killer. Um padre me falou uma coisa muito forte: a Igreja está a serviço do neoliberalismo. Se está a serviço do neoliberalismo, está a serviço do capital e, consequentemente, do patriarcado. O patriarcado precisa da Igreja para segurar o corpo feminino. A mulher não pode gozar. O patriarcado se diverte nesse submundo, mas não quer que esse submundo apareça. Então, para isso, tem a Igreja que cumpre o papel de tolher a liberdade. A Igreja esteve a favor da escravidão e comandou a Inquisição. Para se manter como religião única, ela matou, ela queimou. A religião evangélica está crescendo no Brasil e ocupando o congresso. O grande problema é que as pessoas que frequentam a igreja não leem a Bíblia. Só reproduzem a ignorância dos pastores. A gente ainda tem que explicar que Jesus era negro.
CONTINENTE No Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, Cristo é uma travesti. Quais são as relações entre o que Jesus defendeu, representou e sofreu e os corpos transvestigêneres? RENATA CARVALHO As pessoas usam o mesmo discurso que matou Jesus para nos atacar. O próprio capítulo que eles usam muito, que é o Levítico, se você ler o resto, vai perceber algumas coisas. No Levítico, também se proíbe comer carne de porco e se prescreve matar o seu filho se ele te responder. Segundo Levítico, você pode vender o seu filho, mas não pode usar dois tecidos diferentes, não pode cortar a barba, não pode fazer um monte de coisa. Mas eles só leem uma frase, né amor? (Se refere ao versículo “Não te deitarás com outro homem; abominação é”). Quando a gente corporifica Jesus num corpo travesti, despertamos ódio. Todo mundo é imagem e semelhança de Jesus, menos nós, pessoas trans. Nós somos sexualizadas, somos sem vergonha, não somos filhas de Deus, somos endemoniadas. Essas pessoas não sabem que Jesus andava com as pessoas que eram excluídas, os párias. Quem seriam os párias de hoje? Seriam os LGBTs, gordas, pretas, periféricas. As pessoas chamam a gente de violentas. Jesus também era (e eu nunca cheguei virando mesa em nenhum lugar). Ele fala: “Não trago a paz. Eu trago uma espada”. Eu também. Entendeu? E uma prótese. Ele lutava pela não comercialização da fé. Se a igreja é de todo mundo, porque existem portas? Todo mundo pode entrar na igreja? Mesmo? Quanto mais eu conheço a religião, mais ateia eu fico. Eu acredito nessa energia, sabe? Mas cada vez que conheço essa religião, mais eu abomino ela.
CONTINENTE Você acabou se envolvendo numa série de polêmicas que somam o fechamento do Queermuseu, a perseguição da performance La bête, de Wagner Schwartz, e a prisão de Maikon K, em DNA de DAN. Por que as pessoas querem perseguir a arte? Por que as pessoas querem perseguir o artista? RENATA CARVALHO Elas querem perseguir o pensamento. A gente não pode pensar. Mas aí tem uma outra questão muito forte. Existe um grupo político criado pelo Facebook, em 2013, que ficou muito conhecido por fakenews e um presidenciável de ultradireita. Quando veio o golpe, o que acontece? Eles não podem mais falar sobre política e corrupção. Precisam colocar uma cortina de fumaça. É aí que cresce o conservadorismo.
CONTINENTE O que essa peça te ensinou? O que estudar e encenar Jesus te trouxe? RENATA CARVALHO Jesus me transformou e me fez repensar várias questões. Eu acho que aprendi o poder da escuta e a aceitação do outro. Com Jesus, eu pude amar, porque essa peça me tirou da marginalidade, me profissionalizou. Jesus é a possibilidade de parar de olhar pro meu umbigo, levantar a cabeça, olhar para o mundo, para o meu coletivo. É aí que eu me aprofundo na postura dos corpos trans e acabo chegando no Monart e no Representatividade Trans.
CONTINENTE Você acha que aprendeu com Jesus o lugar da evangelização (no sentido de levar uma palavra de sabedoria)? RENATA CARVALHO É engraçado você falar disso porque muitas pessoas que assistem vêm falar comigo depois. Saem afetadas. E não somente os LGBTs. A peça fala do humano, fala da mulher, do feminino. Jesus me fez olhar com compaixão.
CONTINENTE Como surge o Monart e o Representatividade Trans? RENATA CARVALHO Eu sempre fazia teste, quando apareciam papéis trans. Aí nunca rolava. Porque eu era magra, tinha peito. Ou era a voz, ou era a idade, a altura. Sempre tinha uma desculpa. Fazer personagem cis? Jamais. E eu sempre denunciava isso, quando, por exemplo, Cauã Reymond fez uma transfake em um clipe. Quando comecei a pesquisar, li o livro de entrevistas da Claudia Wonder e achei uma entrevista com a Telma Lipp, uma trans belíssima. A Telma foi chamada pelo Hector Babenco para fazer Carandiru. Depois que ela passa dois meses no set, Babenco fala que, por questões de marketing, ele precisaria colocar o Rodrigo Santoro no lugar. O papel seria uma grande volta dela, mas ela perdeu. E aí quando ela perde, entra em depressão de novo, arranca os seios, corta o cabelo e morre como Deodoro. Isso me afetou tanto, porque eu me vi. Eu pensei que se alguma coisa acontecesse, eu iria morrer como homem. Isso me fez tão mal. Se você pegar meu livro da Claudia, ele tá todo grifado porque eu não queria nem podia esquecer aquilo. Foi disso que surgiu tudo. Por isso, são as fotos delas que representam o grupo. Saí chamando outras pessoas, criamos o grupo no Facebook. Quando eu lancei o manifesto, fui muito atacada, mas tem uma coisa: eu não volto um passo. Quando eu falo, as pessoas me chamam de radical. Essas pessoas que estão hoje berrando contra o Representatividade Trans são os mesmos que, em outros tempos, seriam contra a abolição da escravidão. Seriam as feministas brancas que não queriam o sufrágio universal para os negros não votarem.
CONTINENTE Muito tem-se colocado sobre pessoas trans assumindo lugares de fala, porque existem saberes específicos que a cisgeneridade ignora. O que as travestis têm a nos ensinar? RENATA CARVALHO Liberdade! Eu acho que a sinceridade em ser o que se é. Tem essa vontade de viver, sabe? Porque é uma coisa tão sufocante... Ou é isso, ou é a queda para o alto.
CHICO LUDERMIR é jornalista, escritor e artista visual. É integrante dos movimentos Coque Vive e Ocupe Estelita e mestrando em Sociologia PPGS-UFPE. É autor do livro A história incompleta de Brenda e de outras mulheres.