TRADUÇÃO MIA ARAGÃO
18 de Dezembro de 2019
Patricia Hill Collins é autora do livro 'Pensamento feminista negro', que acaba de ser traduzido no Brasil
Foto Flup/Divulgação
Patricia Hill Collins, uma das principais referências do feminismo negro mundial, entrou sambando no palco da Festa Literária das Periferias – Flup, realizada em outubro, no Rio de Janeiro. Precisa nas reflexões e contundente nas respostas, a primeira mulher negra a presidir a Associação Americana de Sociologia, e uma das precursoras no uso de conceitos como empoderamento e interseccionalidade, apresentou-se leve e bem-humorada e, não raras vezes, soltava uma gargalhada para um público de mais de mil pessoas que foi lhe assistir.
No Brasil, para lançar seu livro cânone Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento, pela editora Boitempo, a professora emérita da Universidade de Maryland passou pelo Rio e por São Paulo. Além da Flup, onde concedeu a entrevista que segue, participou também do evento Democracia em Colapso, em que esteve presente uma de suas referências, Angela Davis.
Seu livro, publicado originalmente em 1990 – marco nos estudos feministas negros por mapear os principais temas e conceitos tratados por intelectuais e ativistas negras norte-americanas –, é a primeira tradução da autora no Brasil, e chega em nossas terras ainda muito atual, mesmo com três décadas de demora. É bibliografia fundamental para os debates de raça, gênero e sexualidade e a prova da dificuldade de inserção de autoras negras no mercado editorial.
A entrevista a seguir foi aberta ao público (e sua publicação aqui, autorizada pelo evento e pelas mulheres envolvidas) e realizada no Museu de Arte do Rio, no dia 20 de outubro, dentro da programação da 8ª Flup, com entrada gratuita. Em um formato semelhante ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Collins foi entrevistada por outras três mulheres negras: a escritora Ana Maria Gonçalves, autora do consagrado Um defeito de cor, a jornalista Flávia Oliveira e a MC e slammer Roberta Estrela d’Alva.
Ao longo de mais de uma hora, a socióloga norte-americana dialogou sobre as relações entre as opressões de gênero, raça, classe e sexualidade e chegou a tecer notas sobre as conexões entre as lutas feministas nos Estados Unidos e no Brasil, a partir do diálogo com a obra de Sueli Carneiro – referência do feminismo negro brasileiro. “As mulheres negras experienciam no próprio corpo algo que chamamos de interseccionalidade do racismo, do sexismo e da exploração de classe”, afirmou em um trecho, sintetizando o cerne de sua obra. “Precisamos entender que a liberdade de alguém não pode se apoiar sobre a subjugação de outra pessoa”, apontou como única saída.
Dada a relevância da autora e a pertinência do formato da entrevista, que privilegiou um debate afro-centrado entre quatro pensadoras negras, convidamos o colaborador Chico Ludermir, que acompanhou todo o evento para organizar este material, registrando, em texto, esse momento histórico.
Capa do livro da autora traduzido pela Boitempo. Imagem: Divulgação
ANA MARIA GONÇALVES No prólogo do seu livro Pensamento feminista negro, você diz que escreveu um livro que queria que sua mãe tivesse lido. A gente pode falar de um feminismo intergeracional? E, se sim, como isso é tratado na sua obra? Como é que a gente fala, ao mesmo tempo, com as gerações anteriores e com essas gerações que estão chegando agora?
PATRICIA HILL COLLINS Sempre começo dizendo às pessoas que não fui destinada a estar aqui, a ser aquela que deveria ir para a escola, que poderia se formar, que estaria apta a aprender a ler e escrever, a viajar longas distâncias para estar hoje neste palco. Minha mãe era maravilhosa, ela era muito inteligente, mas não teve as oportunidades que eu tive. E, assim como grande parte das mulheres negras – que carregam todo o peso das suas famílias, das suas comunidades, todos os dias, e nunca têm seu talento reconhecido –, ela se conformou. Não se tornou alguém triste, ou revoltada. Seu talento não tem que ser medido pelo nível do seu trabalho intelectual, mas medimos o talento geralmente dessa forma, então tendemos a não valorizar o trabalho dessas mulheres. Eu pensei: como seria um livro que faria minha mãe mais preparada para viver sua vida de um jeito melhor? E eu senti que era minha obrigação, enquanto geração mais nova, naquele momento, fazer a minha educação – que não era só minha, mas era nossa – atravessar as gerações.
Quando comecei a trabalhar o pensamento feminista negro, havia ainda poucos trabalhos como o que estava tentando desenvolver. Havia muita produção sobre o que havia de errado na vida das mulheres negras, mas muito pouco sobre o que as mulheres negras faziam, de fato, e a partir do seu próprio ponto de vista. Quanto mais trabalhava no meu livro, mais percebia que havia uma história muito maior do que a da minha vizinhança, da minha comunidade negra, ou até da minha experiência individual. Toda essa história estava vinculada, conectada à história das mulheres afro-americanas nos Estados Unidos. Quanto mais trabalho e quanto mais tempo passo estudando esse campo, mais começo a perceber que há mulheres negras em todo o mundo que enfrentam desafios muito semelhantes e que necessitam de medidas muito semelhantes. Não que seja exatamente a mesma luta. A luta nos EUA, por exemplo, é particular ao país. O contexto é heterogêneo mesmo dentro dos EUA. A luta no Brasil, falando pelo que sei de Carolina Maria de Jesus, que foi o primeiro livro de autora negra brasileira que li, me deixou muito surpresa com as similaridades entre nossas lutas, mas também com as diferenças. Por isso, para mim, o trabalho do feminismo negro não está concluído, ele recém-começou. Vejo meu trabalho como uma contribuição para esse projeto maior.
FLÁVIA OLIVEIRA A senhora traz no livro uma reflexão sobre uma certa união das mulheres negras da classe trabalhadora, a partir de um ponto de partida comum – esse lugar de exclusão – e lança uma reflexão sobre o papel das negras que ascendem à classe média – como passam a se relacionar com as outras mulheres negras e em que medida as velhas estruturas de opressão podem passar a se repetir na relação entre elas. Tomando esse intervalo entre a primeira escrita do livro (1990) e a chegada ao Brasil (2019), o que a senhora observa agora na relação entre mulheres negras que ascenderam e mulheres negras que permanecem na base da pirâmide?
PATRICIA HILL COLLINS É muito importante nos lembrarmos que existem estruturas de poder que querem nos usar como provas de que a exclusão social, o racismo, o machismo, a homofobia, a exploração de classe e outras formas de opressão foram extintas. Vão usar nossas imagens, nossas palavras, nossos trabalhos. Tentam nos convencer de que somos indivíduos que atingiram o sucesso sem a ajuda de mais ninguém, ou que, se nós atingimos o sucesso, foi porque nossas famílias, unidades muito pequenas, eram muito especiais, ou fizeram as coisas do jeito certo. Existe uma enorme pressão naqueles que chegaram lá para que esqueçam os que ficaram para trás e sejam usados como “a cara do sucesso”. Essa é uma questão nova nos EUA porque, historicamente, nunca havíamos tido uma classe média negra muito grande e, historicamente, as pessoas da classe média negra nos EUA se viam como homens e mulheres “de cor”. Eles e elas sabiam que tinham que fazer algo por sua raça, pelo povo negro, porque seus destinos estavam conectados com todo o povo negro.
Nos últimos 30 anos, com as estruturas sociais de poder mudando dentro dos EUA em relação a raça e racismo, precisamos construir novos discursos a respeito disso. Para pontuar essas transformações específicas, vamos pensar que o que determina os lugares de poder ainda tem relação com raça e classe e gênero. Os negros e as negras continuam embaixo, mas agora elas podem facilmente entrar no foco da esfera pública, por causa dos debates que pessoas como nós lançamos. Se pensarmos em Michelle Obama: “Uau”; se pensarmos em Barack Obama: “Uau”, ou Beyoncé... Imagine quanto dinheiro ela tem, ela pode ir ao Super Bowl e comandar a apresentação. Então o argumento usado é: “Qual é o problema?”. “Por que vocês da classe média negra estão falando sobre racismo, sexismo?”. “Vocês estão criando o problema quando falam dele.” É um tempo realmente interessante este em que estamos. Penso que se você vir por outro lado, olhando para as pessoas, particularmente as jovens, que estão indo para escolas financiadas, mas não conseguem ter acesso a serviços de saúde quando precisam, que vivem em comunidades onde armas são tão presentes, que mais parecem uma zona de guerra, poderíamos pensar sobre uma síndrome pós-traumática sofrida por essa juventude que testemunha a morte de seus amigos e entes queridos. Existe uma perspectiva muito diferente sobre classe da que se ficarmos dizendo apenas “faça como eu e será bem-sucedido” ou “você também pode”, o discurso padrão do sistema. É claro que as pessoas poderiam fazer tudo isso, se elas tivessem oportunidades para tal. O talento definitivamente está lá. Estamos entrando numa fase das relações de poder, nos EUA e no mundo, em que se mascara o funcionamento do poder, se esconde seu mecanismo. Isso conta muito com o trabalho da mídia e da cultura, esse processo de manter o poder intacto.
O encontro com Patricia Hill Collins na Flup. Foto: Divulgação
ROBERTA ESTRELA D'ALVA Tem um conceito que é o empoderamento – do qual a senhora fala muito no livro e está em voga no Brasil. Uma palavra usada especialmente entre as mulheres mais jovens. A gente não tem como falar de empoderamento sem discutir capitalismo, e uma das coisas que você diz no seu livro é: “Repensar o feminismo negro como projeto de justiça social implica desenvolver uma noção complexa de empoderamento”. Gostaria que nos falasse sobre essa noção complexa.
PATRICIA HILL COLLINS As mulheres negras, enquanto grupo social, não estarão mais empoderadas se eu comprar uma bolsa nova. Se estou empoderada individualmente, se sinto esse senso de empoderamento em mim, é algo bom, mas isso não pode se apoiar em objetos, no consumo capitalista. Vou dar alguns passos para trás só por um segundo. Quero começar de outro lugar. Empoderamento, como coloco nesse livro, se trata de um caso histórico de desenvolvimento coletivo. Estava muito evidente que não haveria justiça social para nenhum individuo se não houver justiça social para o todo. Era difícil de prever uma política que se tornaria uma política de acumulação. Cada um fazendo seu próprio caminho, construindo sua própria coisa, empoderando apenas a si mesmo. Um empoderamento coletivo consiste em um tratamento baseado no coletivo. Isso é fundamental nesse livro.
O que chama atenção, nesses últimos 25, 30 anos, é o crescimento de uma nova filosofia do trabalho que se dedica a acabar com qualquer noção de atividade coletiva, nos dizendo que as comunidades às quais pertencemos são um problema para nós. Então, se sou uma pessoa negra e estou junto com outras, o melhor é que eu deixe toda essa gente para trás e avance sendo o mais individualista que eu possa. Mas é ainda mais insano que isso. Podemos simplesmente juntar tudo isso e pronto: “Mulheres negras já estão no poder”. Esse tipo de filosofia está transferindo o dinheiro e os recursos para fora das comunidades negras, para longe do povo negro. O que quero dizer é: será que precisamos mesmo de todos esses tênis de ginástica? O que significa tudo isso? Precisamos mesmo consumir tanto quanto estamos consumindo? Precisamos mesmo aspirar por esses bens, quando há tantas outras coisas no mundo que são de graça e estão abertas para nós? Uma delas é a arte e a cultura hip hop; a palavra falada e a poesia. Música. Por que viramos as costas para isso e priorizamos objetos? Nós então nos tornamos uma peça dentro do jogo de alguém.
ANA MARIA GONÇALVES Gostaria de pedir para a senhora retornar um pouquinho a algo dito brevemente em uma das respostas. Sou apaixonada pelo livro da Joy Degruy, Post traumatic slave. Essa herança nos países tocados pela escravidão afeta muito ainda, principalmente os povos diaspóricos, os negros das diásporas. Acho que é um conceito novo no Brasil; eu, pelo menos, não tenho ouvido falar muito dessa síndrome pós-traumática da escravidão. Você poderia falar um pouquinho mais sobre isso?
PATRICIA HILL COLLINS Agora é que estamos chegando a um entendimento dos efeitos intergeracionais da violência. Uma violência que é direcionada à população negra, às mulheres negras, com as formas específicas que ela assume. Estamos começando a reconhecer que nosso entendimento sobre violência não pode ser algo individualizado. A violência é um fato social, estruturado e institucionalizado. Existe uma conexão entre a violência doméstica, a violência estatal, o militarismo e os assassinatos cometidos pela polícia, como o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) nos ensinou.
Toda a constelação de crimes de ódio contra gays e lésbicas, todos os atos violentos que fomos estimulados a ver enquanto uma má conduta individual podem estar, na verdade, conectados. São sintomas significativos de que você tem estruturas de violência dentro da sociedade, dentro do seu cotidiano. Fico particularmente preocupada com esses efeitos. Cheguei a isso observando as crianças em zonas de guerra e o que elas testemunham e experienciam. São ótimos paralelos com a experiência dos jovens na América Central que estão sendo recrutados para a guerra de gangues para proteger as suas próprias vidas, pela sua segurança. Mas o que tende a acontecer em democracias como a dos Estados Unidos é que esse tipo de coisa não é vista como violência estrutural, mesmo que os efeitos dessa violência estrutural sejam bastante óbvios.
As pessoas já estão fazendo muitas coisas para ajudar, mas essa é uma problemática muito difícil. E para que essa seja uma problemática coletiva, salvaguarda, segurança e proteção precisam ser uma das primeiras coisas a serem providas para todas as crianças, especialmente as negras, e especialmente as meninas negras. Isso tem estado no topo da lista da nossa agenda do feminismo negro, apesar de, frequentemente, não ser reconhecido assim, porque o feminismo é, no geral, retratado midiaticamente como mulheres defendendo apenas seus próprios desejos e os de mais ninguém. Vejo o feminismo negro muito mais engajado nesse senso de poder comunitário, justiça social, enxergando o viver coletivo e a defesa da comunidade como algo central de sua prática política. Se você está por aí comprando em um shopping, pensando em si mesmo como apenas um indivíduo solto na Terra, como você pode estar engajada no empoderamento proposto pelo feminismo negro? Hoje enfrentamos esse tipo de problemática.
FLÁVIA OLIVEIRA Aproveitando essa menção sobre o feminismo negro e o poder comunitário, lembro que na sua entrevista recente à Agência Pública, no Brasil, a senhora mencionou que as mulheres negras vivem agora uma visibilidade inédita do ponto de vista midiático, das redes sociais, mas que a gente deveria lembrar que essa representação na mídia não substitui a representação política e é preciso, então, aumentar a representatividade, a proporcionalidade política. Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre essa dimensão da representação política, da presença das mulheres negras na política, pensando em uma estrutura político-partidária ainda dominada pela figura do homem branco. À direita e à esquerda, os homens brancos ainda estão no controle dos partidos. Em que medida é possível avançar em termos de direito, mesmo atuando politicamente nas frestas, posto que a gente vive um momento de conservadorismo crescente em toda a América, incluindo o Brasil?
PATRÍCIA HILL COLLINS O que vou fazer, em primeiro lugar, é colocar o que você disse de um jeito um pouco diferente. Não acho que as pessoas que estão na mídia e as que estão na política são opostas. Na verdade, precisamos de ambos os espaços neste momento. Mas o que precisamos mesmo é de pessoas que tenham estratégia e enxerguem a agenda mais ampla em que elas estão inseridas – incluiria também nisso líderes comunitários e uma longa lista de pessoas. A questão, para mim, é se especializar em diferentes formas de resistência. Se você enxerga trabalhar na mídia como uma forma de resistência contra essas relações de poder colocadas dentro desse meio, você deve se especializar nisso para atingir o nível em que você possa fazer tudo que for capaz nesse espaço. Isso é também para pessoas que fazem filmes e outras coisas.
Se você se especializa na política, esse é, de fato, um caminho difícil. Nele, há muitas vitórias, muitas perdas e muitos bloqueios – pensando de uma forma mais robusta sobre os sistemas políticos e sobre o que é possível dentro das leis e o que não é; pensando nas possibilidades dentro de cada esfera da política. Penso que as políticas locais são algo muito poderoso, tanto quanto a política nacional. Mas se só temos discussões sobre a política nacional, podemos ficar facilmente desencantados com esse momento. Podemos ficar deprimidos pensando que tudo é muito difícil. E realmente é. Mas focar nisso pode suprimir a visão dos outros espaços possíveis e das outras lutas onde as mulheres negras já estão inseridas. As mulheres negras estão em todo lugar: algumas vezes comandando gabinetes, outras não. Mulheres negras também estão trabalhando em campanhas para outras pessoas. Nos Estados Unidos, estão trabalhando fortemente na questão dos direitos eleitorais. Estamos enfrentando, nos EUA, um grande desafio para que negros e latinos não sejam privados do seu direito ao voto. Se você consegue ganhar o direito às suas ideias, então você consegue dar um recado ao sistema e mudar as regras. Temos um caso muito interessante na Flórida: pessoas saindo da prisão para votar, porque a privação de direitos é realmente o ponto central do encarceramento em massa, e os eleitores da Flórida votaram para os detentos terem seu voto retomado. Essas pessoas eram homens negros – mulheres negras também, mas particularmente homens negros.
Na minha perspectiva, as mulheres negras, na política, realmente têm uma batalha elevada, mas o que há de novo nisso? Isso não é novo. Nada disso. A questão é voltar para luta intergeracional original. A questão é essa. Temos que escolher nosso terreno com atenção. Meu trabalho é na academia, por desejo. Não fui parar lá simplesmente porque não tinha mais nenhum lugar para ir. Vejo todos os espaços onde ideias são criadas e produzidas como cruciais e quero ser a pessoa que define a agenda intelectual, não aquela que está obedecendo à agenda de outros. E a única forma de fazer isso é entrando nas instituições e conquistando posições, uma vez que você chegue lá. Nós não estamos necessariamente tentando chegar ao governo, à academia ou para dentro do mundo corporativo, por exemplo. As instituições independentes e a construção de alternativas paralelas são tão importantes quanto.
Foto: Flup/Divulgação
ROBERTA ESTRELA D'ALVA Estava me lembrando de um texto da Audre Lord onde ela conta que estava no supermercado e tinha uma mulher branca com uma menina. Chega uma mulher negra com uma menina no colo, então a menina branca, muito excitada, vendo essa criança no colo aponta para ela e diz: “Mamãe, olha uma empregada bebê!”. E ela fala assim: “Essa é uma pessoa que está doente”, e isso gera uma dor, um ódio. As violências que as pessoas vão sofrendo geram ódio, desejo de vingança. Eu me lembro, na África do Sul, quando o “Arquiteto do Apartheid” (Hendrik Verwoerd) sofre o atentado e toma o tiro. Quando vi, estava há 10 minutos na frente de um vídeo, em looping, olhando e falando: “Morre”. Ele toma um tiro e começa a cuspir sangue pelo olho, pelo nariz e eu estava hipnotizada pensando: “Você tá tendo o que você merece”. E aí a questão. Como a senhora tem conversado sobre isso? Esse trauma, esse ódio é uma coisa real. Como a gente vai superar, ou transformar?
PATRICIA HILL COLLINS Isso está no coração de como criamos nossos filhos. Acredito que todos nascem inocentes, sem ódio a nada... Um dos maiores desafios, penso eu, se você é mãe ou parente de uma criança negra, dentro das sociedades em que vivemos, é como vamos manter, dentro delas, um senso de orgulho e amor próprio enquanto as preparamos para inseri-las em uma sociedade que as odeia e frequentemente vai querer exterminá-las. Porque, veja, se você pesa muito no lado da preparação, você pode acabar atacando a capacidade de imaginação e criatividade delas cedo demais, e torná-las pessoas amedrontadas. Esse é o tipo de pessoa que diz que o racismo está em todo lugar e que se priva de tudo. Entendo essas pessoas, mas precisamos equipar nossas crianças para refutar esse ódio, sem deixá-las acabarem consumidas por ele e odiando a si próprias pelo peso do racismo. Acho que isso é muito difícil para os homens, particularmente. Todos esses rapazes lindos por aí, tão doces... Eles são meigos, amáveis, atenciosos. Garotos maravilhosos. Mas são pressionados a virar um homem diferente daquilo que são, a replicar o pior que existe na masculinidade branca. E nossas garotas são estimuladas a serem fortes até um ponto em que não estão autorizadas a serem vulneráveis nunca. Nós temos que arranjar uma forma de criar um espaço para a beleza e a vida das nossas crianças. E começar logo.
Vou lhe contar minha própria história aqui. Eu não sou a Audre Lord, mas vou contar a história da minha filha e do seu biscoito, está bem? Aconteceu numa época em que eu estava viajando com minha filha. Ela tinha mais ou menos dois anos, nós estávamos na classe econômica e tinha uma classe executiva e a primeira classe. Nesses tempos, você não via muitas pessoas negras voando na classe executiva. Foi há um tempo atrás, todo mundo lá era branco. Voltamos à nossa cabine e um garotinho veio até nós. Ele tinha mais ou menos dois anos também. Eu lembro que ele era loiro – não tenho certeza se era loiro... Ele ficou olhando a minha filha com seu biscoito e, de repente, pegou o biscoito da mão dela. Ele simplesmente tirou o biscoito dela. Ela ficou confusa. Ela não teria nenhum problema em dividir o biscoito com ele, mas nós duas estávamos chocadas. Eu senti a audácia de um estranho de chegar e tirar suas coisas. Tirar da sua própria mão. Bem, isso me fez pensar em como eu prepararia a minha filha para ser a criança solidária que ela é, que compartilha, e, ao mesmo tempo, ser brava o suficiente para reagir e dizer: “Tira a mão do meu biscoito!”. Então, esse é o dilema. Não queremos replicar na sociedade a feiura que tivemos que suportar sobre nós, mas também temos que arranjar um jeito de desafiar essa feiura a cada dia, individualmente e também através das instituições que nós construímos e das que participamos e ocupamos.
ANA MARIA GONÇALVES Sempre me lembro muito da Patricia Holland, no livro The erotic life of racism. No início do livro, ela fala um pouco sobre essa questão: que gostaria que as pessoas brancas tomassem mais responsabilidade pelos seus atos. E conta uma história em que ela estava com a filha de uma amiga, adolescente, e, depois de um determinado acontecido, uma senhora estava esperando que ela tivesse um determinado comportamento. Ela age de uma outra maneira, que decepciona essa senhora. Então essa senhora vira para ela e diz: “E pensar que eu marchei por vocês”. E ela conta que estava com a filha adolescente dessa amiga e falou: “Eu não posso não fazer nada. Essa garota que está comigo vai enfrentar muitas situações iguais a essa, então eu vou ter que dar uma resposta”. Então ela diz que vira para a senhora e diz: “Se a senhora não entendeu até hoje que marchou por você e não por nós, então eu não posso fazer nada”. E talvez o que falte seja assumir essa responsabilidade. Não por um passado histórico, mas pelo que o privilégio branco em uma sociedade racista ainda faz para que uma senhora branca ache que pode esperar algo de alguém só porque, no passado, ela lutou pelos direitos civis de alguém, que, na verdade, beneficiaram toda a sociedade. Talvez seja isso, falta essa empatia, essa delicadeza. O que é que a gente faz? Como a gente reage a essas pessoas que acreditam que podem esperar algo da gente só porque no passado elas lutaram por algo – por uma causa, seja racial, seja de gênero, de classe. Existe uma resposta, Patrícia?
PATRICIA HILL COLLINS O que posso fazer é falar sobre minha perspectiva neste ponto. E, sinceramente, é exaustivo ficar tentando lidar com o privilégio branco. E o que faço é dizer que não sou obrigada a lidar com ele e ensinar isso às outras pessoas, onde quer que eu vá. Alguém precisa fazer esse trabalho e respeito aqueles que fazem esse trabalho. Só não tenho o temperamento certo para isso. É o que tenho falado o tempo todo aqui: você tem que se especializar naquilo em que é bom e evitar aquilo em que não é. Se você pode fazer isso bem, então faça. Nunca fui boa nessa parte. Então, carregar sempre uma carta na manga para esse tipo de abordagem pode gerar agressividade para mim, por isso nem ouço quando dizem esse tipo de coisa. Só porque alguém lhe fala algo, não quer dizer que você é obrigada a responder. Estou respondendo todas vocês porque amo vocês todas. Não temos força suficiente para abarcar tudo.
Para mim, a questão central é você ter uma noção precisa do que você quer fazer e trabalhar. Porque, às vezes, você tenta acompanhar as pessoas – e eu mesma não me importo se ela se transformou a partir da marcha. Essa não é a questão para mim. Para mim, o ponto é que ela foi lá e marchou, seja lá qual foi a sua razão para isso. Buscar as mudanças institucionais que você deseja, dentro das instituições em que você está envolvido, para mim, é ser objetivo na sua luta. Trabalho na academia há décadas e ela, em alguns sentidos, já está muito diferente do que foi – e continua a mesma também, em outros sentidos. Mas mudou em relação às coisas que você já não pode fazer impune lá dentro – embora ainda seja possível que retrocedamos. O que fizemos foi, objetivamente, conquistar lugares dentro da academia. Temos mais estudantes negros e negras, mais faculdades negras, mais administradores negros. Mais é melhor, sempre. Dois é melhor que um. Quatro é melhor que dois. Dez é melhor que cinco.
A juventude é o ponto. Coloco-a em todas as discussões. A outra parte disso é a referência pessoal de cada um. Pessoalmente, tenho uma série de estratégias desenvolvidas ao longo de muitos anos para lidar com as coisas ridículas que pessoas brancas dizem sobre mim. É uma coisa que não posso protelar e me deixar ser desrespeitada pelos outros, a não ser que realmente tenha que deixar passar. Você não quer ser colocada em um lugar de subordinação e depois ter que reclamar do seu próprio comportamento. Análise pode ajudar muito com isso. Algumas vezes, preciso aguentar em silêncio e deixo passar. Perco uma batalha, mas tudo bem. Na próxima, vou vencer. Não tenho nem como contar a vocês quantas pessoas brancas já vieram me dizer: “Nossa, você é tão articulada”, e, com isso, estão querendo dizer que não sou como o resto dos negros. Toda vez que ouço isso só tenho vontade de responder: “Não me chame de articulada!”. Mas só respondo “interessante”. Então, vou usar essa percepção sobre ser uma negra articulada – o que de fato sou e não preciso que me contem isso – para escrever algo com toda a minha capacidade de articulação, e publicar.
FLÁVIA OLIVEIRA Acho que falamos bastante sobre “white people”, brancos e pretos. Queria lhe ouvir agora sobre a relação entre homens e mulheres negros. Há tensões também de natureza afetiva. A gente tem, no Brasil, um debate intenso sobre a solidão da mulher negra, sobre como as mulheres negras são preteridas em relação a mulheres brancas. E há uma tensão também na assimetria em relação aos afazeres domésticos e aos cuidados com pessoas, e ao acesso ao mercado de trabalho. Juntando tudo isso nessa salada, temos a solidão da mulher negra. Pergunto: como a gente vai conseguir se entender com o homem negro, tendo nossas agendas, nossas perspectivas de inserção? Como devem se dar essas relações?
PATRICIA HILL COLLINS Temos de reconhecer que os danos causados a nós, o prejuízo que sofremos não nos afeta da mesma maneira. E é aí que a noção de gênero faz toda a diferença. Um exemplo disso é a questão da violência da qual estava falando antes. Se nós tivermos uma agenda política contra a violência que só pense nos homens, obviamente nosso trabalho não vai ser suficiente. O que precisamos fazer é algo muito básico: precisamos entender que a liberdade de alguém não pode se apoiar sobre a subjugação de outra pessoa. Costumávamos pensar sobre isso sempre em termos de raça e, por isso, sempre tivemos uma agenda de luta centrada na questão da raça. Dizíamos: “As pessoas negras nunca serão livres enquanto houver o privilégio branco”. Mas quando paramos para olhar a relação entre o homem negro e a mulher negra, vemos que o desafio é que os homens negros entendam que eles nunca serão livres se as mulheres negras não forem livres também. Esse é um passo em direção aonde queremos chegar – pelo menos para onde quero chegar.
O próximo passo é fazer um diagnóstico de onde nós estamos agora e como chegamos até aqui. Como poderemos chegar a um lugar diferente? Vejo o feminismo negro como um movimento que, em sua prática política, não é anti-homens de forma alguma. É uma percepção muito avançada, pensando em como o feminismo tem sido definido nos meios de massa e como o feminismo negro é definido nessa mídia tradicional. Se você defender o empoderamento das mulheres negras, com certeza vai favorecer todo o povo negro. As mulheres negras experienciaram, no próprio corpo, algo que chamamos de interseccionalidade do racismo, do sexismo e da exploração de classe. As mulheres negras são empurradas a aprender, desde muito mais cedo, as conexões entre esses polos, a reconhecer essas intersecções dentro das suas próprias vidas e a lutar fortemente para superar essas questões. Se seus filhos não podem ter cuidados de saúde, você é a primeira atingida. Sua experiência em violência de gênero desde cedo lhe colocou como alguém na linha de frente para lidar com essas questões. Isso tem sido ameaçador para muitos homens negros que estão comprando uma ideia de masculinidade negra como uma ideia de dominância e veem tudo como questão de força. Acham sempre que têm de haver alguém no comando – e esse alguém são eles. Por isso, os homens negros realmente precisam, e muito, do feminismo negro. Um feminismo que desenvolva uma nova noção de masculinidade negra do mesmo modo que têm radical e determinantemente trabalhado para desenvolver uma noção nova de negritude. Não é uma questão de uma coisa anular a outra, é uma questão de os homens negros começarem a se perguntar: “Qual é o sentido da masculinidade branca?”, numa perspectiva de gênero, raça e classe. O que é essa masculinidade que os homens brancos engendraram dentro desse sistema que sempre serviu para privilegiá-los enquanto homens brancos? O que é que estamos fazendo com nós mesmos e as pessoas que amamos quando mantemos essa ideia de masculinidade?
Tenho um outro livro no qual escrevi exatamente sobre isso. Tenho até que revisá-lo, porque escrevi há tanto tempo atrás… Se chama Black sexual politics e basicamente fala sobre repensar masculinidade e feminilidade dentro de uma perspectiva negra, como um projeto coletivo. Mas não poderia ter escrito esse livro sem a colaboração de homens negros que têm sido muito corajosos no trabalho de desafiar outros homens negros a repensarem a si mesmos nos seus papéis de masculinidade. Essa não é necessariamente uma luta que as mulheres negras têm que tomar, mas algo que a ser assumido pelos próprios homens negros. Muitos deles são gays e são eles que têm chegado a ótimas análises sobre a masculinidade negra. Acho que isso é perto do nosso projeto. Vocês nunca me ouviram dizendo nada negativo sobre homens negros enquanto grupo social. Acho que tanto os homens negros enquanto grupo, quanto as mulheres negras enquanto grupo precisam trabalhar em uma autorreflexão sobre masculinidade e feminilidade e construir novas relações a partir disso.
ROBERTA ESTRELA D'ALVA Voltando ao livro Pensamento feminista negro. Sou dessas pessoas que olha atrás do livro para ver a bibliografia e é muito bom ver que tem CARNEIRO, Sueli na sua. Sueli Carneiro é uma autora brasileira, uma pensadora. Tem uma citação dela na abertura do capítulo 12 que se chama Politica do empoderamento. Qual sua relação com Sueli e sua obra? O que a senhora aprendeu com ela sobre feminismo negro brasileiro?PATRICIA HILL COLLINS Gostaria de conhecer mais. Posso falar um pouco mais sobre, mas ainda estou estudando. Vou ser honesta com você: não vim aqui como uma expert em questões do Brasil. Vocês é que são as experts sobre o Brasil. Vim até aqui com questões e algumas percepções, não como a estudiosa norte-americana imperialista. Desse tipo já existe muito, vocês não precisam de mais uma. O ponto é que temos que perceber as limitações do inglês, as limitações intelectuais. O desafio de buscar por aquilo que ficou de fora como proposta de estudo e lutar para que homens e mulheres negras tenham visibilidade é um longo processo. Esse foi o contexto aonde cheguei até Sueli e à luta daqui. Percebi que a luta das mulheres no Brasil era muito similar e meu primeiro pensamento foi que aquilo tudo soava muito como a situação das mulheres negras dos EUA. “Elas têm um movimento de mulheres negras também!”, pensei. “Quanto tempo tem esse movimento?”; “Meu Deus, é muito antigo. Uau!”. E “por que não sabíamos disso?”. É por causa do inglês. Estou muito feliz que esse livro tenha sido traduzido, mas quero que as coisas de vocês sejam traduzidas para que eu possa lê-las.
Dentro das diferenças, o que se destacou para mim foi, em primeiro lugar, os efeitos do movimento negro aqui. O movimento negro, pelo que senti, parece questionar a democracia racial – e isso é muito difícil porque, de certa forma, a questão racial é tão forte, que pode suprimir as outras questões que precisam ser colocadas, como gênero por exemplo. Vivemos algo semelhante nos EUA confrontando uma estrutura de racismo diferente da de vocês. A luta aqui, falando pelo que senti, era trazer a negritude enquanto uma condição política. Nos EUA, nossa questão estava fortemente atada à luta da escravidão. A segregação e o racismo eram muito explícitos. De alguma forma, ambos os movimentos, aqui e nos EUA, empoderaram todos, exceto pelas mulheres que disseram: “Não fomos empoderadas o suficiente”. Então, de dentro de ambos, surgiu um forte, independente e visível ativismo feminista negro, que sempre esteve lá, no contexto das comunidades negras dos EUA. Para mim, as questões de agora são muito similares. São lutas paralelas. Podemos falar sobre violência, relações entre homens e mulheres negros, empregos, educação de baixa qualidade, saúde, tudo isso é muito parecido entre nós, mas vem de diferentes histórias e estruturas políticas. Gosto de pensar sobre o movimento feminista negro do Brasil e acho muito estimulante. É um momento muito importante de visibilidade, de voz. Este é o momento em que os outros lugares estão se inspirando em vocês, porque vocês vão conduzir, a partir de agora, e estão conduzindo.
Flávia Oliveira, Patricia H. Collins, Ana Maria Gonçalves e Roberta Estrela d'Alva
Foto: Flup/Divulgação
ANA MARIA GONÇALVES O livro citado Why are all the black kids sitting together at the cafeteria? (da socióloga norte-americana Beverly Daniel Tatum) foi, para mim, importante para eu começar a pensar nos ataques que estão sofrendo os grupos minoritários no Brasil e acho que nos EUA também – mas no Brasil principalmente, onde temos visto homens brancos héteros, de esquerda, indo para a mídia e as redes sociais, até escrevendo livros contra grupos minoritários, associando-os à ascensão da extrema direita. A senhora poderia falar um pouco mais sobre a importância desse livro ao grupo que está ali se sentindo incomodado com um posicionamento que a gente está tendo?PATRICIA HILL COLLINS Essa é uma grande ameaça para eles. Toda vez que um grupo com poder percebe que um grupo às margens do poder está se organizando, conversando entre si, isso é amedrontador. É o mesmo tipo de ameaça, seja você um homem de esquerda que acha que está fazendo tudo certo, que está ajudando o povo negro, ou se você é da extrema direita, morrendo de medo de todas essas pessoas negras se juntando e se comunicando entre si. Isso não era sequer uma questão no passado, quando todas as pessoas negras estavam fora do campo de visão e das mentes brancas, mas agora, no tempo em que vivemos nos EUA, quando todas as instituições sociais estão integradas e temos estudantes negros nos espaços brancos que querem conversar uns com os outros sobre os assuntos que lhes interessam, e não se sentem na obrigação de fazer algo como “dessegregar” aquela instituição e ensinar aos brancos sobre privilégio. Elas não se enxergam como a experiência multicultural, com o diferente que vai ensinar algo aos brancos. Porque eles estão lá por outro motivo. Quando sentam todos juntos na cafeteria, é uma metáfora para a organização paralela, certo? Eles estão se organizando separadamente e sem a menor culpa por isso. Isso é o que gosto na negritude dos EUA hoje: não tem culpa e não tem que se desculpar por nada. Isso não quer dizer que eles odeiem pessoas brancas; pode ser que sim, pode ser que não. Mas o que frustra essas pessoas (as brancas) é não saber o que está sendo dito dentro desses grupos, entende?
Quando estava dando uma aula sobre política sexual da negritude, tinha essa turma de estudantes com muitas meninas brancas e algumas meninas negras, todas muito animadas para esse momento, esperando que íamos todos discutir juntos aquilo. Após uma semana, dividi a turma em grupos e formei um só com negros. Todo mundo ficou chocado. Eram quatro pessoas, não era nem um grande grupo, mas resolvi que iam falar uns com os outros, por um tempo, na minha aula. E os outros grupos só com brancos ficaram muito desapontados e olhavam para o outro grupo toda hora se perguntando sobre o que estavam falando. O grupo negro estava lá tendo uma conversa animadíssima, aquelas quatro mulheres negras estavam mesmo super envolvidas na discussão e as estudantes brancas se sentiram totalmente por fora. A sensação de estar sendo excluída daquela forma era insuportável para elas, porque estavam acostumadas a ter acesso a tudo.
Acho que mencionamos isso: um homem envolvido em um caso de violência doméstica. Ele espanca a namorada, espanca a esposa, bate nela e depois diz: “Ela me obrigou a fazer isso. Se ela tivesse ficado no lugar dela e me satisfeito como era seu papel, não teria precisado bater nela”. Isso tudo soa quase como se esse cara estivesse muito perturbado e tivesse finalmente tido que dormir fora de casa porque agora as pessoas negras não estão ficando no lugar que deveriam ser os seus lugares. Estão afrontando-o e tornando tão visível esse afronte que a direita fica cada vez mais irritada com a direção que seu país ou sua comunidade estava tomando e querem açoitar esses negros. Esse fenômeno do nós contra eles se chama fascismo.
ROBERTA ESTRELA D'ALVA Gostaria de introduzir o debate ambiental na nossa conversa: o Brasil tem convivido com alguns graves desastres. Nesse momento, um vazamento de óleo atinge nove estados do Nordeste. São 75 cidades e 187 praias tomadas por manchas de petróleo que ninguém sabe de onde veio. Além disso, temos problemas com enchentes, secas, condições habitacionais que se relacionam com níveis de pobreza multidimensional como, por exemplo, habitação sem qualidade, construção precária, sem saneamento básico, sem coleta de lixo e a própria condição de miséria, que aumentou nas periferias, comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas. A minha pergunta é: Em que medida esse debate da agenda ambiental é afetado pela interseccionalidade? Sempre parece que as comunidades pobres e negras são as mais afetadas e as menos protegidas nessa questão.
PATRICIA HILL COLLINS Uau! Essa é realmente a pergunta do tempo presente, é realmente o núcleo da questão interseccional, onde todos podemos enxergar conexões entre todas as categorias. A ameaça é geral, tanto que todas as coisas que você descreveu estão conectadas ao racismo. A discriminação do outro, a pobreza, que é criada por esse tipo de exploração, a acumulação de recursos. Isso que o latifúndio é: acumular tudo e manter para si. Mas veja, o que acontece até agora com a população vulnerável de todo o mundo, em relação à mudança climática, é quem será atingido por isso? Quem pode perder sua casa? Em caso de climas extremos, ventos e furacões e esses desastres todos, quem é mais atingido? Isso é algo que não acontece igualmente a todos, ainda que afete a todos de alguma maneira. Olhando pela perspectiva interseccional, essa é a próxima grande questão que urge. Nos EUA, tivemos um longo movimento por justiça ambiental entre as pessoas de cor, pela questão do assentamento, da moradia, estradas que eles conduziram. A questão da água, em Michigan, é um exemplo atual. Nova York também.
O povo negro está muito enquadrado na questão do racismo, mas o reconhecimento de que esse é um quadro global e precisamos de ferramentas teóricas melhores, como, por exemplo, a interseccionalidade, nos mostrará as conexões entre esses sistemas de poder e como afetam as pessoas e como essas conexões deveriam moldar as políticas. Deveríamos ter cada vez mais líderes dentro desses movimentos, porque somos nós que estamos sendo mais afetados. Bem-estar, saúde materna, tudo isso está conectado. Gostaria de ver grupos, que no passado viam com desconfiança uns aos outros – porque um discutia gênero, outro raça, outro políticas de classe – arranjassem um caminho para construir uma agenda comum, como um grande guarda-chuva abordando essa questão ambiental, que não vai passar, não é uma questão da moda que vai desaparecer. Essa é uma fagulha para uma longa luta correlacional entre todas as questões, e esse é o tipo de política para qual a interseccionalidade aponta. Quebra meu coração saber que não consegui chegar lá nesse livro que revisamos agora. Simplesmente não conseguimos chegar tão fundo em tão pouco tempo, mas essa é a grande questão.
ROBERTA ESTRELA D'ALVA Sobre a perspectiva racial, tem um filme chamado I'm not your negro (documentário dirigido por Raoul Peck, baseado no livro de James Baldwin) em que diz: “Branco é uma metáfora para poder e negro é tudo aquilo que não é branco”. Não é uma questão pessoal você ser branco ou não; ser branco representa uma categoria social que carrega muitas coisas antes de você. Queria perguntar, vendo nessa perspectiva – a gente leu o Achille (Mbembe), viu todo aquele futuro em que a raça poderia não ser mais uma questão. Essa conciliação (racial) é possível? Existe alguma forma de superação possível (do racismo)?
PATRICIA HILL COLLINS Para mim, existe uma diferença entre raça como uma categoria social e uma visão política que diz que a forma de superar o racismo é fingir que não existe raça. Nós já tentamos isso. Não funcionou. A ideia de abandonar a esperança prematuramente é algo que tenho que pensar sobre, porque já vi um longo arco histórico. As coisas estavam ruins e ficaram um pouco melhores, depois pioraram, estagnaram, pioraram ainda mais. Porém, sei que é possível que melhorem, por causa do nosso trabalho. O ponto é: o que vamos fazer e o que vamos deixar para os mais jovens. Queremos que as próximas gerações lembrem da nossa como um grupo tímido que desistiu de tudo cedo? Ou queremos que se lembrem de nós como lembram de Sueli Carneiro, alguém que não desistiu nunca e deixou uma marca que vai ser levada adiante mesmo que não tenha concluído o caminho no seu tempo de vida?
Não tem nada de errado em desejar e acreditar no fim do racismo, se não para você, para os seus filhos e filhas e as gerações futuras. Uma das coisas que está no coração do feminismo negro, mas da qual não falo muito nesse livro, é que a esperança está no centro da nossa prática política. É como naquela primeira pergunta: eu era a esperança da minha mãe pelos sonhos que ela não pôde realizar. Eu vivo uma vida que ela nunca nem imaginaria. O que eu estou dizendo é que, só porque não conseguimos imaginar a possibilidade de algo, não significa que seja impossível que algo aconteça. Tem coisas que não consigo imaginar acontecendo, mas eu posso ter esperança nelas e buscá-las. E são vocês (plateia) que estão aqui hoje que vão preparar o terreno para a geração futura agir. Vocês não podem se tornar o problema de alguém. Vocês querem mesmo é ser a inspiração para alguém.
CHICO LUDERMIR, jornalista, escritor e artista visual, com mestrado em Sociologia.
MIA ARAGÃO é estudante de Cinema na UFPE e colaboradora do Programa Entre, da Rádio Universitária Paulo Freire.