Entrevista

“O tema de ‘Medusa’ é o controle”

Anita Rocha da Silveira coloca mulheres como algozes e vítimas em seu segundo longa-metragem, que mescla terror, humor e drama com elementos políticos e religiosos

TEXTO Luciana Veras

31 de Março de 2023

A cineasta Ana Rocha da Silveira nos bastidores

A cineasta Ana Rocha da Silveira nos bastidores

Foto Bruno Mello/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

“Desconcertante” talvez seja um adjetivo apropriado para definir Medusa (Brasil, 2022), segundo longa-metragem de Anita Rocha da Silveira, em cartaz no Cinema do Porto, no Recife. Ou uma das possibilidades mais acuradas para falar deste filme, exibido pela primeira vez na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, em maio de 2022, e lançado no Brasil neste março, com distribuição da Vitrine Filmes. Mas apenas uma, pois existem outras tantas inúmeras vias para se descrever esta obra que, dirigida com coragem por uma jovem cineasta, pode ser pensada como uma ficção distópica, assustadora e ao mesmo tempo engraçada, ou como um terror pop que, flertando com o musical, é terrivelmente próximo da realidade.

Na trama de Medusa, Mariana (personagem da excelente atriz Mari Oliveira, uma das protagonistas em Mate-me por favor, o primeiro longa de Anita, de 2015) integra o grupo Preciosas do Altar, um conclave de jovens mulheres “belas, recatadas e do lar” que se divide em duas rotinas: oficialmente, ou à luz do dia, elas cantam hinos de louvor a Nosso Senhor Jesus Cristo, atendem a cultos liderados pelo eloquente e persuasivo pastor Guilherme (Thiago Fragoso) e são cortejadas pelos rapazes dos Vigilantes de Sião. Extraoficialmente, à noite, elas percorrem as ruas como vigilantes mascaradas, cuja missão é agredir e desfigurar mulheres “messalinas e meretrizes” que não são submissas aos homens nem devotas de Deus.

Tudo que Mariana quer é pertencer a este mundo onde as mulheres devem se esmerar para ter aparência de miss e reputação ilibada. Contudo, mesmo imersa no ritual de “vigiar e punir” da gangue, há algo dentro dela que é contraditório. E que a mobiliza, por exemplo, para saber mais sobre uma antiga atriz (Bruna Linzmeyer) que, anos antes, quando o Brasil era um lugar “onde se podia tudo”, como diz uma das Preciosas, havia sido queimada viva por uma outra mulher. 

Medusa é intrigante, divertido, arrojado e, acima de tudo, político como o cinema pode e deve ser. “O filme foi chocantemente muito bem compreendido nos outros países”, conta Anita Rocha da Silveira. “Na América Latina e nos Estados Unidos, por exemplo, a igreja evangélica é muito presente, até pela questão dos cultos nos EUA, e as pessoas acessam muito rápido. Na Europa, tem essa questão da extrema direita, em alguns lugares ligada à xenofobia, aos movimentos neonazistas. Porque no mundo inteiro a extrema direita está à espreita, ou já no poder, ou perto de assumir. E em todos os lugares, as pessoas entenderam que estávamos falando do Brasil, mas também do mundo”, continua a diretora, que mora no Rio de Janeiro e falou à Continente por meio de uma videochamada.
 
Leia os trechos editados da conversa a seguir. Aviso importante: contém spoilers.
 
As atrizes do filme Julianna Pimenta, Isadora Ruppert, Carol Romano, Natalia Balb, Anita Chaves, Fernanda Lasevitch, Mari Oliveira e Lara Tremouroux. Foto: Bruno Mello/Divulgação

CONTINENTE Minha primeira pergunta é: de onde vem e como surge Medusa? E uma outra pergunta que vou emendar logo é que, em um exercício de projeção meio “psicanálise selvagem”, talvez aquelas meninas que estavam ali no colégio da Barra da Tijuca, as protagonistas de Mate-me por favor, seu primeiro longa-metragem, se tivessem crescido e continuado amigas, poderiam desembocar ali no grupo de mulheres que se juntam naquela milícia/polícia política de Medusa. Claro que você há de perceber vínculos nos seus filmes, mas essa interpretação de que poderiam ser as mesmas meninas é algo que você acolhe?
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Vou começar pelo final. Acho que não. Só se elas tivessem crescido num ambiente conservador desde criança, sabe? Mas acho que não, porque aquelas são da Barra da Tijuca e são mais soltas. Mesmo que frequentando uma certa igreja lá, elas vão mais pela social, não exatamente por acreditarem. Mas, se tivessem crescido num ambiente de ultradireita, no ambiente conservador, com certeza, até porque elas têm nomes em comum e personalidades parecidas. De um lado, no Mate-me, como era meu primeiro longa, eu realmente parti muito de experiências pessoais. Queria falar do suicídio de uma grande amiga minha, de pulsão de morte e de certas questões que permearam a minha adolescência, como o medo de caminhar na rua de noite. Ao mesmo tempo em que você tem um certo prazer na liberdade, você quer poder voltar sozinha para casa, caminhar na rua de noite, mas naquele momento você também morre de medo de estar na rua à noite. E tem esse fascínio do desejo ligado à morte. Acho que, no Mate-me, são jovens muito parecidas comigo, não é? E como eu cresci. Já Medusa vem desse desafio de escrever como seria essa jovem que cresceu num ambiente ultraconservador. A inspiração inicial foi uma notícia que eu vi de um grupo de jovens em torno de 16, 17 anos que se juntaram para bater em uma colega de colégio, porque considerava essa menina meio promíscua demais, meio a “piranha”, entre aspas, da turma. E para esse grupo era importante não só bater como deixar a menina feia aos olhos dela, então tinha que cortar o cabelo e cortar a cara. Comecei a pesquisar e fui encontrando casos similares em outros cantos.

CONTINENTE Como assim?
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Às vezes, era num bairro ou numa rua, num colégio ou numa faculdade, mas havia um grupo de algumas garotas ou mulheres que se juntavam para bater numa por ser promíscua, ou por ter postado uma foto sensual, ou porque o namorado de uma deu like na foto da outra. É algum controle que passa muito pelas redes sociais. E isso me fez pensar no mito de Medusa, que tem milhares de anos. O princípio do mito é que Medusa foi punida por Atena. A deusa virgem é uma versão do mito. Ela nunca fez sexo, nunca foi estuprada, mas ainda assim Atena transformou Medusa nessa criatura horrorosa que transformava os outros em pedra. E aí, nisso, eu comecei também a pensar muito nesse avanço conservador do Brasil. Isso foi em 2015 e já desde 2013, sentia esse avanço de modo mais palpável. Comecei a pesquisar esse universo do jovem de direita, do jovem conservador, o mundo dos youtubers, que às vezes é um vídeo de maquiagem, mas que vai falar “se você não fizer isso, não casa”, “se fizer isso, vai ficar solteirona”. É vídeo de videogame, mas que está falando de cultura incel e de cultura red pill entre um jogo e outro, sabe? E fiz também uma pesquisa muito grande de certos grupos da igreja evangélica, grupos que têm um projeto de poder e que fazem um discurso muito pautado em fake news, em isolar as pessoas e não acreditar em nada fora da igreja, tudo junto a um discurso machista e homofóbico. 

CONTINENTE Só de ouvi-la falar parece que você está descrevendo a “tempestade perfeita”, como dizemos: uma confluência de fatores que, no seu caso, desembocou numa obra de ficção, mas com laços assustadoramente muito críveis e vinculados à realidade recente que vivemos e que poderíamos estar vivendo no Brasil. Porque o resultado da última eleição presidencial denota como foi apertada e como ainda vivemos o choque de placas tectônicas aqui no Brasil, não? Então, pelo que você diz, a ideia para Medusa surgiu lá em 2015, ou seja, antes da eleição de Jair Bolsonaro em 2018, mas aí você mantém, por exemplo, o nome da cantora e da amiga da protagonista como Michelle, o mesmo nome da ex-primeira dama.
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Esse é um nome que vem do Mate-me! Bem antes de tudo isso, na verdade.

CONTINENTE Veja como são as coisas e como cinema também é completamente permeável à vida: vi o filme me perguntando se a personagem não era inspirada em Michelle Bolsonaro, mesmo tendo lido no material de divulgação que você já tinha escrito antes, mas mesmo assim quis te perguntar se não era proposital.
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Eu mantive porque é o nome da personagem. E tinha uma coisa também dos nomes serem parecidos – Mariana, Michelle, Melissa. Criei o nome com a letra M, mas também para ser nomes que não se confundissem tanto. Eu nem parei pra pensar muito nisso, pra ser sincera, porque comecei a desenvolver em 2015. Mas aí muita coisa mudou no projeto. A primeira versão do roteiro tinha um final pessimista, mas eu acho que, até antes da eleição, em 2017, já depois do golpe, comecei a perceber que não dava. A gente precisava apresentar uma perspectiva, uma possibilidade de um final feliz, então pensei nesse final de que eu gosto muito. É muito melhor. Realmente, é o final que aponta para uma sororidade, para uma libertação. Enfim, é que o Brasil foi ficando tão pesado, que eu falei: “Ah, vou ter que ser, vou ter que apontar para algo mais feliz e mais catártico no final”.

CONTINENTE
Como foi o processo de pesquisa? No filme, você fala de religião, do comportamento dos jovens, de uma forma que pode ser alegórica, com o peso da ficção, mas que é assustadoramente parecida com o que se vê em algumas igrejas, por exemplo.
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Foi uma pesquisa muito grande. Todos os sermões do pastor Guilherme, personagem do Thiago Fragoso, por exemplo, são inspirados em sermões reais que estão disponíveis no YouTube. E arrisco dizer que eu nem peguei os sermões mais pesados. Porque eu sabia que, se pegasse uns com discursos mais pesados, as pessoas iriam dizer: “Nossa, Anita tá viajando, né?”. Peguei discursos e sermões bem padrões. Acho que as pessoas que cresceram na igreja ou aqueles que têm mais familiaridade reconhecem a igreja, quais são os pastores... Então, nesse ponto, eu nem quis viajar muito. Para mim, a parte mais fantástica do filme é justamente a casa de cuidados e o hospital. Essa é a parte doidona, a parte mais de terror do filme também. A parte da igreja é mais inspirada na realidade.

CONTINENTE Concordo com você, Medusa é, também, um filme de terror. Me lembra um pouco aquela atmosfera que se vê na República de Gilead, em O conto da aia: uma opressão tão grande contra as mulheres, mas algumas delas fazem parte dessa máquina de moer corpos femininos.
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Uma coisa que me ocorreu com essa pesquisa em que também falo do machismo estrutural é que o tema de Medusa é controle. Nós, mulheres, crescemos tentando controlar nosso corpo, nossa mente também. Na minha geração, era assim, agora não sei como é que tá – talvez melhor, talvez pior, dependendo de onde você cresce. Porque também acho que a juventude está muito polarizada: é preciso controlar como senta, como fala, com que roupa se veste a nossa sexualidade. Então, acho que, nesses grupos, uma passa a controlar a amiga que logo passa a controlar a outra. E só falta uma gota d’água para que transbordem. Quis transmitir isso no filme: de certo modo, elas são os algozes, mas também são vítimas dessa dinâmica, dessa sociedade e desse universo patriarcal e machista.

CONTINENTE Vamos falar um pouco da linguagem do filme. Há momentos cômicos, outros em que Medusa vira um musical e tem também aquelas passagens em que o filme é de terror. Você posiciona a câmera em um plano mais aberto e vai se aproximando lentamente, como se estivesse fazendo um convite para nós olharmos, mas deixando todo mundo com um pouco de medo. Essa é uma sensação do cinema de gênero.
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Tentei ao máximo, com Medusa, fazer uma coisa de que gosto bastante, que é misturar gêneros. E um cineasta que me inspira muito é David Lynch. Se formos pensar justamente em Mulholland Drive, é um filme que tem cena lá em que você está morrendo de medo, tem cena que é mais bizarra, tem a música que vem forte e ainda tem humor e melodrama. Curto essa mistura. E acho, também, que no Brasil a gente demora tanto pra fazer um filme, que, quando faz, tem que botar tudo que gosta. Então, o filme vai ter humor, vai ter fantasia, vai ter musical e vai ter horror. Outro cineasta que também acho que mistura muito bem é o Jordan Peele. Quando vi Get out, o Corra!, é um filme que tem uma crítica social, mas tem um humor também muito forte. No Corra!, está muito bem-resolvida essa questão do humor com horror e a crítica social, mas nos outros filmes dele também. No Nope (Não! Não olhe!) também, tem cena que dá medo, outras que são mais de aventura e outras que vão para a comédia. Gosto muito disso. 

CONTINENTE Em Não, não olhe, por exemplo, ele também faz uma reflexão sobre o próprio nascer do cinema e o poder da imagem.
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Sim. Em relação aos cineastas que me inspiraram e que abordo, são esses, eu diria, mas apesar de o roteiro misturar gêneros, esteticamente eu me inspirei, sim, mais em filmes de horror, especialmente obras italianas, como Suspiria, de Dario Argento, e também Carrie, de Brian de Palma. Queria muito trabalhar essa estética mais carregada. Porque no Mate-me por favor, a gente filmou de um modo mais neutro e encontrou com a cor na pós-produção. Já no Medusa, o João (Atala, diretor de fotografia) e a Dina (Salem Levy, diretora de arte) se comprometeram a encontrar com essas cores mais carregadas no set, pra gente se arriscar e realmente prestar uma homenagem aos cineastas dos anos 1970 e 1980, de quem a gente gosta tanto. Até porque, hoje em dia, as pessoas já não se arriscam tanto: se filma tudo mais neutro e depois na pós resolve. 

CONTINENTE Na concepção pela imagem de Medusa, por essa busca imagética, a ideia, portanto, era carregar desde sempre?
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Sim. Além disso, usamos lentes anamórficas, que também têm essa estética, para trazer um pouco desse visual do cinema dos anos 1970 e 1980. 

CONTINENTE E a trilha sonora? Li no material de divulgação enviado pela assessoria que você tem parte com música também e se envolveu diretamente na produção da trilha. Como foi isso?
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Para mim, essa coisa é muito pessoal. Eu escrevi a letra de todas as versões. Tem uma versão de Sonho de amor que as meninas do coral cantam. Tem duas versões de House of the rising sun, que entrou muito por ser uma música que eu acho que as pessoas iam reconhecer e, ao mesmo tempo, por ser de domínio público. Queria muito uma música familiar, que as pessoas tivessem na cabeça e, mesmo que não reconhecessem, sentissem que era algo familiar. E teve várias músicas que regravamos para o filme, como a versão de Baby it’s you, que é cantada pela Nath Rodrigues, uma cantora de Minas Gerais. A Marina Sena canta uma versão de Vaca profana e, enfim, até a Mari Oliveira canta uma versão de Wishing on a star. Fomos também fazendo as versões pro filme. A Carol Romano, que é a atriz que faz a Vivian, vem de formação de teatro musical, com ouvido absoluto, e ela ensaiou o coral das meninas e canta a música dos créditos. 

CONTINENTE Vamos falar de casting agora. Como você chegou àquelas atrizes? Mari Oliveira, por exemplo, trabalhou com você em Mate-me por favor. Bruna Linzmeyer já é uma atriz muito famosa, mas e o resto do elenco? Como realizadora, Anita, você é uma cineasta que marca muito o roteiro, ensaia antes de rodar e já chega no set com tudo fechado, ou abre espaço para improvisação e convida as atrizes para colaborar ali no set?
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Vamos por partes. Primeiro, o casting. O roteiro já foi escrito com a Mari em mente. Eu já a conhecia do Mate-me e, quando comecei a pensar na Medusa, pensava muito na Mari. Pra mim, era muito importante a Mari ter esse espaço como protagonista. E aí eu trabalhei com um produtor de elenco chamado Giovani Barros, daqui do Rio, que é um grande amigo meu. Fizemos uma chamada pública no Instagram e no Facebook para o elenco jovem do filme, então recebi o material de muitas mulheres, muitos homens. Nessa leva, chegou tanto o material da Lara Tremouroux, que já vinha de novela, como do João Oliveira, que nunca tinha feito nada. Como tinha muito mais gente legal que conheci nesse processo, foi difícil chegar a esse grupo de jovens que estão no filme, nas Preciosas do Altar e nos Vigilantes de Sião. Trabalhei junto com a preparadora de elenco Clarisse Zarvos. E tanto o Medusa como o Mate-me foram filmes que eu tive que filmar em muito pouco tempo. Eram só 28 diárias, então foi bem corrido. A gente não tinha tempo para improvisação no set, mas teve, sim, na preparação.


Mari Oliveira em Medusa. Foto: Bruno Mello/Divulgação

CONTINENTE Imagino a correria em ter que filmar tudo em 28 diárias! Nos ensaios, então, havia esse espaço para criar junto com o elenco?
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Como o set ia ser curto, na preparação a gente fez com calma. O trabalho era de muita conversa com as atrizes: eu improvisava muitas cenas, trabalhava, via com as atrizes o que elas achavam legal e se determinado diálogo não soava bem, ficava ali ensaiando e tentando achar o diálogo. Mas num momento ali, por volta de duas semanas antes de rodar, eu fechava o roteiro a partir de coisas que vieram do ensaio. Então, como ensaiava muito, trocava muito com o elenco, sim, o que ajudava bastante, mas na hora de rodar era tudo muito fechado. Até pela questão de ser muito rápido. Mas, por exemplo, as cenas dos monólogos da Lara foram, durante muito tempo, ensaiadas com ela. A gente ia mudando uma palavra e outra, vendo que estava melhor… Foi um processo encontrar esses monólogos, que são três no filme. Era um processo de encontrar as palavras certas. Por exemplo, tinha um diálogo da Mari com a Lara também, que a gente fez de um jeito e fica uma situação muito estranha, então era muito tempo no ensaio até encontrar as palavras que soassem boas. E aí, duas semanas antes de rodar, fechamos o roteiro. Foi uma filmagem muito preparada porque não tinha tempo para erro. Teve dia em que rodamos sete cenas. E também trabalhei muito as minhas ideias junto com o fotógrafo, fazendo um livro de decupagem, com os planos, com muitas fotos para já saber o enquadramento, com tudo de luz muito desenhado, para não perder tempo no set. 

CONTINENTE Vocês filmaram quando?
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Em 2019, em novembro, logo antes da pandemia. Uma outra coisa que eu gostaria de falar, justamente do resto do elenco, é que a Bruna já era minha amiga e eu a convidei diretamente para o papel, pensando nessa questão da imagem pública da Bruna e dela ser conhecida pela beleza. Ela se amarrou em fazer. O Fragoso foi uma indicação da produtora executiva do filme, que é amiga dele, e ele leu o roteiro e topou na hora. A Joana Medeiros, que faz a chefe de enfermagem, é do Sol alegria, do Tavinho Teixeira. Ela é muito boa e eu fiquei com ela em mente, aí um dia eu estava no Rio com uma amiga e ela entrou no mesmo café onde eu estava. Achei que era um sinal divino e depois chamei Joana para fazer o filme. A Inez Viana também topou fazer essa participação pequena, ela é uma atriz bem famosa no teatro aqui do Rio, e o elenco jovem veio dessa chamada aberta. 

CONTINENTE Medusa passa a sensação de que cada personagem é cavado e esculpido para cada pessoa que o interpreta. Vendo você falar sobre esse intenso processo de ensaio e de colaboração, fiquei pensando nas muitas partes de coreografia, dança e luta do filme. Você teve alguma consultoria de alguém do Exército, de artes marciais ali? Fiquei curiosa.
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Toda essa parte de luta, por exemplo, foi pensada como se fosse no teatro, de realmente ensinar a cair e bater sem encostar ou sem machucar. E não teve uma consultoria específica. Foi tudo a partir da pesquisa. A minha inspiração, na verdade, foi o filme Bom trabalho, da Claire Denis. Trabalhei junto com a preparadora de elenco, a Clarice, e ela pensou mais nesses passos e, quando ela viu o que ela conseguia fazer, pensamos: “Então esses garotos jovens vão conseguir fazer!”. Eu nem me arrisquei porque eu estava completamente fora de forma, mas agora acho que já consigo fazer (risos). Também teve coisa que fomos vendo no ensaio, algumas coisas que eles mesmos traziam, pois tinha gente com experiência em muay thai e kung fu. Fomos observando e juntando tudo. 

CONTINENTE Medusa é sobre controle, como você disse, e de certa forma também sobre a subalternidade da mulher. Os homens estão ali em cima e as mulheres estão muito mais para baixo na estrutura da sociedade. A mulher é “bela, recatada e do lar” ou ainda submissa e devota do Senhor, como aparece no enredo. A ideia de submissão, de subalternidade, é algo que ecoa no Brasil, que ainda apresenta índices muito cruéis de violência contra a mulher e estatísticas alarmantes de feminicídio. A violência contra as mulheres faz parte do nosso cotidiano e do nosso DNA, como o machismo e a misoginia. Seu filme traz essas questões e penso que talvez Medusa só pudesse ser feito dessa forma por uma mulher mesmo. Como obra de ficção, tem ecos assustadoramente próximos da realidade de um país que sinaliza uma mudança, mas ao mesmo tempo é o mesmo país onde, há cinco anos, uma vereadora eleita foi assassinada, em um crime até hoje nunca solucionado por completo. Você é cineasta, não tem um mandato, tampouco um cargo eletivo, mas tem plena consciência do papel político do cinema. Como analisa tudo isso?
ANITA ROCHA DA SILVEIRA Medusa também veio, de certa maneira, de uma vontade minha de falar do momento do Brasil, do modo que eu poderia falar, do modo com que eu me sentia à vontade. E, pra mim, foi uma espécie de catarse também: queria, sim, fazer um filme feminista. Tinha esse desejo de fazer um filme com esse tópico. Era algo que me movia. Fui criada por uma mãe que era integrante de um coletivo feminista, sabe? E com muitos desenhos da Mafalda pelo meu quarto, então para mim era muito importante. O Mate-me por favor já é um filme que apontava para isso que a sexualidade juvenil pode trazer – uma temática queer de libertação dos corpos e dos desejos. Mas, no Medusa, eu queria realmente escancarar um pouco mais, fazer um filme sobre libertação feminina, sobre o controle e a perda do controle, e também falar desse momento no Brasil. Porque é isso: as pessoas vivem em certas bolhas e acham que está tudo bem. Mas não, não está. A sociedade está muito polarizada. Quando se olha para eleição passada, não foi de lavada, foi complicado. A extrema direita pode voltar ao poder. Aliás, a extrema direita está no poder ainda em muitos lugares. E até quando se pensa na juventude… Às vezes, você está entrando num certo vídeo do YouTube que vai para um outro, e para outro, e quando vê você, vai parar em um canal de extrema direita. Isso me preocupa. Muitas vezes a juventude, que tem um certo acesso à informação, mas às vezes só na teoria, pode entrar num looping de estar numa bolha de extrema direita, de conservadorismo, que chega no seu Instagram, no seu Twitter e no seu YouTube. Mas acho, sim, que isso tudo se traduz a partir da vontade de ser um filme também político, mas também engraçado, também com humor, também fantástico e ainda com esse viés político, sim, do dia a dia. Enfim, para a gente soltar um pouco esse grito que seguramos por quatro anos, ou até mais, se contar desde o golpe. Até porque não tem nada, nada mesmo, que garanta que tudo aquilo tudo não possa voltar.

CONTINENTE Sim, é verdade. Porque o conservadorismo persiste e a biopolítica do controle sobre o corpo da mulher, visto como um objeto tutelado pelo Estado, continua. Aqui em Pernambuco, por exemplo, existe uma deputada, que inclusive nas últimas eleições foi eleita para a Câmara Federal, e que em 2020 liderou uma manifestação na frente de uma maternidade no Recife contra um procedimento de aborto legal que seria realizado em uma criança de 11 anos violentada por um parente no Espírito Santo. Uma pessoa que saiu de casa para chamar de assassina a menina grávida após um estupro…
ANITA ROCHA DA SILVEIRA É algo assustador. O Brasil está muito atrasado nisso, até perto da América Latina. Essa questão do controle do corpo da mulher é algo que me lembro de, quando era adolescente no colégio, discutir sobre aborto com minhas amigas. Até em sala de aula era um tema que se falava. E eu achava que, quando eu fosse adulta, já seria legal no Brasil. E agora? Não só ainda não é, como a situação é ainda pior do quando eu era adolescente.

LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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