Entrevista

“O que eu fiz até agora fala brutalmente sobre mim”

Getúlio Abelha foi criado em Teresina, mas nasceu como artista em Fortaleza. A seguir, ele fala sobre seu trabalho musical, que tem referências nordestinas, mas vai além do que se espera disso

TEXTO Antonio Lira

13 de Junho de 2023

Foto Vanessa Alcântara/Rec-Beat/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Até lançar Marmota (2021), seu primeiro álbum de estúdio, foram quatro longos anos em que Getúlio Abelha foi construindo, como produção independente, cada pedacinho do disco; desde a sonoridade da banda a toda construção visual de sua obra. É provável, no entanto, que essa construção tenha começado ainda antes, em Teresina, capital piauiense, localizada no meio-norte, sub-região do Nordeste onde o calor do Sertão começa a dar lugar à vegetação amazônica. Seja pelo pai que o incentivava a cantar em serestas, ou pela sensibilidade e veia artística da mãe, seja por conta do estúdio de fotografia do padrasto, Getúlio sempre esteve rodeado de música, fotografia, moda e teatro. Mesmo na escola, ele estava constantemente envolvido em todo tipo de atividade extracurricular que incluísse a arte de alguma forma.

Ao se mudar para Fortaleza, capital cearense, encontrou um lugar cuja cultura se assemelhava à de sua cidade, mas que lhe permitia também expandir sua criação para públicos e audiências diferentes. Seu álbum de estreia foi criado em torno de muito do que o faz ser Getúlio Abelha: uma verve cênico-musical potente. Suas músicas – e clipes – são tomadas por referências à cultura pop, trabalham o imaginário do forró pop e do brega que constituem parte da memória afetiva do Norte/Nordeste brasileiro durante os anos 2000 e 2010.

Neste novo momento de sua carreira, o artista expande ainda mais seu leque de referências. No mais novo lançamento, o single Ranço (disponibilizado no último 12 de junho), ele interpreta a música de outro compositor, prometendo que, agora, seus fãs podem esperar mais parcerias com outros artistas. “Ranço foi uma escolha que me permite focar no meu trabalho mais como intérprete, porque não é uma composição minha, é a composição de um cara chamado Igor Bruno”, diz ele, nesta entrevista à Continente.

Entre compromissos de uma agitada vida artística, ele falou sobre sua história, a vivência com a música, a mudança de Teresina para Fortaleza, a influência das cantoras de forró no seu processo de criação, do pop e, ainda, deu um gostinho do que podemos esperar para um futuro próximo, comentando também sobre sua participação no festival Rec-Beat, no Carnaval deste ano.


Getúlio Abelha no Rec-Beat 2023. Foto: Hannah Carvalho/Rec-Beat/Divulgação

CONTINENTE Para você se apresentar para o leitor da Continente, me diz: de onde é que vem Getúlio Abelha?
GETÚLIO ABELHA Ah, Getúlio Abelha vem do Piauí! (risos). Eu acho que Getúlio Abelha vem de todos os anos que eu cresci em Teresina com os 10 anos que morei em Fortaleza. Acho que a invenção Getúlio Abelha vem da mistura desses dois lugares e das minhas histórias vividas neles. Acho que é isso, a pergunta é muito ampla (risos)!

CONTINENTE Como foi essa mudança de Teresina para Fortaleza?
GETÚLIO ABELHA Fui para Fortaleza para estudar teatro e, também, meio que para sair de casa mesmo, para tentar matar essa sede doida de ver o mundo, de entender como funciona o mundo fora de uma cidade tão pequena como Teresina. E fui como qualquer estudante brasileiro que vai para a universidade pública e não tem dinheiro, aluga um quartinho e fica lá comendo Nissin (Miojo). E também é quando vou encontrando as pessoas que ajudaram a me construir enquanto Getúlio Abelha. Na própria universidade, já fui encontrando meus parceiros iniciais.

CONTINENTE Você é cantor, compositor, ator, diretor e mais o que tiver de ser pra sua arte acontecer. Mas como é a entrada da arte na sua vida? E como é que essa entrada vai te construindo enquanto artista, enquanto sujeito?
GETÚLIO ABELHA Então, desde criança eu já era muito sensível. Minha mãe fala que, com dois, três anos, eu dançava muito. Acho que tem a ver com o fato de sempre ter sido muito sensível, desde criança. A arte e a sensibilidade têm tudo a ver e, talvez, tenha sido através disso que fui me desenvolvendo enquanto artista. Porque as minhas brincadeiras, as minhas coisas, tinham muito mais a ver com imaginação. Eu não era uma criança muito do pega-pega ou do futebol. As brincadeiras que mexiam com a imaginação eram as que eu mais gostava. Mas tem ainda o fato de que minha mãe é muito sensível, também. Ela tem uma veia artística muito forte. O meu pai era muito bem-humorado, gostava muito de festa, gostava muito de criar eventos em torno dele. Então, sempre tinha música, sempre tinha palco e eu sempre participava, desde criança sempre cantava em serestas. E ele estimulava isso, também. Do lado da minha mãe, o marido dela era fotógrafo, então tem uma coisa de ter crescido ali, dentro de um estúdio de fotografia, tendo uma dimensão de luz, de looks, de pose. E, aí, tudo isso foi me formando. Fui virando adolescente e continuei sendo mais sensível do que qualquer outra coisa. No colégio também, eu estava sempre envolvido nas questões criativas da escola. Sempre reprovando, sempre de recuperação, mas tudo que envolvia atividades extras, eu estava no meio. E, aí, não vi outra solução. Cheguei a cursar um dia de Publicidade, lá em Teresina, mas eu realmente sabia que não dava pra viver quatro anos daquilo, que não dava pra fingir. Então, fui direito ao ponto. E fui no teatro porque achava que, por mais que tivesse vontade do palco, da música, de ser meio pop star, achava que não tinha voz para isso. Até a universidade, ainda achava: “Ah, não, não vou ser cantor, não. Mas tudo bem, dá para eu ser ator”. Eu pensava que talvez pudesse fazer alguma coisa pela TV. Mas aí fui descobrindo que meu mundo é meio underground, é maluco demais para a televisão ou para os formatos de ator que a indústria pede, se você quiser, sei lá, pagar um aluguel, comer bem e viver bem. Mas, aí, com o tempo, fui amadurecendo isso. Cheguei a fazer uma peça de teatro que eu cantava e, desde então, tomei a decisão final. E fui fazer o Laricado (2017). 

CONTINENTE Como é que é ser formado por uma estética pop, massiva, mas entender também que o teu lugar é, como você falou, meio underground? Como você se equilibra, enquanto artista, na construção disso?
GETÚLIO ABELHA Acho que o equilíbrio é natural. Porque eu não sou, definitivamente, uma coisa totalmente plástica e também não fico me esforçando para ser diferentão. É um equilíbrio natural. Acho que a parte do pop que convém para mim tem a ver só com saber pegar todas essas linguagens e misturá-las. Ser pop, para mim, tem muito mais a ver com isso, com comunicação acessível. Com usar todas as linguagens, usar audiovisual, teatro, composições. Acho que a parte do pop que uso tem muito mais a ver com isso do que falar sobre um tema só, ou sobre fazer qualquer coisa só porque está na moda. Eu vejo o pop dessa forma, isso não chega a me prejudicar.

CONTINENTE Uma coisa muito marcante que surge junto com esse tipo de artista pop é também a construção dos fandoms, dessas comunidades de fãs em torno dos artistas. Que é algo que pauta questões importantes, mas eu percebo que, algumas vezes, em especial com artistas que estão no topo da indústria, a relação que se estabelece entre artistas e fãs é pouco crítica. Como você vê essa questão? Você acha importante, também, que os artistas enfrentem ou até desagradem seus fãs?
GETÚLIO ABELHA Então, acho que “desagradar” é uma palavra muito forte. Não sei se existe razão para desagradar uma pessoa que gosta do que faço. Mas um desafio que sempre coloco para mim – e que acabou virando minha vantagem – é o fato de sempre ouvir deles que continuo surpreendendo, no sentido de que eles não sabem o que vão esperar. Não sabem qual vai ser o próximo som, qual vai ser a próxima estética, qual vai ser o próximo estilo. Obviamente que tem características minhas ali que as pessoas minimamente sabem que vêm, porque sou eu fazendo. Mas, pelo menos, a forma com a qual construí a minha relação com os meus fãs foi de eles entenderem que vou decidindo o caminho e eles entenderem que o que vai sendo produzido tem a ver completamente com o que estou interessado em fazer agora. Mas acho que, pras pessoas que me acompanham, elas se satisfazem com o fato de que eu simplesmente me dedico para produzir da melhor maneira possível, em relação à qualidade. E, aí, no fim, é isso que pesa, acho.

CONTINENTE Puxando isso que você falou da qualidade, eu queria que a gente falasse do Marmota (2021), seu primeiro álbum. Você fez a opção de gravar com toda a banda, com todos os instrumentos. Em fazer o forró “do jeito que ele deveria ser feito”. Queria que você falasse dessa escolha, quais foram as dificuldades, mas também como você se sentiu quando viu o produto final.
GETÚLIO ABELHA Eu fiz essa escolha por questão de qualidade mesmo. De querer que fosse um pouco mais orgânico. Tem uma coisa de muita gente produzindo música em computador que, por um lado, é prático, mas, por outro, pelo menos quando eu ouço, sinto a coisa sendo muito sintética. E eu não queria isso. E também porque, de alguma maneira, eu desejava ter uma banda completa ao vivo. Nem sempre é possível, mas, quando é possível, coloco. Acho que o show ao vivo, com banda ao vivo, traz um impacto extremamente importante para a forma com que isso chega no povo, para bater mesmo, no coração. É tanto que a bateria acaba sendo meio que meu instrumento de prioridade, porque acho que ele é o que bate mais pesado. Só que isso dificultou muito, porque eu demorei quatro anos ou mais para conseguir lançar o álbum exatamente por não ter uma banda fixa. Então, nunca foi prático. E, também, foi um álbum sem patrocínios, foi patrocinado por mim mesmo e, de certa forma, também pelo Guilherme (Mendonça), que produziu comigo, porque ele estava me cedendo o espaço e o tempo dele para investir nessa coisa comigo. Mas, atualmente, estou até interessado em explorar o contrário. As próximas músicas que estou fazendo, vou tentar trazer mais o sintético. Por prática mesmo, e porque eu acho que o forró não é exatamente o caminho que vou seguir daqui para frente.

CONTINENTE E como foi, para você, a experiência de vir tocar no palco do Rec-Beat, no Carnaval deste ano?
GETÚLIO ABELHA Foi ótimo, porque eu estava com muita saudade de Recife. Foi ótimo porque fiquei com um frio na barriga, sem saber como seria recebido e se o público iria lá me ver. E foi melhor ainda chegar e ver aquela resposta e aquele resultado, que era a galera se entregando mesmo, cantando. E muita gente que me viu pela primeira vez tocando no Rec-Beat, há quatro anos, estava ali para ver de novo, e acompanharam essa evolução, esses anos, de lá para cá. Então, foi ótimo!

CONTINENTE Getúlio, já vi você falando de como foi trabalhar com o forró enquanto um gênero que tem essa coisa heteronormativa muito forte. Mas, ao mesmo tempo, e eu queria pensar sobre isso, esse forró pop dos anos 1990-2000, de Magníficos, Calcinha Preta, apesar de ainda ser muito heteronormativo, me parece que já tinha alguma coisa ali, nessa aproximação com um pop, que fissurava um pouco isso.
GETÚLIO ABELHA Sim, para mim, tem tudo a ver! Eu acho que esse forró eletrônico é moldado a partir do pop. Para mim, não era nem que flertava, era um fato. As cantoras dos anos 2000, todas eram meio Britney. A Companhia do Calypso, Magníficos e a própria Calcinha Preta estavam lá explorando o pop completamente. Eram grandes palcos, grandes produções, troca de figurino, cenários, pirotecnias. Para mim, não tem nenhuma separação. O pop também era raiz, para eles. E acho que, não à toa, isso é algo que não é tão confuso. Não é tão absurdo.

CONTINENTE É engraçado você falar isso, porque, realmente, quando a gente te vê no palco, tudo isso soa muito natural. E soa porque realmente é.
GETÚLIO ABELHA Elas eram as nossas divas pop, né, na verdade...

CONTINENTE Isso! Você acha isso importante? Quer dizer, apesar dos problemas que o pop tem, mas é importante a gente ter essas referências próximas a gente, como a Joelma, por exemplo? De a gente não ter apenas uma referência distante, como a Britney, mas de ter essas outras mais perto da gente?
GETÚLIO ABELHA Ah, acho completamente necessário. Necessário não, eu odeio essa palavra. Nada é necessário (risos)! Mas eu acho importante porque a gente lembra que a gente tem um país. A gente lembra que a gente tem temas particulares só nossos para falar. A gente lembra que existem coisas que nenhum americano ou nenhum europeu vai conseguir dialogar para a gente de forma realista. Se a gente só se inspira neles e só se baseia neles, fica falando de realidades que não são, necessariamente, as nossas. E, também, a gente consegue, infinitamente, criar novos estilos musicais. Eu acho que essa coisa do Brasil estar tão rico em estilos – ao ponto de você nem conseguir definir alguns gêneros musicais que cantor A ou cantor B faz – é resultado de a gente descobrir o pop como apenas uma ferramenta para criar coisas infinitas e impossíveis. E, aí, quando a gente tem uma Joelma, a gente acaba inventando coisas. Como ela inventou, por exemplo, o brega dela. Então é isso, acho que a importância está aí. De a gente entender a nossa força musical, cultural e temática e poder aplicar isso no nosso próprio pop.

CONTINENTE É muito interessante pensar em como essas artistas que vêm de outros territórios que não os nossos, EUA e Europa, por exemplo, não conseguem dar conta das vivências daqui. Como é que você enxerga isso nessa relação com o Nordeste? Como é que é para um artista nordestino estar nesse lugar dessa disputa, também, por essa música pop brasileira?
GETÚLIO ABELHA Bom… Eu acho que vai demorar para a gente ser compreendido nacionalmente como o funk já é, por exemplo, hoje em dia, ou como o samba se tornou. Acho que os ritmos do Nordeste ainda estão um pouco distantes de serem compreendidos fora do estereótipo junino. Ou você ainda chega no Sudeste e tudo que toca no Nordeste o povo vai chamar de “breguinha”, sendo que tem toda uma diversidade. Mas também acho que isso é nosso e ninguém tem que estar se metendo nem sabendo também não, sabe? Tipo assim, não estou nem aí se alguém não sabe exatamente sobre o que é que a gente está fazendo. Acho que o problema é mais dessa pessoa mesmo, tomara que um dia ela entenda melhor a nossa diversidade. Se ela tiver interesse em se aprofundar no que o Nordeste faz, que se aprofunde; se não, também, tchau. Acho que é mais a gente se pensar de forma autônoma, também. Existe uma coisa estranha sobre: “Ah, quero ganhar o Brasil, quero ganhar o mundo, quero que o forró ganhe o mundo, quero ver o forró no Grammy europeu!”. E não, sabe? Vou ficar a minha vida inteira batalhando para europeu reconhecer a música nordestina? Não faz tanto sentido. Se isso acontecer, se tiver pessoas dispostas, por exemplo, a trabalhar em cima disso e fazer isso acontecer, acho legal. Mas também vivo me perguntando: Para que isso, sabe? A gente quer ser reconhecido fora, quer ser reconhecido no Brasil para quê? Para poder ser reconhecido dentro só depois que foi para fora? Se isso fizer parte da luta, acho que vale a pena. Mas acho que é mais importante a gente tentar se entender como uma força independente e autônoma. E sair de lá só mesmo para pegar dinheiro e ficar rica às custas de públicos estrangeiros. Se for isso, acho legal. 


Foto: Hannah Carvalho/Rec-Beat 2023/Divulgação

CONTINENTE E acho que a gente se conhecer também. Fortaleza conhecer Recife, Recife conhecer Salvador, Salvador conhecer Teresina, Teresina conhecer Mossoró...
GETÚLIO ABELHA Sim. Eu acho que já tem uma relação muito forte, sabe? Não sei para o resto das pessoas, mas até em Belém, que não é Nordeste, eu me sinto em casa. De lá até a Bahia, eu estou nas minhas áreas, e sei onde estou. Eu sei a história desse povo, a história de quem nós somos. Apesar de suas nuances, existe toda uma coisa ali, em comum. Porque, também, as pessoas vivem dizendo: “Ah, porque o Nordeste não é só um sotaque, o Nordeste não é só uma coisa”. Sim, todo mundo sabe que não é. Mas também tem uma grande coisa em comum e é nela que eu quero investir, é nela que eu acredito. Talvez porque eu seja de um lugar que não tenha muita referência, que não tenha um apelo cultural forte, uma “autopaixão”, que é Teresina. Talvez por isso. Talvez alguns lugares mais bairristas façam muita questão de: “Ah, eu preciso ser reconhecido sozinho, pelo meu próprio sotaque”. Sim, isso é legal, mas prefiro investir no que há de comum entre o Nordeste, até para a gente poder começar também a respeitar e entender as nuances de cada estado, de cada região.

CONTINENTE Agora falando de Fortaleza: qual a sua experiência na cena musical de lá e como é que Fortaleza forma também Getúlio Abelha?
GETÚLIO ABELHA Ela é completamente essencial para a formação de Getúlio Abelha. Porque Fortaleza é um lugar que não é muito diferente do estado em que eu nasci. É ao lado, só que muito mais potente. Porque tem um investimento muito maior, tem uma população muito maior, tem universidades, tem cursos, tem formação. E acho que Fortaleza foi a melhor escolha que eu poderia ter apontado. Porque, definitivamente, ela só potencializa o que já tinha na minha história. Não teve um grande novo sotaque, uma grande nova musicalidade, uma grande nova culinária. Só teve espaço para que todas as minhas referências de infância fossem executadas e alimentadas por outras pessoas e pelo que estudei enquanto estava lá. E, ao mesmo tempo, a forma leve que eu via como a cidade lidava com as próprias coisas. Essa coisa do humor, do autodeboche, tudo isso acho que facilitou muito e se conectou muito com a minha personalidade. Então, não foi um grande susto. De lá, você pega um ônibus à noite e, de manhã, você está na minha cidade. E, sobretudo, porque acho que é um lugar que tem um incentivo cultural forte, pelo menos em relação a outras cidades do Brasil. Eu me senti acolhido, lá, por muito tempo.

CONTINENTE A gente passou por um período importante, na universidade pública, no Nordeste e na cultura, com os governos de Lula. Como você vê, agora, o retorno desse período? Porque essa coisa que você fala, de incentivar a cultura, também vem desse período.
GETÚLIO ABELHA Total, completamente. A gente passou também pela crise, a gente viu tudo isso morrendo. Eu vi muita coisa parando de acontecer em Fortaleza nesses últimos anos. Mas, sobre esse retorno, acho que existe um espírito de empolgação que está movimentando coisas ainda antes das movimentações práticas, porque não dá tempo de, em poucos meses, você mudar um país do que era para um milagre. Acho que a gente ainda vai ver nos próximos dois, três anos, essa mudança acontecendo. Ao ponto de ser comum estar tudo bem, eu espero. Mas acho que, no momento, tem mais a ver com esse espírito de celebração que todo mundo está vivendo, que está trazendo uma esperança. E isso ainda é maior do que os resultados práticos, mas acredito que o trabalho começou a ser feito e acredito também que a gente vai chegar lá. Só que, agora, a gente tem uma resistência, aí, que está muito empoderada e a gente vai ter que continuar lidando com ela.

CONTINENTE E agora, falando do último lançamento da era Marmota, o clipe de Voguebike (2023). Conta um pouquinho da história dele!
GETÚLIO ABELHA Uhh! Então, Voguebike é um clipe que me pedem há muito tempo e eu meio que sabia que ia deixar pro final do álbum por dois motivos. Primeiro, porque eu ia ter mais condições financeiras mesmo para fazer ele – e esse momento aconteceu, essa possibilidade de gravar – e (segundo) porque fiz uma logística meio ao contrário. Ao invés de iniciar o álbum com uma música superpotente… Não, se bem que não tem uma música que não é superpotente no álbum (risos). Mas finalizar o álbum com uma música grandiosa como Voguebike é uma decisão que tem a ver com eu utilizar ela para celebrar essa história toda que aconteceu. Essa loucura que aconteceu na minha vida, que foi eu decidir ser músico, e isso dar muito certo e chegar em pessoas e virar algo sério, importante e relevante, também. Eu sabia que não queria um clipe que contasse a historinha igual à letra da música, não faz sentido para mim. Se fosse para ser igual à letra, bastava ouvir a música e imaginar. E aí, pensei: “O que seria um mundo do Getúlio Abelha? Qual o universo de Getúlio Abelha? Como é o universo de Getúlio Abelha?” E foi aí que a gente decidiu criar essa brincadeira, de como funcionam as coisas dentro da minha cabeça. Do quão surreal podem ser as coisas dentro da minha cabeça. Apesar de que nem acho que o clipe é tão surreal, acho que tem umas cenas surreais ali no começo, que é com 3D, mas não é um clipe exatamente surreal. Mas é um clipe muito pop, é um clipe extremamente pop. E eu já tinha feito muita coisa experimental no mesmo álbum. Já tinha gravado muito clipe com um aspecto mais marginal, mais documental. E achei que era o momento de lançar o meu trabalho mais pop possível, a partir do que já fiz. Acho que foi um bom plano, foi bem executado. As referências estão lá, a estética pop está lá, o plástico está lá, também. E é isso, foi uma grande brincadeira, uma grande celebração. Muitos figurinos, muitos cenários, efeitos, recheando de tudo que eu possa rechear. Mas, ainda assim, acho que ali por trás estou falando de coisas. Essa quase crise existencial. “Ai, meu deus, o mundo não sabe como é minha cabeça!” De alguma maneira, tem uma brincadeira estética ali, que ultrapassa um pouco o que o pop faz às vezes.



CONTINENTE David Bowie disse uma vez, numa entrevista, que ele se sentia mais confortável criando não para ele, mas para o Ziggy Stardust e esses outros personagens que ele criava. Porque, depois, ele poderia matar esse personagem e criar outro. Isso faz sentido para você, enquanto artista?
GETÚLIO ABELHA Não, eu acho que não tem a ver com criar personagens para inventar coisas. Acho que o que eu fiz até agora fala brutalmente sobre mim. O Marmota é brutalmente sobre mim. Não tem uma personagem para me proteger e acredito também que vou continuar sem me proteger. Mas, o que vai acontecer, é que eu vou mostrar outros lados, outras camadas minhas. Mas, ainda assim, minhas.

CONTINENTE Para terminar, queria que você falasse de Ranço, seu novo lançamento, que também dá início à nova era de sua carreira. Depois do sucesso de Marmota, o que é que a gente pode esperar?
GETÚLIO ABELHA Eu acredito que essa nova era é uma espécie de transição entre o Marmota e algo que está por vir. Porque o Marmota foi um álbum em que eu trabalhei com muito tempo, com muita calma e consegui construir uma coisa muito consistente. Escolhi esse single porque ele traz um aspecto muito mais centrado, maduro, minimalista, da minha performance. Achei que seria um bom começo para essa nova era, já chegar quebrando com a proposta geral do Marmota, até para poder ter mais liberdade em relação à compreensão do público nos próximos lançamentos. Eu acredito que essa era, assim como o Marmota, vai explorar vários estilos e estéticas, só que acho que, dessa vez, vou diversificar mais ainda. No Marmota, a coisa era muito fechada no forró e nos ritmos Norte/Nordeste e, agora, não; agora quero trazer outras sonoridades que não trouxe antes. Estou imaginando esse álbum como um Frankenstein – em que eu vou unir pedaços de estilos musicais e de temas variados para construir essa nova etapa –, ao mesmo tempo em que não deixo de ficar lançando coisas periodicamente. E estou tentando desenvolver essa ideia de Frankenstein para poder encontrar alguma coesão diante das coisas que quero experimentar. Não quero limitar o conceito em uma coisa extremamente fechada, mas também quero ter muito cuidado para esses futuros lançamentos terem alguma coesão no final das contas, quando eu for contar a história toda. Ranço foi uma escolha que me permite focar no meu trabalho mais como intérprete, porque não é uma composição minha, é a composição de um cara chamado Igor Bruno, que vi tocando no violão uma vez e falei que estava afim de gravar e trabalhar essa música. Dessa vez, eu quero mais colaborações também com outros artistas. Nesse caso, foi através dessa composição, e a partir da resposta dela, vou entender melhor sobre que coisas eu posso falar. A partir do que as pessoas estão afim de ouvir e, ao mesmo tempo, sobre coisas que os artistas, em geral, não estão falando em suas músicas.



ANTONIO LIRA, jornalista, músico, pesquisador, mestre em Comunicação e doutorando do PPGCOM/UFPE.

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