O documentário Privacidade Hackeada, disponível a partir deste mês na Netflix, aborda o escândalo da Cambridge Analytica. A empresa utilizou dados de usuários de redes sociais de forma antiética para manipular resultados de vários referendos populares ao redor do mundo, entre eles, o Brexit, em 2016, e a eleição de Donald Trump, meses depois.
A história da Cambridge Analytica, fundada por Steve Bannon, é contada por Brittany Kaiser, ex-funcionária da empresa, que esclarece e comprova, através de documentos internos, a ligação da empresa com grupos de extrema direita ao redor do mundo.
No filme, é explicado o uso de uma tecnologia, que o governo britânico classificou como “uma arma”, para identificar cidadãos manipuláveis (através de um perfil psicológico quantitativo, chamado O.C.E.A.N.) e bombardeá-los com fake news personalizadas, alterando significativamente os resultados das eleições. É também esclarecido que a Cambridge Analytica era subsidiária da SCL (Strategic Communication Laboratories), um grupo dedicado a psi-ops, operações militares de manipulação da opinião pública, e o papel do Facebook no escândalo é também abordado.
A ativista Brittany Kaiser, cuja narrativa é a espinha dorsal do filme. Foto: Netflix/Divulgação
O filme vem fazer companhia a outros, como Sujeito a termos e condições (2013), O quinto poder (2013), Citizenfour (2014), Snowden (2016), Risk (2016) e Brexit (2019), que estão ajudando a explicar para o grande público o que está acontecendo no mundo virtual, imerso em bolhas de informação, alienação e radicalismo.
Conversamos sobre Privacidade hackeada, o escândalo da Cambridge Analytica e políticas públicas de proteção de dados com Pedro Kos, um dos roteiristas e produtor do documentário. O cineasta carioca, ganhador do Emmy por seu trabalho de edição em The square (2013), está construindo uma sólida carreira como diretor, produtor e editor de filmes importantes.
CONTINENTEVocê nasceu no Brasil? Qual a sua formação? PEDRO KOS Sou Carioca, nascido e criado no Rio de Janeiro até minha adolescência, quando me mudei para os Estados Unidos com meus pais. Me formei em direção de teatro na Universidade de Yale.
CONTINENTE Segundo seu perfil no IMDB, você já participou de dezenas de produções, principalmente como editor, mas também como produtor, roteirista e diretor. Como você entrou no mercado do cinema, e por que está trabalhando cada vez mais em documentários? PEDRO KOS Desde que tinha 11 anos, sabia que eu queria fazer filmes. O cinema sempre foi uma grande paixão minha. Durante a faculdade, fiz alguns estágios em produções cinematográficas e produtoras de cinema. Quando me formei, em 2001, consegui o meu primeiro trabalho, como assistente de pós-produção no filme Frida, sobre a artista Frida Kahlo, estrelado por Salma Hayek. Desde então, um trabalho foi puxando outro e comecei a focar na edição, primeiro editando pequenos projetos e curtas-metragens. A minha entrada no mundo de documentários aconteceu em 2005, quando uma documentarista americana chamada Jessica Sanders estava procurando um editor em Los Angeles que falasse português, para editar um trailer de um documentário sobre as escolas de samba no Rio. Eu editei o trailer e, desde essa época, comecei a focar na edição de documentários. O segundo documentário em longa-metragem que editei foi Lixo extraordinário, um grande marco na minha carreira, que abriu muitas portas na indústria para mim. Nos últimos quatro anos, parei de editar e comecei a focar mais em dirigir, escrever e produzir.
CONTINENTE Quais as dificuldades em retratar no audiovisual uma história que se passa, em grande parte, na internet? PEDRO KOS Foi um grande desafio para nós elaborarmos uma linguagem visual que mostrasse o nosso relacionamento simbiótico com essa tecnologia virtual. O nosso objetivo era tentar visualmente retratar o mundo de hoje pela perspectiva do algoritmo. Como grande parte da ação do filme se passa no universo virtual, foi muito importante para nós ancorarmos esses efeitos e gráficos visualmente com os personagens, quase como se fossem uma extensão de cada pessoa. Daí, dividimos os efeitos em duas categorias: a primeira, o mundo virtual visível, que são todas as nossas interações que fazemos diariamente (textos, postagens, tuítes, Facebook, buscas etc.); a segunda, o mundo invisível por trás desta tecnologia, o que está acontecendo por trás do pano, onde nossos dados pessoais estão sendo coletados e usados para nos categorizar. Para fabricar a primeira categoria, o mundo virtual visível, colaboramos com uns animadores canadenses incríveis, chamados Shy Kids, e para conceber e criar o universo invisível, trabalhamos com um grande animador 3D Ash Thorp, da companhia Alt Creative, que é um gênio absoluto e já trabalhou em megaproduções de Hollywood e em campanhas para grandes marcas. Com o Ash, desenvolvemos uma linguagem visual que retratasse como os nossos dados pessoais estão “evaporando” de nós constantemente e como esta mão oculta da tecnologia mexe em todas as nossas realidades.
CONTINENTEO que motivou o filme? O escândalo da Cambridge Analytica ou os problemas com a comercialização de dados dos usuários pelas empresas de tecnologia? PEDRO KOS O filme surgiu muito antes do caso da Cambridge Analytica. Começou como uma investigação sobre o hack dos estúdios da Sony (roubo e divulgação de informações, incluindo filmes e dados pessoais de funcionários) em dezembro de 2014. O Karim Amer e Jehane Noujaim (os diretores do filme) sempre foram fascinados por histórias e temáticas que envolvem grandes acontecimentos e movimentos focados por histórias individuais, e também pelo nosso relacionamento com mídia e novas tecnologias. O hack dos estúdios Sony cativou os EUA na época e, para um evento tão oculto, teve repercussões mundiais. Mas quando estávamos trabalhando no projeto, o Brexit e as eleições americanas de 2016 aconteceram e nós começamos a entender que o “grande hack” da nossa época não foi de informação, a nossa realidade e as nossas mentes é que foram hackeadas. Então, começamos a pesquisar esse lado do universo virtual, da “comodificação” (transformar em uma mercadoria, em uma commodity) dos nossos dados virtuais e como estes estavam sendo usados para nos influenciar, especificamente em eleições. Foi aí que chegamos à Cambridge Analytica, antes do escândalo estourar, pelas reportagens da jornalista britânica Carole Cadwalladr e do jornalista alemão Hannes Grassegger.
CONTINENTEEm que estágio estava a produção do filme quando você começou a trabalhar nele? Já havia a participação de Brittany Kaiser e David Carroll? PEDRO KOS Eu comecei no projeto bem cedo, no começo de 2016 (muito antes de conhecermos a Brittany e o David – e também bem antes do caso da Cambridge Analytica). Antes, eu já tinha colaborado com a Jehane e o Karim no documentário The square, que editei. Entrei no Privacidade hackeada na fase de desenvolvimento e pesquisa, participando de algumas filmagens e, juntos, começamos a elaborar o argumento do filme. Só em 2017 descobrimos a Cambridge Analytica e conhecemos o David e a Carole Cadwalladr, e só em março de 2018 é que conhecemos a Brittany.
CONTINENTEA narrativa de Brittany Kaiser é a espinha dorsal do filme. Foi dela a iniciativa de se expor aos documentaristas, ou ela precisou ser persuadida? PEDRO KOS Eu diria que houve interesse de ambos lados. Quando a Brittany conheceu o Karim e a Jehane, eles conseguiram desenvolver bastante confiança um no outro em pouco tempo, que é essencial para esse estilo de documentário.
CONTINENTE A Cambridge Analytica era uma empresa subsidiária de um grupo, o SCL. Qual o negócio do SCL? PEDRO KOS O histórico do Grupo SCL é longo e complicado, mas basicamente o negócio do grupo é de pesquisas de comportamento para comunicações estratégicas. Usando análise de populações para influenciar e mudar comportamento em massa. Começaram trabalhando para governos e forças armadas, principalmente no Reino Unido e nos Estados Unidos. Depois, criaram subsidiárias comerciais, institucionais, e para trabalhos em eleições.
O professor David Carroll é outro personagem central no documentário. Foto: Netflix/Divulgação
CONTINENTEO que é o modelo O.C.E.A.N., usado pela Cambridge Analytica para classificar usuários de redes sociais? PEDRO KOS O modelo O.C.E.A.N. é um método desenvolvido há muito tempo para analisar e classificar pessoas por tipos de personalidade. O acrônimo O.C.E.A.N. simboliza os cinco traços básicos da personalidade de uma pessoa:
- Openness: Abertura — nível de curiosidade ou cautela de uma pessoa - Conscientiousness: Conscienciosidade — nível de organização ou descuido de uma pessoa - Extraversion: Extroversão — se uma pessoa é introvertido ou extrovertido - Agreeableness: Agradabilidade — se uma pessoa é amigável ou mais distante/fria - Neuroticism: Neuroticismo — nível de nervosismo/segurança de uma pessoa
Cientistas na Universidade de Cambridge começaram a desenvolver métodos para usar dados digitais de pessoas (como o registro de seu comportamento nas redes sociais) para analisar e classificar a personalidade de indivíduos, e foi essa a tecnologia usada pela Cambridge Analytica.
CONTINENTENa sua opinião, Alexander Nix (CEO da Cambridge Analytica) tem um perfil ideológico e político bem definido, ou queria apenas ganhar dinheiro? PEDRO KOS Não quero supor o perfil ideológico e político do Alexander pois não o conheço, mas as pessoas que trabalhavam com ele sempre disseram que ele é um vendedor nato com muito carisma, e um sucesso em vencer contratos. Isso podemos ver na gravação de áudio que a Brittany fez e que está no filme, onde ele fala sobre a experiência deles em Trinidad e Tobago.
CONTINENTEExistirão outras Cambridge Analyticas? Serão desmascaradas, ou a prática da manipulação de massas criada por ela será replicada impunemente por outros grupos? PEDRO KOS O que é importante entender é que a Cambridge Analytica não foi um fenômeno único, com certeza existem outras companhias fazendo o mesmo, pois essa tecnologia e ferramentas de manipulação são amplamente disponíveis e muito acessíveis. Essas técnicas e práticas foram desenvolvidas para meios comerciais, para nos vender pasta de dentes e pacotes de férias. Começaram a ser usadas em eleições, continuam sendo aperfeiçoadas e já estão mais potentes do que em 2016. Nós focamos o filme na história da Cambridge Analytica porque foi um caso que chamou a atenção do mundo inteiro, especialmente como os nossos dados pessoais estão sendo coletados e usados para nos influenciar, mas, além da Cambridge Analytica, existe uma indústria inteira de bilhões de dólares ao redor desta tecnologia. E, na maior parte do mundo, ainda faltam as normas e proteções necessárias para prevenir que essas ferramentas sejam usadas como armas de manipulação.
CONTINENTE Durante o depoimento de Mark Zuckerberg ao Congresso norte-americano, vemos as reações em tempo real de Brittany Kaiser e David Carroll às suas mentiras. Em sua opinião, o Facebook foi conivente ou cúmplice da Cambridge Analytica? PEDRO KOS É muito difícil dizer se o Facebook foi conivente ou cúmplice. Primeiro, porque ainda há investigações pelas autoridades americanas sobre o caso e, segundo, porque a tecnologia é totalmente opaca na maneira em que foi utilizada para influenciar populações. E mesmo que não tenha sido conivente, sabemos que o Facebook e outras plataformas e redes sociais, como o Whatsapp e o Twitter, foram usadas por várias entidades para manipular populações de uma maneira individualizada. O que sabemos é que o Facebook foi a cena de um crime que ainda não foi resolvido.
O depoimento do criador do Facebook. Foto: Netflix/Divulgação
CONTINENTENa cena em que Brittany Kaiser explica sua motivação para trabalhar em campanhas de direita após ter colaborado na campanha de Barack Obama, senti um paralelo ao que atestou Edward Snowden ao Guardian – após a vitória de Obama, ele esperava mudanças na NSA, mas o estado intensificou a vigilância. Ela diz que precisava do dinheiro porque a família estava falida, e o governo não ajudou. Você tem uma opinião que gostaria de compartilhar sobre o período de presidência de Barack Obama? PEDRO KOS Como vemos no filme, a Brittany Kaiser começou a trabalhar como estagiária na campanha do Obama em 2008. Essa campanha foi pioneira no uso das redes sociais, ela própria diz no filme “nós [a campanha do Obama] inventamos a maneira como as redes sociais se comunicam com os eleitores”. Obviamente, as técnicas usadas em 2008 foram muito mais básicas e primitivas, mas foram evoluindo rapidamente. O que acho importante entender é que essas ferramentas (o algoritmo, análise de dados pessoais para classificação etc.) não têm partido, não têm ideologia, não têm moral — é simplesmente uma ferramenta. Mas estamos vendo, no mundo inteiro, como essas ferramentas estão sendo usadas para manipular e muitas vezes radicalizar populações, e isso se deve em muito por causa da invisibilidade desta tecnologia e da nossa falta de conhecimento. Temos que ter mais transparência para poder começar a fazer as perguntas corretas, debater sobre as questões morais e tomar as medidas certas para prevenir que essa manipulação e radicalização continue a acontecer.
CONTINENTEEste documentário faz parte de um grupo de outros filmes recentes que tentam explicar a influência das novas tecnologias de informação à política mundial. Qual a importância deste gênero para a documentação histórica do estado do mundo atual? PEDRO KOS O interessante é que, até pouco tempo atrás, em épocas de opressão e grande turbulência, usávamos a ficção científica para nos ajudar a fazer sentido sobre o que estava acontecendo na sociedade. Hoje, parece que estamos vivendo em um conto de ficção científica, então acho que agora cabe a nós contar as histórias reais para exercer essa função de desmascarar o que realmente está acontecendo e abrir nossos olhos para que possamos a começar a questionar.
CONTINENTE A maioria dos brasileiros parece não entender ainda o que faz e representa Steve Bannon, que publicamente ajudou a coordenar a campanha à presidência de Jair Bolsonaro. Quem é Steve Bannon? PEDRO KOS Steve Bannon é um dos maiores líderes e estrategistas do movimento populista de extrema direita que está se propagando pelo mundo. Ele foi um dos fundadores do site de notícias da extrema direita Breitbart News, foi um dos chefes da campanha presidencial do Trump em 2016, também foi vice-presidente da Cambridge Analytica e indicado pelo Trump como conselheiro e estrategista chefe da Casa Branca, onde ficou até agosto de 2017. Hoje em dia, ele está ajudando a montar uma infraestrutura mundial para este movimento. Não sei dizer qual o exato envolvimento que ele teve com a campanha do presidente Bolsonaro, mas é fato que ele foi um grande apoiador da candidatura dele e continua sendo.
CONTINENTEÉ possível educar as pessoas para um tipo de utilização mais consciente das ferramentas de comunicação, como as redes sociais? PEDRO KOS Não só é possível, como é imprescindível! Nós temos que ser educados para ser mais perspicazes sobre a informação que consumimos. E com as tecnologias atuais, a informação se espalha pelo mundo inteiro quase instantaneamente. Então, temos que questionar sempre, pensando antes de postar ou repassar. É muito importante sempre se perguntar qual é a fonte da informação que recebemos. Não quem te mandou, mas de onde surgiu? Foi vetada? Não importa se for de direita ou de esquerda, temos que entender que somos todos persuadíveis e, por isso, temos que ser mais cuidadosos e responsáveis com a informação que recebemos e repassamos.
CONTINENTE Você acredita na possibilidade de regulamentação do uso dos dados de usuários para impedir, de maneira eficaz, os abusos que aconteceram e continuam a acontecer? PEDRO KOS A União Europeia está tentando fazer este tipo de regulamentação com o GDPR. Acho que podemos consertar este problema com uma mistura de regulamentação, educação, transparência, e que a indústria tecnológica, especialmente as grandes redes sociais, repensem seu modelo de negócios. Se essas companhias continuarem lucrando com a exploração e comercialização dos nossos dados pessoais sem nosso conhecimento ou consentimento, nossa manipulação só vai piorar.
YELLOW, designer, linguista, analista de sistemas, professor e músico.