Entrevista

“Nasci com 90 anos, vou morrer bebê”

Na conversa a seguir, o tranquilo e loquaz cantor Ayrton Montarroyos, de 26 anos, escancara opiniões e reflexões polêmicas

TEXTO José Teles

11 de Janeiro de 2022

Foto Luan Cardoso/Divulgação

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Ayrton Montarroyos apareceu para o Brasil por meio de sua participação no reality show The Voice Brasil, da TV Globo, na edição de 2015, quando ficou em segundo lugar na final. Mas iniciou a carreira em 2011, com um show no Teatro Beberibe, no Centro de Convenções de Pernambuco, no Recife. Um ano depois, estreou em disco, participando do álbum 100 Anos de Gonzagão, no qual cantou Riacho do navio (Zé Dantas/Luiz Gonzaga), produzido por Thiago Marques Luiz, com quem tem trabalhado desde então. O mesmo Marques Luiz incluiu Montarroyos num tributo ao centenário de Herivelto Martins, álbum indicado a um Grammy. Ele divide a faixa Dois corações (Herivelto Martins/Waldemar Borges) com a conterrânea Ylana Queiroga. 

Montarroyos construiu uma carreira trafegando por via própria, aberta desde criança. Cresceu escutando a MPB clássica, dos anos 1960 e 70, mas igualmente vozes da velha guarda, como Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Orlando Silva (nos discos da avó). Pop e rock só ocasionalmente, mas sem interesse. Ayrton lançou dois discos físicos, um álbum epônimo, em 2017, e Um mergulho no nada, em 2019.

A pandemia eclodiu quando ele se preparava para cumprir um roteiro de vários shows pelo interior paulista (há alguns anos mora em São Paulo). Impedido de viajar, foi às lives. Mas em estúdio, com as devidas precauções, uma seleção refinada de repertório e virtuosos no acompanhamento. Neste 2021, ele passou a lançar os áudios de algumas lives em uma série de álbuns digitais, parceria com a Biscoito Fino. Um dos mais elogiados foi o que dedicou à música de Caetano Veloso. Outros quatro debruçam-se sobre a música de Lupicínio Rodrigues, Dona Ivone Lara, Tom Jobim e o chorinho. Prestes a retornar aos palcos, sofreu um acidente doméstico que o levou a se submeter a uma cirurgia no braço, em seguida a sessões de fisioterapia e, novamente, a interromper seus projetos de shows.

Entrevistamos Ayrton Montarroyos sobre os discos digitais, mas ele foi além. Articulado, longe do bom mocismo que assola a MPB, todo mundo jogando confete em todo mundo. Critica a música recente brasileira e a tendência de concessões ao hype e a aderir a temas do momento. Mas se derrama em elogios a alguns autores. Atribui despreparo a jornalistas da curadoria do prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e considera o editor da Rolling Stone brasileira, Pedro Antunes, incapacitado para a crítica musical. Na entrevista que se segue, o tranquilo e loquaz Ayrton Montarroyos escancara opiniões e reflexões polêmicas.

CONTINENTE Você é um bloco do eu sozinho da MPB, na medida em que não se liga em tendência nem a sincretismos rítmicos. Tampouco é de muita “brodagem, pernambucano geralmente toca com pernambucanos. No seu trabalho, o sotaque dos músicos é variado. Seu repertório também não percorre apenas trilhas sonoras pernambucanas. Como você traçou este roteiro tão independente para sua carreira?
AYRTON MONTARROYOS Este roteiro independente, acho que não depende tanto de mim, depende do mundo lá fora, este tipo de música que eu ouço dentro de casa, que gosto de cantar, raramente está sendo feito hoje. É difícil, pra mim, achar música pra cantar. Mas no primeiro disco, cheguei a gravar muito compositores pernambucanos, no segundo também, porque tenho acesso a eles. Porque pernambucano detém esta criatividade, esta vanguarda, acho que é uma característica nossa mesmo. Mas por não ter um projeto robusto deste tipo de canção que eu canto espalhado pelo Brasil, acabo participando deste bloco do eu sozinho mesmo, mas não é uma escolha minha. Se pudesse, seria mais alinhado com tudo que está acontecendo; por uma questão mercadológica, inteligente, seria me alinhar a tudo isto. No entanto, até agora, tenho feito minhas escolhas baseadas não no que devia fazer, mas no que quero fazer. Tenho cantado estas canções que participam de outro universo.

CONTINENTE Na seleção das músicas do disco que você dedicou às composições de Caetano, foram escolhidas músicas mais antigas, tem até do LP que ele dividiu com Gal em 1967. Na seleção você e o produtor Thiago Marques pensaram em canções dos mais recentes ou Abraçaço?
AYRTON MONTARROYOS Na seleção das composições de Caetano, a primeira coisa que tive em mente foi pegar música que eu já conhecesse. O disco veio de uma live que fiz. Durante a pandemia, eu fazia toda semana com compositores diferentes e com temas novos, não tive tempo de aprender aquelas músicas, geralmente são muito rebuscadas, tanto letra quanto melodia. Só Clarice tem cinco minutos, e que não repete em momento nenhum a letra. Melodicamente muito complexa, harmonicamente muito complexa. A primeira coisa que pensei era ter canções com as quais eu pudesse facilmente me ligar, porque já conhecia de outros carnavais. Dos discos e Abraçaço, pensei em colocar algumas músicas, só que achei que iriam destoar do universo das canções que eu já havia escolhido, até porque realmente esses álbuns complementam a carreira de Caetano, mas que fazem parte de outro momento também. Não estava querendo abraçar todos os momentos de Caetano, que são muitos, é um artista com tantos anos de carreira, com uma trajetória belíssima, então eu fiquei à vontade para não cantar nada destes dois álbuns. A gente acabou fazendo o que tinha em mãos, e pendeu mais para o universo mais romântico, mais meloso, assim, do Caetano, que talvez não tenha notado tanto no Abraçaço.

CONTINENTE Você é muito rigoroso quanto à identificação com o que você canta. Há, na música atual, novos autores com os quais você se identifique?
AYRTON MONTARROYOS Para falar de vários autores com os quais me identifico, falo bastante de Zé Manoel, é um artista de que eu gosto. Não tenho acompanhado os últimos trabalhos com tanta devoção quanto os outros trabalhos que acompanhava muito, e que escuto até hoje aqui em casa. O João Cavalcanti [ex-Casuarina, filho de Lenine], que é um cantor magnífico, também um compositor muito bom, um sambista de primeira, das antigas, como se fazia antigamente. É muito doido ver um cara jovem portando essas qualidades, no Brasil ser considerado um bom sambista acho uma coisa enorme. João assume este posto. Ylana Queiroga, de quem venho sempre interpretando alguma coisa, quando não é nos shows, é nos meus discos. Tem uma galera preocupada com música que acaba não aparecendo, porque o mercado não permite que a gente se preocupe tanto com música. Aliás, o que menos importa é a música, e sim o entertainer, você tem que trabalhar com o entretenimento das pessoas e não com a estética. Esses compositores passam a não aparecer, ou só aparecem dentro de suas bolhas. Olha que eu sou um pesquisador ávido, estou sempre atento, ouço muita coisa, procuro gente nova com música boa, mas tem sido bastante difícil. Por outro lado, tem uma geração que está fazendo sucesso, que realmente aparece, mas me interessa muito pouco, acho bastante superestimada. Vejo uma galera da minha idade sendo considerada genial, acho muito perigoso dizer que tem gente tão genial, e falo de mim porque já ouvi coisa do tipo. Isto atrapalha no processo da evolução da composição desse pessoal, a gente acaba como mercado de celebridades, de pautas. A música tem que falar de determinados assuntos, não importa se é boa, desde que fale de determinado assunto, ela é tida como boa. Você vê prêmios como o APCA, com jornalistas despreparados, às vezes, para compor júri, ou editor-chefe de revistas grandes, como a Rolling Stone, como Pedro Antunes, que é um total descapacitado para falar de música. Um pessoal que gira em torno do hype, da modinha, de tudo que não é música. Sinto muita falta de bons compositores jovens da minha geração falando do tema de agora tão bem ou melhor do que os compositores do passado. Eu sinto muita tristeza por a gente não poder mandar um Caetano Veloso à merda, um Chico Buarque à merda e dizer: “Senta que chegou nossa vez”. Até agora não pudemos falar isso pra essa galera, que fez isso quando tinha nossa idade com a [geração] de antes, apesar do amor de Chico pelo Noel, do Caetano pelo João Gilberto. Esse pessoal ditou uma coisa nova, mudou a história da música brasileira. Acho que isto não tem acontecido, a gente tá mudando cada vez mais o mercado da música brasileira. Aí você vai ver coisas fenomenais, com Juliette batendo recordes, Anitta batendo recordes, mas musicalmente este pessoal não interessa em nada para a música brasileira. Aí fica muito difícil.

CONTINENTE Você esteve bastante ativo durante a pandemia, com lives muito bem produzidas. Quais seus planos para este momento de reabertura, digamos?
AYRTON MONTARROYOS Foram quase 20 lives ao todo, foi um período em que não parei de trabalhar, eu não tive o tempo para criar as coisas que crio, não estava com saúde, foi um dos momentos mais difíceis, acho que para 90% das pessoas do mundo, mas, graças a Deus, construí uma história, que apesar de ser muito embrionária, já tem o seu espaço. Consegui, com isso, me manter ativo e trabalhando, por uma série de fatores, até um pouco de sorte. Agora está tendo uma reabertura muito tímida, de teatros, eu não vejo muitas condições de trabalho, não tem como ser rentável, pagar para trabalhar, você pega uma casa pequena de 500 lugares, com 100 pessoas, muitas pagam meia, você vai bancar músicos, som, luz, divulgação. Já fiz dois shows presenciais quando voltei, sem depender da bilheteria, ganhei cachês, projetos específicos, que já tinham sido aprovados. Estamos tentando fazer alguma bilheteria em algum lugar, só para não ficar sem cantar, mas também que eu não pague para trabalhar.

CONTINENTE Você começou a gravar em projetos que celebravam Luiz Gonzaga e Herivelto Martins. Na sua adolescência, o rock e o pop nunca lhe atraíram? Ou algum estilo dançante?
AYRTON MONTARROYOS Nasci com 90 anos de idade, vou morrer bebê, porque, a cada ano, fico cada vez mais jovem com o que ouço. Na minha adolescência, era bastante xiita, ouvia música triste, Maysa, Dalva de Oliveira, passando por Chico Buarque, Tom, música francesa, Evinha, mas não ouvia nada do pop, a não o que estourava minha bolha, alguma coisa do Ruge, Babado Novo, com aquela música de Roberto Carlos, coisas pontuais. As coisas do estilo mais dançante, isto ficou a cargo do Carnaval, o frevo já era esse momento de música alegre pra mim. Aquilo me bastava, participava da festa uma vez por ano, que o Carnaval é belíssimo no Recife, e o resto do ano passava ouvindo o que já ouvia. Hoje que estou mais aberto para ouvir estas coisas, me interesso mais por música pop; rock talvez seja um dos gêneros por que eu menos me interesso. Mas isso é muito mutável. Até outro dia, eu não ouvia Elis Regina, uns quatro anos atrás, não suportava ouvir. Hoje é uma das cantoras que mais amo na vida, tenho todos os discos e compactos.

CONTINENTE Você canta autores de gerações privilegiadas. Pelo que você observa dos novos autores, você vislumbra alguns que criarão um repertório que será ainda regravado daqui a 50 anos?
AYRTON MONTARROYOS Não sei. Agora me parece que nada do que eu ouço vai durar mais do que cinco anos. Estou vendo isto há algum tempo. Basta olhar a lista de melhores discos. Entra nos anos 2010, pega uma lista daqui de São Paulo, 70% dos discos, o pessoal não trabalha mais com música. Aquele povo da moda da época, que queria ser famoso, trabalha com música porque gosta de ter seguidor em Instagram, ser influencer, não me causa problema, mas pra música não acrescenta. E acho que não tem possibilidade, fora deste universo, de se ter grandes autores, porque tem um povo extremamente pobre de tudo, que não tem acesso a teatro, a literatura, a artes plásticas, a filosofia, estudos mais elaborados de gramática. É difícil surgir no meio do deserto uma flor; acontece, mas é difícil. Ah, mas tem o Cartola. Mas o Cartola, você tem que lembrar que tem outro Brasil acontecendo, você tinha uma possibilidade de interação entre as pessoas, de ser amigo de Noel Rosa, como Cartola era. Das pessoas encararem a vida de uma forma mais pausada, com tempo para fazer reflexões sobre as questões da vida, sobre o mundo. Hoje temos uma geração hipermega power ansiosa, o tempo é curto, a internet acelera tudo, umas pessoas sem tempo para nada. A boemia é que formava tantos artistas da noite, a ideia do samba, estas coisas perdem um pouco de espaço. Pode ser um problema de visão meu, acabo não vendo nada, ou quase nada, que julgue relevante para daqui a cinco anos estar vivo, obra presente como a de Ary Barroso, do próprio Cartola, do Guinga, deste pessoal que fez história. Paulo Sergio Pinheiro, Aldir Blanc, Sergio Ricardo, Vila-Lobos, Chiquinha Gonzaga, um pessoal que tinha uma preocupação musical estética com o que fazia, uma preocupação que levava aos últimos limites, era aquilo e aquilo; primeiro aquilo, segundo aquilo, terceiro aquilo. Acho difícil que se produza, no mundo, uma realidade possível com capacidade de gerar autores como os dos anos 1950, 60, 70 que viviam outro universo. Espero que a gente tenha uma grande evolução cultural no país, de ensino e de tudo, que esta geração que está chegando venha com tudo e compondo bonito. Que faça coisas novas, nada parecendo com nada antigo, e mandando todo mundo calar a boca, e fazendo música boa. Espero que aconteça que esta música sobreviva pelos próximos 50 anos, e sendo gravada. Mas agora não vejo este mundo ser possível.


Foto: Divulgação

CONTINENTE Cada vez mais o rap ganha espaço ao lado do brega, do funk. Até onde neste cenário musical de letras e harmonias refinadas terão vez?
AYRTON MONTARROYOS Você vai ter um rap muito ruim, um rap muito bom, um funk muito ruim, um funk muito bom, o brega muito ruim e o brega muito bom. De rap, eu não ouço quase nada, mas sei que há coisas importantes. Mais do funk e do brega, como bom pernambucano, e entendo que há coisas que não entendo, e não são menores por isso. Há músicas elaboradas do funk e do brega. O brega acabou como um gênero. Mas será um gênero? Ou temos vários gêneros no brega? O que a Nega do Babado faz é muito diferente do que faz Schevchenko e o Louco. São coisas bem distintas. Vão existir trabalhos elaborados e outros não, mas quando você coloca como uma disputa, o mercado sempre coloca uma coisa em detrimento de outra. Acho que todas perdem, o funk mais ouvido vai ser o pior do funk, o brega vai ser o pior, o mercado faz isto, fica vendo o Ibope das músicas. Imagine o povo carente de tudo, você coloca essa responsabilidade na mão das pessoas, elas ouvem e dançam o que querem. Chega no final de semana, vai ter que ouvir algo que querem que eles ouçam. Por que não uma curadoria em grandes espaços? Por que as pessoas não podem ouvir música como uma forma de educação estética? Por que a arte tem sempre que ocupar este lugar de entreter as pessoas? Por que a música tem que estar em disputa com outras músicas? Se eu gosto de Pixinguinha, isso não me impede de ouvir Luiz Gonzaga, ou a própria Nega do Babado, mas o mercado quer fazer parecer que sim, tudo contrário a isso é elitismo intelectual. A gente vive neste problema, que já é colocado pelo próprio presidente do país. Outro dia, falei com amigos músicos da importância de se ter teatro publico para as pessoas, música o tempo todo. Eles perguntaram que tipo de música. Tipo de Música? É uma pergunta que o Bolsonaro faz, com medo de que uma elite intelectual manipule as pessoas. Todo tipo de música. Agora todos, não só sertanejo universitário e funk, têm sua importância. Nem todo sertanejo deve ser muito ruim, nem todo funk deve ser incrível, mas é saber que as coisas existem e coexistem, tem coisas só pra entreter e coisa pra fruir, e a fruição traz ao homem não só os benefícios da intelectualidade, da capacidade de julgamento, de critério pra vida, mas traz também uma alegria, uma possibilidade de mundo que só existe através dela, então opera em outros espaços que o entretenimento não opera.

JOSÉ TELES é escritor e jornalista especializado em música. Foi crítico de música do Jornal do Commercio de 1987 a 2020 e já escreveu sobre o assunto em diversas publicações do país.

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