Entrevista

“É verdade, eles matam pessoas. Os autoritários em geral”

Diretor irlandês Mark Cousins, que conversou com a Continente, exibe, na ‘Mostra Internacional de Cinema de São Paulo’, seu ‘Marcha sobre Roma’, que analisa a ascensão de Benito Mussolini

TEXTO Mariane Morisawa

26 de Outubro de 2022

Com 57 anos, cineasta britânico já fez dezenas de filmes

Com 57 anos, cineasta britânico já fez dezenas de filmes

Foto Vera de Kok/Wikimedia/Creative Commons

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Mark Cousins é conhecido pelos ensaios
que analisam o cinema. Em Marcha sobre Roma, exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo depois de passar pelo Festival de Veneza, o diretor se debruça sobre os filmes da ascensão do fascismo na Itália – Benito Mussolini conquistou sua posição como primeiro-ministro justamente 100 anos atrás, no dia 31 de outubro de 1922.

A Marcha sobre Roma do título começou de um comício fascista em que Mussolini declarou: “Ou o governo nos é dado, ou vamos tomá-lo marchando sobre Roma”. Quatro dias mais tarde, milhares de camisas-negras estavam andando em direção à capital, um marco fundamental da ascensão de Mussolini. Poucos dias mais tarde, chegava aos cinemas A noi, de Umberto Paradisi, um filme de propaganda que mostra a marcha como algo grandioso e ordeiro. Com a ajuda da pesquisa de Antonio Saccucci, Mark Cousins mostra que não foi bem assim. 

O diretor, nascido na Irlanda do Norte e radicado na Escócia, sempre se interessou pelo assunto, tendo feito outros filmes sobre o nazifascismo e até conversado com Leni Riefenstahl, a cineasta propagandista de Adolf Hitler. Seu Marcha sobre Roma começa com uma entrevista de Donald Trump na qual ele cita Mussolini. O documentário fala sobre o passado, mas demonstra como a estética e a retórica fascista está presente nos dias de hoje. 

Na conversa com a Continente, durante o Festival de Veneza, em setembro, Cousins emocionou-se ao comentar alguns dos discursos correntes, inclusive no Brasil. E demonstrou preocupação com as eleições italianas – que aconteceriam dali a alguns dias e terminariam com a ultradireitista Giorgia Meloni sendo eleita primeira-ministra – e com as brasileiras, perguntando à reportagem se havia esperança.

Além de Marcha sobre Roma, Cousins tem outros dois filmes na mostra paulistana, que vai até 2 de novembro: Meu nome é Alfred Hitchcock e As tempestades de Jeremy Thomas. Confira nossa conversa a seguir. 

CONTINENTE Quanto esses filmes de propaganda são parecidos entre si?
MARK COUSINS São muito parecidos, todos eles são arrogantes. Eles empurram suas versões da história. Deixam muitas coisas de fora, tudo o que é inconveniente. Todos tentam ser uma espécie de mitologia, ao invés de algo mais honesto. Alguns dos cineastas são melhores – como Leni Riefenstahl, extremamente talentosa, Eisenstein, extremamente talentoso. Paradisi não é muito talentoso, mas A noi teve um grande impacto porque estava nos cinemas três dias depois da Marcha sobre Roma. E então foi um filme influente, porque mostrou que não é preciso ser muito talentoso para contar uma história que pega pela emoção e que muda a cultura política.

CONTINENTE Você acha que, hoje em dia, esse papel está sendo desempenhado nas redes sociais?
MARK COUSINS Sim. No passado, essas mentiras se espalhavam muito lentamente. Agora, por causa das redes sociais, elas queimam uma floresta inteira muito rapidamente. E essa floresta é o que concordamos como seres humanos, como compartilhamos nossos espaços e nosso cuidado com as minorias e as diferenças e como cuidamos dos mais fracos da sociedade. O preocupante é que esses acordos podem ser queimados rapidamente por um Trump ou um Bolsonaro. E leva muito tempo para recuperar a floresta, isso é muito triste. Eu tenho certeza de que você sabe. Eu conheço um pouco do cinema do seu país, e muito estrago já foi feito com a Cinemateca e coisas assim. 

CONTINENTE É como se algo se quebrasse que é difícil reparar, certo?
MARK COUSINS É fácil de quebrar. Se sua mensagem é: “Você é uma vítima, e essas pessoas fizeram com que você fosse uma vítima, elas são o inimigo”. Isso é assustador. “Você está dentro da Cidadela, eles estão do lado de fora tentando entrar.” Essas mensagens são muito simples e poderosas. Você diz à população: “Você está de joelhos, mas posso torná-lo grande novamente”. Todas essas são frases mitológicas e se espalham muito rapidamente. Mas sabemos que muitas pessoas se machucam ou morrem como resultado desse tipo de linguagem. 

CONTINENTE Donald Trump e Jair Bolsonaro repetem slogans do nazifascismo. E quase ninguém sabe disso.
MARK COUSINS Aqui na Itália, os avós dos jovens viveram a era Mussolini. E se lembram. Mas eles morrem e não podem transmitir todo o seu conhecimento. Assim a sabedoria se perde. E isso significa que, depois de um tempo, novas pessoas aparecem e contam a velha história fascista, que soa fresca, é mais excitante do que o liberalismo chato, onde tudo tem que ser discutido. Eu enviei este filme para Michael Moore. Ele me disse que gostou muito e falou: “Eles sempre falham, mas matam milhões antes de falharem”. É verdade. Eles matam pessoas. E não é só a extrema direita, a extrema esquerda também comete atrocidades. Os autoritários em geral. 

CONTINENTE Acha que o filme pode contribuir?
MARK COUSINS A imprensa italiana de direita foi realmente dura com o filme. Eu amo o cinema, mas não quero ser um propagandista tentando mudar o mundo com um filme. Só que vários jovens que se politizaram por causa da crise climática ou dos direitos LGBTQIA+ vieram, interessados em saber de onde vêm os discursos. Então um filme como este pode ter valor em juntar os pontos. Vários vieram depois das sessões me dizer que havia algum valor. Então tenho uma esperança modesta de que Marcha sobre Roma pode ajudar a informar. 


Cena do filme Marcha sobre Roma. Imagem: Divulgação

CONTINENTE Tem esperança com os jovens?
MARK COUSINS Sou um otimista. Martin Luther King disse que o arco do universo moral é longo, mas se inclina para a justiça. E acho que está certo. Há exceções, claro. Mas, no geral, em muitos lugares do mundo, as crianças não são mais exploradas para o trabalho. Há várias áreas em torno dos direitos humanos, da igualdade ou da deficiência e neurodiversidade, onde as coisas estão avançando. Então acho que as coisas estão melhorando um pouco.

CONTINENTE Entre os filmes de propaganda, você colocou lado a lado Leni Riefenstahl e Sergei Eisenstein. Acha que existem diferenças entre os dois?
MARK COUSINS Sim. Filmes de Eisenstein como A greve e O encouraçado Potemkin são muito ideológicos. São muito pró-soviéticos. São brilhantes, mas perigosos de alguma forma. E, claro, tudo o que Leni Riefenstahl fazia era perigoso. No entanto, Eisenstein mudou. Olhe para seu trabalho posterior, ele se tornou um humanista. Seu complexo trabalho posterior é realmente valioso. Ele estava ouvindo e aprendendo com sua própria experiência no México e tal. Leni Riefenstahl? Nem um pouco. Ela disse que não sabia sobre as câmaras de gás – e sabia. Mas, mesmo depois de tudo, olhe para seu trabalho posterior com os Nuba na África. É exatamente no mesmo estilo. Câmera baixa, homem nu, heroico, clássico. Eisenstein passou por um período de dúvidas. Ele estava constantemente atualizando seu senso de como é estar vivo. Ela, não. E eu a conhecia, falei com ela ao telefone algumas vezes. Ou seja, há uma diferença. 

CONTINENTE Acredita que esses líderes de extrema-direita, seja Mussolini e Hitler, ou os de hoje, têm traços em comum?
MARK COUSINS Definitivamente há um tipo. É por isso que eu faço a piada sobre o Viagra no filme, eles provavelmente têm paus muito pequenos. Tenho certeza de que o de Bolsonaro é absolutamente minúsculo. Mas eles precisam constantemente de afirmação, não se sentem confortáveis ​​em sua própria pele, precisam ver grandes prédios e grandes multidões, e falar sobre grandeza e ver o número de seguidores no Twitter. Eu sei que Trump teve problemas em sua infância, mas, infelizmente, ele chegou a um lugar de poder onde poderia representar seu drama e prejudicar sua nação. Tenho certeza de que alguns dos outros líderes são semelhantes. Esses homens perigosos, sua falta de confiança ou sua carência, sua constante fome por uma posição, estão prejudicando as pessoas. 

CONTINENTE E eles passam para seus descendentes.
MARK COUSINS Não só. Eles transmitem também para a cultura. Legitimam certos tipos de comportamento, como mentir, intimidar, se gabar. Eles meio que tornam aceitável que outras pessoas façam isso. E isso é horrível. 

CONTINENTE Crescendo no Brasil, era comum ouvir piadas machistas, homofóbicas, racistas. São coisas que considero inaceitáveis hoje. Mas muita gente, inclusive próxima, diria: “Não podemos falar mais nada, porque essas pessoas não deixam”.
MARK COUSINS (Cousins começa a chorar) Foi o que eles disseram em 1922. É muito comovente. Foi o que disseram em 1933, na Alemanha. Eu fiquei assustado porque todos os jornalistas italianos me perguntaram sobre Giorgia Meloni. E eu poderia ter ficado quieto, sou apenas um estrangeiro, que fez um filme sobre este lugar. Disse que sei que não sou italiano, não vou votar nesta eleição, mas essas são as razões pelas quais ela é assustadora e essas aqui são as pessoas que eu acho que ela vai machucar. Ela vai piorar a vida deles. E vocês, se não concordam com ela, levantem-se e falem, porque são muitos. Podemos voltar aos exemplos anteriores de protofascismo e ver a descida ladeira abaixo. É preciso fazer o que puder para parar a derrocada, pelo bem dos outros. Porque, mesmo se nós não formos machucados, outras pessoas serão. 

CONTINENTE Você se emocionou agora. Está preocupado com o que está acontecendo?
MARK COUSINS Sim. Apesar do arco moral, não estamos em um bom lugar. Eu não gostaria de ser deficiente, ou islâmico, ou gay na Índia. Eu não gostaria de ser uma minoria na Rússia ou no seu país. São as pessoas invisíveis que estão feridas. Isso é muito ruim.

MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Morou em Los Angeles por sete anos e cobre festivais em todo planeta.

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