Entrevista

“Como seres humanos, a gente só aprende perdendo”

Bicampeão mundial de ondas gigantes, o surfista pernambucano Carlos Burle fala sobre a carreira, o fim do preconceito com o esporte e o desequilíbrio ambiental nos mares

TEXTO Débora Nascimento

24 de Janeiro de 2020

Carlos Burle começou sua carreira nas águas de Boa Viagem e Piedade

Carlos Burle começou sua carreira nas águas de Boa Viagem e Piedade

FOTO Marcelo Maragni /Red Bull Content/Divulgação

[conteúdo extra à reportagem Um lugar ao sol]

A frase contundente refere-se ao fato de
não estarmos cuidando do meio ambiente, em especial, do mar, lugar que é, ao mesmo tempo, ambiente de trabalho e diversão do surfista Carlos Burle, autor da frase acima e que concedeu entrevista à Continente para a reportagem de capa do mês de janeiro, sobre a história social da praia.

Burle é uma das pessoas que vivem da praia e, nesta conversa, fala sobre como começou sua relação com as águas e sua paixão pelo surfe, que o levou a bater alguns recordes de sua carreira, inclusive surfar uma onda estimada em 32 metros de altura em Nazaré, Portugal. Na cidade, que é meca das ondas gigantes, viveu outro momento marcante de sua carreira, quando salvou da morte, no mesmo dia, em 2013, a surfista Maya Gabeira.

No começo dos anos 1980, o pernambucano era assíduo frequentador das ondas de Piedade e Boa Viagem, que hoje não podem mais ser surfadas devido aos ataques de tubarão, provocados pelo desequilíbrio ambiental causado pelo homem. Em 1986, Burle passou a morar no Rio de Janeiro e a participar de competições nacionais e internacionais, que levaram seu nome a figurar dentre os maiores do surfe no mundo.

CONTINENTE Como começou sua relação com o mar?
CARLOS BURLE Minha relação com o mar começou muito cedo. Como eu não dormia direito, minha mãe me levou para o mar, porque o pediatra da família estimulou ela a fazer isso. “Leva ele pra tomar banho de mar porque aí ele vai dormir bem.” Eu tinha dois anos de idade, morava numa granja na cidade do Cabo de Santo Agostinho. E minha mãe não conseguia me deixar sozinho à noite, porque eu não dormia, ficava acordando a noite toda, ansioso, aquela coisa de bebê, muita energia. O médico falou, “leva ele pra água. Dá uma canseira no menino.” E foi aí que começou minha relação com o mar. E realmente até hoje eu tenho essa necessidade de troca de energia com o mar. E de ir na praia, esvaziar um pouco a minha cabeça, reciclar meus pensamentos, lavar a minha alma. Gosto muito desse ambiente. Eu ia para a Praia de Muro Alto. Família, amigos, a gente frequentava essa praia.

CONTINENTE E como começou a relação com o surf?
CARLOS BURLE Em 1980, eu passeava na praia de Boa Viagem, quando vi uma cena. Eram quatro garotos carregando quatro pranchas, só de shorts, bronzeados, todos coloridos. Aí eu falei assim: quero fazer esse esporte, porque aquela pra mim era a imagem da liberdade. Era um movimento de rebeldia, contracultura. E o surf, naquela época, pra mim, já sinalizava isso, porque eu sempre achei a sociedade muito quadrada, preconceituosa, hipócrita, e o surf, de certa forma, me levava ao ambiente que eu mais gostava, que era o da liberdade, de estar perto da natureza, de estar em ambientes saudáveis. Eu tinha 12 pra 13 anos.

CONTINENTE E a primeira prancha?
CARLOS BURLE A primeira prancha veio de um primo, Claudio Cardoso, que me emprestou. Eu estava fazendo umas tentativas naquelas pranchas de isopor. E esse primo disse: “eu tenho uma prancha de fibra, era uma prancha que tinha um raio”. Nunca vou me esquecer. Ele me empresta essa prancha e eu pego a primeira onda em pé, e ali eu já me apaixono e acho muito legal. Era em Piedade. Tinha uma turma legal que pegava onda. Era uma vida muito saudável, a gente jogava vôlei na praia, andava de patins, surfava. Depois passei a gostar muito e comecei a desenvolver a técnica. Seis meses depois, eu estava surfando em eventos. Participei de um evento no Acaiaca, fiquei em sexto lugar e fui a revelação.

CONTINENTE Quando foi que você decidiu morar no Rio?
CARLOS BURLE Fiquei boa parte da minha adolescência e até os 18 anos de idade no Recife. Em 1986, vim para o Rio de Janeiro, onde estou morando desde então. Passei uma temporada na casa de um primo, Pedro César, que disse: “Poxa, se quiser viver de surfe, tem que vir para o sudeste, porque tem mais patrocinadores, o nível de surf é melhor, tem mais campeonatos”. E eu vim atrás do meu sonho, incentivado por esse primo. Vim morar com ele e a mãe dele, Tia Rosa, em Ipanema. Foi um trauma, viver num lugar mais tranquilo e chegar no Rio de Janeiro. Nunca tinha andado num túnel. Mas me adaptei, consegui meu espaço, patrocínio, evento. Fiz viagem para o exterior. Nesse mesmo ano, resolvi vender tudo e inclusive um carrinho que meu pai tinha me dado, um fusquinha, e fui para o Havaí, na temporada 1986 e 1987, no final de ano. Fiquei cinco meses, aí me apaixonei pelo surf de ondas grandes. Prometi que eu ia voltar sempre. Terminei virando um profissional de ondas grandes.

CONTINENTE E você bateu recorde com elas.
CARLOS BURLE Bati um recorde 2002, que até foi um amigo meu que me puxou na onda, Eraldo Gueiros. Já era uma época mais contemporânea onde a gente usava o jet ski pra pegar as ondas grandes. Fui campeão mundial em 1998 e o recorde foi no final do ano de 2001. E foi uma carreira de muito sucesso, minha e do Erado, conquistando vários títulos, quebrando recordes, revolucionando o esporte. Aí o esporte entra nas Olimpíadas. A gente conquistou muita coisa. O esporte tem fases, depois ele fica mais forte na remada, mas aí volta o tow-in, aí hoje tem piscinas artificiais, vai pras Olimpíadas também. O surf é mais que um esporte, é uma cultura, um estilo de vida. Ele vai agregar de várias formas, não é só um esporte de performance, a gente eleva a qualidade de vida, a saúde, sustentabilidade, preocupação com as relações, com o meio ambiente. É legal isso, porque eu venho de uma fase que existia muito preconceito com o esporte. Hoje a gente vê que o esporte tem uma imagem boa, que no Brasil temos três brasileiros que podem ser campeões mundiais novamente. Temos excelentes representantes em todas as categorias. O esporte cresceu muito no Brasil e no mundo. E eu fico feliz de ter acreditado. Acreditei no meu sonho. Essa é uma vida que pra mim faz sentido. Lugar democrático, não é um lugar que você fica longe das pessoas, você fica próximo das pessoas, não é uma quadra, não é um lugar que você fique isolado, como a fórmula 1, não é um camarim, uma sala, é ali na praia, onde você pega onda do lado do teu ídolo. Você convive com as pessoas normalmente. O surf é o maior barato. É um esporte transformador, você tem que ter muita dedicação, muito foco, muita consciência, muita humildade. Mais de 90%, você está à procura, à caça da onda e pouquíssimo tempo você fica em pé na prancha. Mas é de um aprendizado enorme para a nossa vida. Eu gosto muito disso. É um esporte muito interessante. É um esporte muito especial mesmo. O mar lava a alma.

CONTINENTE A que se deve essa transformação que ocorreu no surf?
CARLOS BURLE Infelizmente hoje você respeita quem ganha dinheiro. A gente vive numa sociedade onde as pessoas têm valores, mas o sinônimo de sucesso é o acúmulo material. Se você começar a ganhar dinheiro, então você começa a ser respeitado, e o esporte realmente começou a mostrar que era um esporte sustentável financeiramente. Hoje a gente vê famílias que estimulam os filhos a virarem surfistas profissionais, porque eles vão terminar sendo provedores da família. Sendo um bom surfista, sendo talentoso, tendo uma cabeça no lugar, uma carreira próspera, você consegue se sustentar financeiramente, criar seus filhos. Meu caso é bem isso. Minha filha hoje está numa faculdade de medicina na Europa. A gente pode prover pra eles saúde, educação, estrutura. Comecei a perceber que a sociedade se curvou ao esporte por causa disso. Honestamente você compra qualquer coisa na sociedade que a gente vive hoje, né? Se tem dinheiro, todo mundo aceita, pode até ser um cara corrupto. Pode não ter o mesmo valor. O cara é milionário, vão achar que o cara é bem-sucedido. Infelizmente a gente ainda tem esse problema de distinguir os valores verdadeiros dos valores materiais. Então, os meninos Gabriel Medina e Ítalo têm patrocínio de banco, empresa de telefonia montadores, canais específicos, então vira uma indústria. A indústria do surf hoje é uma indústria rica, e é lógico que a sociedade tende a aceitar melhor isso. Antigamente a gente era visto como vagabundos que iam pra praia pra dizer que eram profissionais. Hoje, não. Dizem “os caras vão treinar”. Tem circuito mundial, ganham dinheiro.

CONTINENTE Como no futebol, o surfe também uma idade limite para parar?CARLOS BURLE Não tem uma idade estabelecida, vai depender da performance de cada atleta, ele pode ter uma longevidade maior, se ele se cuidar mais. Tem o Kevin Slater, que está aí com 47 anos e continua competindo. Eu parei em 49 anos. Mas estou com 52 e estava pegando onda grande em Nazaré (Portugal). É lógico que a nova geração vem mais preparada mais jovem, isso é fato natural do esporte.

CONTINENTE Em Nazaré, uma onda que você pegou foi estimada como a maior onda já surfada.
CARLOS BURLE Um oceonógrafo mediu minha onda como a maior onda surfada, até então, só que ela não foi catalogada. Mas foi medida em 32 metros. Ela não foi catalogada porque, você surfa uma onda hoje e só dão o resultado um ano depois. Na verdade não existe um método de você medir as ondas perfeitamente. Então só quem tem o direito de homologar isso é a World Surf League. Eles que têm o poder de dizer que tamanho é. Eu tenho certeza que um dia eles vão aprender a medir de verdade as ondas. O cara vai surfar e vai saber exatamente no momento que tamanho é aquela onda. Assim como a gente corre e sabe a velocidade que a gente conseguiu alcançar e o tempo.

CONTINENTE Você se sente injustiçado por isso?
CARLOS BURLE Eu tenho uma postura que aceito tudo, eu estava no lugar certo na hora certa e a gente fez um resgate que era super-complicado. A Maya (Gabeira, salva por Carlos Burle) hoje está bem. Não tem nenhuma sequela. Eu entrei no mar depois disso tudo e peguei a maior onda da minha vida. E sou muito grato. Não fico olhando pelo lado da gratidão.

CONTINENTE Depois que você sofreu um acidente sério em julho de 2019, ficou com medo de entrar no mar?
CARLOS BURLE Eu tive trauma físico e psicológico principalmente daquele lugar (Ilha Mãe, na Baía de Guanabara, em Niterói, onde bateu a cabeça numa pedra e ficou desacordado). Mas eu tenho uma relação muito boa com o mar. Lógico que entendo que estou ficando mais velho, que eu preciso usar mais a minha experiência do que a minha força física. Sempre tenho medo de entrar no mar para surfar. Faz parte. Acho que isso é normal. É importante você saber administrar suas emoções. E usar o medo pra gerenciar os riscos, porque você consegue ter uma leitura do ambiente e administrar melhor os riscos. É lógico que a gente tem prazer no que faz. Eu geralmente comemoro quando a onda acaba, não durante a onda. É um momento onde você tem muitas emoções ao mesmo tempo, mas você tem que estar superpresente, porque precisa estar presente. Você está tomando decisões em frações de segundos com risco de acidentes. Quando você consegue estar presente, você não perde a consciência, você fica mais tranquilo, então fica mais fácil de reagir, se dar bem.

CONTINENTE Quais sensações e sentimentos que o mar te traz?
CARLOS BURLE O mar traz paz, quietude, contemplação, gratidão pela vida, humildade. O mar é muito poderoso. Sempre aprendi muito com o mar. Sempre que estou perto do mar sinto tudo isso. É vida, purificação. O mar é tudo. Espero que a gente possa retribuir, como seres humanos, à altura. Que o ser humano pare de jogar lixo nos mares, rios e lagoas. Que a gente vá para um momento na vida da gente, que repense os nossos valores, que a gente consiga cuidar do nosso meio ambiente, como a gente deveria cuidar da nossa casa e do nosso corpo. Eu tenho certeza que a gente está indo para esse lugar. Como seres humanos, a gente só aprende perdendo. Como a gente está perdendo qualidade de vida, as novas gerações vão ter outros valores, vão ter uma consciência diferente do que a gente tem hoje.

CONTINENTE Qual o seu sentimento ao saber que a praia de Boa Viagem, onde surfava quando jovem, não pode mais ter surf?
CARLOS BURLE Eu fico triste com o que aconteceu com a praia de Boa Viagem, porque eu tinha a liberdade de ir e vir, de entrar no mar e sair, sem nenhuma preocupação durante o dia e à noite. Não tinha medo nem passava isso na minha cabeça. Nadava lá por fora dos arrecifes. Então eu fico triste, porque é um impacto social e impacto direto no esporte. E quando você vai procurar a causa disso, sabe que é um desequilíbrio. A gente não tem mais a fonte de alimentos que os tubarões tinham no Porto de Suape. Esse problema começou a se intensificar depois do Porto de Suape, que era uma fonte de alimentos para várias espécies marinhas, um estuário incrível, um manguezal incrível, um manguezal perfeito, uma linha reta de corais que era um monumento da natureza e a gente não conseguiu entender que essas coisas têm muito valor. Então o ser humano vai lá, interfere, desequilibra o meio ambiente e provoca o que está acontecendo hoje. Mas eu vejo isso também como fatalidade. Como pragmatismo, não quero ficar procurando culpados, nem culpando a sociedade. Os seres humanos somos nós. E a gente está aprendendo. Vamos ver o que a gente aprende com isso. Vamos reverter esse quadro. O polo de surf hoje mudou para o litoral sul, na região de Porto de Galinhas. Acho que é o maior polo de surf que tem no estado de Pernambuco, e um dos melhores. E, com certeza, excelentes surfistas vão sair de lá, já saíram, vão continuar a sair. E vão representar bem o estado e o nosso país pelo mundo afora.

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