“A gente só abre a cabeça e evolui com arte, cultura e educação”
Conhecida por papéis em filmes como ‘Que horas ela volta?’ e ‘Bacurau’, Karine Teles detalha suas personagens e conta sobre ser atriz e seu caminho até poder pagar as próprias contas
TEXTO Fernando Silva
19 de Maio de 2022
Foto Camila Marchon/Divulgação
[conteúdo exclusivo Continente Online]
Karine Teles quebrou o muro que a separava do reconhecimento na profissão falando de agruras, dúvidas e sonhos em torno do ofício que escolheu. Em Riscado (2011), ela interpretava justamente uma atriz que, para pagar as contas, fazia de tudo um pouco enquanto perseguia a chance de se destacar no papel em um filme e, assim, vingar na carreira: entregava panfletos de festas em bares, cantava em inaugurações de lojas e se vestia de Marilyn Monroe, Carmen Miranda e Bettie Page para eventos e aniversários. Era uma história de cinema que, na vida real, virou um roteiro de sucesso. Com o filme, viajou ao exterior e ganhou prêmios, entre os quais, o de melhor atriz em Gramado (2011) e no Festival do Rio (2010).
Se o dia de glória havia chegado, lá se iam quase duas décadas em busca dele. Karine tinha começado nos palcos de Maceió (AL) – cidade onde a família morou de 1993 a 1996 –, retornou ao seu estado natal para estudar interpretação teatral na UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) e vinha, desde então, tentando driblar dificuldades financeiras e deixar para trás a angústia de não saber se o caminho das artes cênicas era mesmo para ela. Estava em fase de desânimo quando, inspirada na própria situação, encontrou, enfim, a fresta de que precisava para mostrar um talento que parecia eternamente relegado ao anonimato.
A partir de Riscado, se impôs e virou figura de destaque na indústria audiovisual brasileira, tanto em filmes quanto em séries. É ela a atriz de Petrópolis que dá vida à patroa de Que horas ela volta? (2015), à forasteira de Bacurau (2019) e à mulher em situação de rua em Manhãs de setembro (2021) – série com a segunda temporada já confirmada para este ano. Também pode ser vista em produções próprias, que levam sua assinatura no roteiro, casos de Benzinho (2018) e Os últimos dias de Gilda (2020).
Em entrevista para a Continente por videochamada, ela repassa toda a sua trajetória e lembra o que costumava ouvir nos tempos de “perrengue”, como chama a época em que buscava ser uma atriz reconhecida. Conta ainda curiosidades e detalhes de personagens e trabalhos da carreira.
Agora, aos 43 anos e escalada como Madeleine para o remake da novela Pantanal, na Globo, explica estar aprendendo os segredos da televisão. Mas já achou a brecha para trabalhar à sua forma o papel que foi de Ítala Nandi na versão original, da Manchete, e herda de Bruna Linzmeyer na primeira fase do folhetim global. “Quando entendi uma possibilidade de modus operandi, comecei a curtir e a me divertir”, diz.
E os planos não param por aí. Diretora de dois curtas, Otimismo (2015) e Romance (2021), ela prepara sua estreia no comando das câmeras em longas-metragens. Sentada no sofá de sua casa, no Rio de Janeiro, Karine fala de Princesa, filme com o qual pretende “furar a bolha” e discutir relações amorosas e possibilidades de afeto livre; de que forma lida com o Instagram no dia a dia e como vê o próprio corpo nas telas da TV e do cinema. Mãe de dois meninos, Francisco e Arthur, de 11 anos, discute ainda sobre a maternidade real e a da ficção, demonstra seu amor por Andréa Beltrão e se emociona ao comentar a atual situação do cinema brasileiro.
CONTINENTE Você postou outro dia no Instagram que Riscado o filme mais importante da sua vida. Por quê? Queria que contasse um pouco do que vivia à época e de como surgiu a história.
KARINE TELES O Riscado é o filme mais importante da minha vida porque, de alguma maneira, é o filme que fez a minha carreira no cinema existir. Comecei a estudar e a fazer teatro aos 14 anos, quando morava em Maceió – no curso técnico da UFAL [Universidade Federal de Alagoas]. Daí fiz vestibular, vim morar no Rio pra estudar teatro e passei muito, muito perrengue. Eu estava num momento barra pesada, de cansaço, um pouco antes da ideia do Riscado. Já tinha mais de 10 anos de carreira e não conseguia pagar as contas sendo atriz. Sabe aquele momento em que cortam tua luz? E meus pais sempre deixaram claro certa decepção de eu não ter escolhido algo mais promissor financeiramente, mais estável. Acho que esperavam que fizesse Medicina, Direito. E eu já estava meio: “Putz, será que meus pais estavam certos? Será que dei mole, que essa carreira não é pra mim? Será que estou fazendo alguma coisa errada?”. Na época, era casada com o Gustavo [Pizzi] e lembro que saiu a notícia de um concurso público pra Ancine [Agência Nacional do Cinema]. Como sempre fui muito boa aluna e falo inglês, pensei: “Vou fazer esse concurso e viver de emprego público”. Mas o Gustavo disse: “Se você fizer isso, eu me separo porque não casei com uma funcionária pública. Não sei quem você vai virar”. Dessa angústia profunda, dessa dúvida com a carreira, que o Gustavo compartilhava comigo – ele tinha começado a estudar cinema, não tinha terminado a faculdade e também estava num momento de incerteza –, surgiu o roteiro. Era pra ser um curta, acabou virando longa e aí aconteceu de a sessão no Festival do Rio ser uma catarse coletiva. A partir do Riscado, que viajou a um monte de festivais internacionais e do Brasil, comecei a ser chamada para outros trabalhos e a desenvolver projetos. Minha carreira no cinema começou ali.
CONTINENTE Quando você finalizou e lançou o filme, imaginava reconhecimento?
KARINE TELES Não. Era só uma vontade de fazer, de entrar no mercado. A gente filmou Riscado em 2009, 2010 e lançou em 2011. E eu nunca tinha escrito, mas achava que conseguiria fazer um roteiro – o Gustavo foi fundamental nessa colaboração, em muitos aspectos. Então, a gente queria realizar alguma coisa e entrar no circuito, pras pessoas verem que a gente existia. Eu vinha de muitos anos fazendo teatro, passando perrengues. E não estou glamourizando isso, não. Acho uma porcaria, uma merda que a gente ainda passe por isso no nosso país: fazer espetáculos maravilhosos em que, às vezes, tinham duas ou três pessoas na plateia. Porque a gente não tinha grana pra divulgação ou porque, sei lá, não conseguia chegar às pessoas. Isso estava chegando num ponto de me levar a desconfiar que talvez estivesse no caminho errado. Falava: “Gente, não é possível!”. E conheço muitas pessoas talentosérrimas, inteligentérrimas que desistiram mesmo ao longo do caminho.
CONTINENTE Nesse ponto é justo dizer que o filme fala um pouco do que é tentar viver de arte no Brasil?
KARINE TELES Sim. Porque é aquela história: quando você fala de dentro, a chance de você alcançar muita gente é maior. Às vezes, achamos que só nós estamos sentindo aquilo, vivendo aquilo, sofrendo aquilo. E não é. Cada pessoa é única, mas as questões são muito coletivas. Claro que [o filme] nasceu de uma angústia pessoal minha e do Gustavo, mas a gente queria muito falar dessa escolha, de viver do que escolheu. Então, aplica-se a várias outras profissões. Lembro que, na época, o irmão do Gustavo trabalhava com cozinha e ele assistiu ao filme e se identificou. Falou: “Cara, é o perrengue que eu passo também”. É uma questão muito comum.
Cena da atriz em Riscado. Foto: Divulgação
CONTINENTE Tem uma hora no filme que a tua protagonista está pagando o aluguel do imóvel em que mora e escuta da proprietária, interpretada pela Gisele Fróes, que há um tempo pra sonhar, mas uma hora ele acaba e é preciso ter responsabilidade. Você chegou a ouvir isso?
KARINE TELES Eu ouvi muitas coisas, muitos conselhos do que deveria fazer para conseguir uma carreira, coisas com as quais nunca concordei. Senti que as pessoas me achavam um pouco ridícula, de “desperdiçar minha inteligência”, sabe? O elenco todo de Riscado tinha passado por aquelas situações de uma maneira ou de outra. A Gisele também, que é uma atriz genial, e improvisou muitas daquelas falas. Dizia: “Vou aproveitar pra botar na boca dessa personagem um monte de coisa que eu já ouvi”. O Lucas Gouvêa, que faz o chefe da firma de divulgação de eventos, também. Eu acho que os artistas não são respeitados no nosso país até hoje. Dá a sensação de que as Biancas [nome da personagem de Karine] vão continuar existindo por um bom tempo.
CONTINENTE Você costuma buscar inspiração em questões da própria vida em suas produções, como em Riscado e em Benzinho. Isso é fundamental pra você?
KARINE TELES Ah, sim. Como roteirista, como criadora, a minha principal fonte de desejo criador é pessoal, a partir das coisas que estou vivendo e observando porque não sou uma roteirista “profissional”. Nunca estudei roteiro, eu não tenho uma formação. Minha experiência como roteirista é bem menor do que a minha experiência como atriz. Mas quando tem algum assunto que acho que me move, e sinto que não há uma discussão a respeito dele, isso me motiva a escrever projetos e a pensar em coisas. No Benzinho, por exemplo, eu queria muito falar desse momento da transição, da saída do filho de casa, só que sob a ótica da mãe. Porque a gente vê muito filme desse rito de passagem, mas tem só a mãe chorando, no máximo. Até no Boyhood [:da infância à juventude] – um filme que eu amo –, tem uma cena lindíssima, mas é uma cena assim. À época, eu era uma mãe recente, essa questão bateu muito em mim e fiquei com vontade de falar sobre isso. Por enquanto, é a melhor forma de me botar disponível pra acessar a criatividade e conseguir desenvolver projetos. Não sei se no futuro eu vou ser capaz de escrever uma obra de ficção sobre um camponês do século XVIII. Talvez. Não sei. Mas, por enquanto, eu acho que não.
CONTINENTE Benzinho tem como tema principal a maternidade e a família, mas você também é mãe em outras produções, como o curta-metragem Quinze e as séries Os últimos dias de Gilda e Manhãs de setembro. Pra você, o que significa interpretar mães tão diferentes?
KARINE TELES Acho que tem duas coisas aí. Uma expõe muito a nossa sociedade, nessa constatação de que uma mulher da minha idade, com minhas características físicas, serve basicamente pra interpretar mães. Só que, como mãe, feminista e pessoa que acredita que tem de transformar muita coisa ainda na sociedade, acho que a discussão da maternidade e da mulher dentro da maternidade está muito atrasada e precisa evoluir. Então, a gente precisa falar muito sobre ela. Eu fiz mães muito diferentes, realmente. Em algumas dessas personagens, a maternidade é só um detalhe, em outras, a maternidade é a força motriz. E acho que tenho tido muita sorte com os projetos pros quais sou convidada. Cada vez mais entendo, junto com as pessoas que estão me chamando, qual é a discussão, do que se está falando. Mas não tem volta, talvez eu interprete mães pra sempre. Daqui a pouco, vou começar a interpretar avós [risos].
CONTINENTE Você já falou sobre a complexidade de emoções do dia a dia que a maternidade carrega e que ser mãe é algo meio solitário. Como é criar seus filhos, dois meninos, nesse Brasil atual?
KARINE TELES É engraçado porque eles nasceram em 2011, né? Eu engravidei em 2010. Era um momento em que a gente estava no auge da euforia. Eu e Gustavo decidimos engravidar porque achava que o mundo estava melhorando mesmo. A sensação era essa. Era um momento muito legal na história do Brasil, com muitos avanços. E daí a coisa começou a degringolar. Mas tanto o Gustavo quanto eu temos uma presença e uma comunicação com os nossos filhos – claro que com um milhão de falhas, a gente erra com constância –, e um desejo de criar esses dois meninos dentro da responsabilidade que é criar dois meninos brancos e, no caso deles, cheios de privilégios. Às vezes, a gente até exagera, eu acho. Com 11 anos de idade, eles [Francisco e Arthur] têm uma consciência política que eu fui ter quando estava na faculdade, por exemplo. Têm uma cultura cinematográfica – a gente faz esse trabalho cinematográfico, musical e artístico com eles, de ir a exposição, assistir a um monte de filme – que fui ter lá no final da adolescência. A gente tenta escolher escolas que têm uma visão menos dogmática da educação, que não enxergue a escola como máquina de moer gente. Falo com eles de como têm, sim, mais responsabilidade do que outras pessoas porque nasceram numa situação de privilégio, são dois meninos brancos e não podem contribuir com todo o horror histórico. Ao mesmo tempo, sinto que tem uma geração, antes até da dos meus filhos, pessoas por volta dos 20 anos, que me dá esperança e me deixa otimista de ver que tem outra forma de se colocar no mundo. Tem uma consciência e uma atitude política que eu não via na minha geração.
CONTINENTE Você acha que a gente está evoluindo?
KARINE TELES Tenho certeza de que a gente está evoluindo. Às vezes, fico pensando: “Caramba, será que eu sou inocente, iludida?”. Acho que não, que está evoluindo a passos largos, com uma velocidade muito maior do que há pouco tempo atrás. E acho que toda essa lama, esse esgoto, não é uma novidade dos tempos atuais. É o resto das coisas que a gente não conseguiu transformar e que, por conta dessas circunstâncias políticas atuais, veio à tona. Acho muito importante que venha à tona porque a gente é obrigado a encarar esse pus, essas mazelas e lidar com isso. Reconhecer as nossas responsabilidades e descobrir de que maneira pode atuar de verdade na transformação, sabe? É obrigado a se colocar, a tomar atitudes, a modificar a forma de se relacionar com as pessoas e o mundo. Homem-Aranha: “Grandes poderes, grandes responsabilidades”. Acho que, de uma maneira geral, o poder está sofrendo uma mudança. Outro dia estava pensando no fato de existirem monarquias em 2022. É surreal que as pessoas ainda respeitem algo que, em algum momento da história, inventaram de uma família ser mais importante do que as outras. Tipo essas pessoas aqui nasceram de mim, então, é príncipe, é rei e é importante só por conta disso. Como é que pode existir monarquia ainda? Tem de acabar! Isso não faz mais sentido no mundo de hoje em dia. A obscenidade dessas grandes fortunas: Jeff Bezos, Elon Musk. Pelo amor de Deus, não tem lugar mais no mundo! E eu sinto que são coisas que estão sendo questionadas como nunca foram, estão começando a deixar de existir. Tenho a sensação de que a gente está num momento de transição muito potente e acho que nestes próximos 10, 15 anos, as coisas vão mudar muito.
CONTINENTE E a representação da mulher na TV e no cinema? Ela também está evoluindo?
KARINE TELES Acho que está evoluindo, mas muito longe de ser algum lugar justo e eficiente. Ainda está mais evoluído nas bolhas do que no senso comum, mas sinto que a gente tem caminhado. O que não significa que eu ache que a gente está num lugar digno. Acho que precisa melhorar muito ainda. Muito, muito, muito. E isso só melhora com trabalho e tempo. Não tem jeito.
CONTINENTE Os últimos dias de Gilda, um monólogo escrito pra você em 2003, tem como protagonista uma mulher livre. O texto original já fala tanto de Brasil da forma que a série fala?
KARINE TELES Ele fala muito de Brasil porque fala sobre misoginia, machismo, moralismo. Mas, ao longo dos anos, a gente foi fazendo adaptações e o trabalho de roteiro pra série trouxe questões atuais, externas à personagem. O monólogo é a Gilda dentro da cozinha falando das sensações e das emoções dela em relação ao mundo. Aí, quando a gente foi construir o roteiro da série, construiu o mundo. E na hora em que se constrói o mundo, vêm questões atuais que estão conectadas com o cerne do texto teatral. Sublinha algumas coisas e amplifica outras. Então, essa questão das milícias e da intolerância religiosa, a gente amplificou no trabalho de escrita da série porque é uma discussão importante e muito pertinente pro projeto e o momento.
Os últimos dias de Gilda. Foto: Divulgação
CONTINENTE Esse foi o primeiro roteiro em que você trabalhou?
KARINE TELES Foi, mas na verdade trabalhei bem pouco nele. Em 2004, o Gustavo trabalhou com o Rodrigo [de Roure, autor da peça] e eu colaborei. Foi o primeiro projeto que a gente pensou e teve vontade de fazer. A gente chegou a mandar pra alguns editais, só que na época a gente não tinha força nenhuma pra conseguir ganhar um edital. E acabou ficando na gaveta. Mas foi um trabalho feito do zero de novo. Começou uma coisa nova, usando a peça como inspiração.
CONTINENTE A série acabou selecionada para o Festival de Berlim de 2021 e passou em cinemas da Holanda. Como foi a recepção no exterior? Teve notícia?
KARINE TELES Tive. Algumas pessoas entraram em contato – essa coisa louca do mundo virtual, que você tem acesso a pessoas em qualquer lugar do mundo através de Instagram – e é muito lindo isso. Durante o Festival de Berlim, eu dei entrevistas, e depois, quando entrou no cinema, recebi algumas mensagens. De novo, a gente cai naquele lugar do Riscado. Quando a gente fala muito de dentro, a gente fala com o mundo inteiro. Então, por mais que eu esteja falando de religiões de matriz africana versus as religiões neopentecostais, do lado da misoginia, da intolerância e do moralismo como forma de manutenção de um certo poder, as pessoas entendem no mundo inteiro. E são tocadas por isso. Agora, outra questão que me perguntaram e falaram muito é a da fisicalidade da Gilda. Quando a gente começou a pensar em data de filmagem, eu estava muito acima do meu peso normal. Tinha parado de fumar e engordado pra caramba. Na minha vida, isso não era uma questão: estava tranquila com aquele corpo, feliz, vivendo muito bem. Mas, geralmente, isso é uma questão pras atrizes quando vão fazer uma personagem. Ainda mais a Gilda, uma mulher sensual, que tem muitos amores, gosta de transar, de comer. E eu e o Gustavo tomamos a decisão de que era importante que o corpo da Gilda fosse padrão. Porque aquele é o corpo padrão. Não é o corpo das atrizes de Hollywood, das atrizes da Globo. O corpo padrão da mulher brasileira é aquele. E isso foi muito comentado lá fora. As pessoas falaram muito de como era inovador, de como era bom assistir a uma atriz – pra eles, fora do padrão – sendo aquela mulher desejada, amada, amável. E linda, lindíssima! Pra mim, isso era muito importante porque eu acho que esse ainda é um lugar de aprisionamento muito grande pras mulheres na nossa sociedade.
CONTINENTE Vamos falar de outra personagem. Como foi montar a Bárbara, a patroa de Que horas ela volta?
KARINE TELES É o trabalho mais difícil que já fiz. Pra fazer a Bárbara, vi entrevistas de jornalistas de moda, de milionárias e me lembrei de momentos em que fui menosprezada e maltratada por pessoas ricas e poderosas – já aconteceu muitas vezes na minha vida. Também conversei com a Cleo, que trabalhava comigo na época, ajudando a ficar com as crianças. Ela contou várias histórias de patroas. Inclusive um detalhe que eu amo [no filme] e quase ninguém percebe é quando dou um copo de plástico pra Jéssica [personagem de Camila Márdila] tomar um suco. Porque a Cleo contou que trabalhou em casas onde copos e talheres eram separados. E a gente sabe que é fato, que fazem isso: roupa de cama separada, talher, prato, copo separado. Banheiro separado. O que acontece nesse mundo, né? Então, foi um trabalho de construção porque eu não tinha referência. Imagina, minha família é de classe média baixa. Minha mãe é professora, meu pai, psicólogo. A gente cresceu em conjunto habitacional de BNH [Banco Nacional da Habitação], estudou em colégio particular com bolsa porque meus pais trabalhavam na escola. Então, não tem essa referência de ser patroa, de ter muito dinheiro, de não se relacionar com filhos. Pra mim, toda a vida daquela personagem era alienígena. E é muito engraçado porque a Regina [Casé], que está deslumbrante, é uma figura muito conhecida e o trabalho de construção dela no filme é lindo. O trabalho da Camila também chama atenção, uma personagem incrível. E eu, as pessoas partem do princípio de que era aquilo. Aconteceu muito de eu ser maltratada porque achavam que era aquela pessoa arrogante. Uma vez, fui trabalhar num filme novo e a pessoa da caracterização estava com medo de mim. Quando eu cheguei, a gente começou a conversar e uma hora ela falou: “Ai, que alívio! Eu vi Que horas ela volta? e achei que você fosse uma monstra”. É muito louco. E isso fazia parte da ideia da Anna [Muylaert, a diretora]. Porque ela pensava: “Se for uma atriz conhecida, as pessoas vão se relacionar com ela de outra maneira. Tem de ser uma cara desconhecida”. Eu ainda me considero uma atriz pouco conhecida, mas no Que horas ela volta? era menos conhecida ainda [risos]! A Anna brigou muito pra me ter ali, e sou muito grata. Amo ter feito esse filme. Fico falando que a gente ainda está dentro do Que horas ela volta?. Nesse momento, a dona Bárbara está mandando a Jéssica e o Fabinho saírem da piscina. Só que não adianta porque ela vai passar no vestibular. Então, acho que o que a gente está vivendo é o piti da dona Bárbara.
CONTINENTE E em Bacurau, o que você acessou para fazer a forasteira montada numa moto?
KARINE TELES Eu acessei a minha paixão pelo Kleber [Mendonça Filho]. Porque, quando ele me mandou o roteiro, ele só falou: “Talvez tenha uma personagem pra você. Lê e me diz o que achou”. Eu fiquei apaixonada pelo roteiro e respondi dizendo: “Qualquer personagem que você quiser que eu faça, eu faço”. A Forasteira não foi calcada numa personalidade específica. Ela representa um conjunto de atitudes ainda muito presentes no país, que a gente está vendo com muita claridade atualmente, porque são essas figuras que saíram do esgoto sorrindo, se sentindo orgulhosas de terem esse espaço para serem horríveis. E outra coisa é que tenho pavor de arma. Não tenho fetiche em fazer cena de violência. Não acho legal, não acho divertido. E pra conseguir fazer, eu pensava: “Isso é uma representação de uma chaga social, é uma representação de uma mazela histórica”. Mas na cena do tiroteio na mesa, teve uma hora em que achei que fosse desmaiar de tão nervosa. Estava apavorada com os efeitos especiais e os revólveres. Eu fico impressionada como a violência é muito mais aceita do que o corpo nu ou demonstrações de afeto. Outro dia vi que o Instagram retirou a postagem de um cartunista e uma escritora que eu admiro [Leandro Assis e Triscila Oliveira], que escrevem o Confinada, porque tinha um beijo entre duas mulheres num cartum [da série de tirinhas Os santos].
Cena da Forasteira em Bacurau. Foto: Divulgação
CONTINENTE Por falar nisso, como você lida com as redes sociais?
KARINE TELES Eu vivo uma relação de amor e ódio. E só tenho Instagram, mais nada. Às vezes, fico com vontade de sair porque, por mais que a gente filtre, é uma coisa que suga muito, é uma bengala. Você vai no banheiro, fica ali olhando, tem um tempinho livre, fica ali olhando. Quando vê, passou meia hora com a cara na tela. Acho também que é uma ferramenta importante de comunicação. Ainda me comunico bastante com pessoas que não conheço e com as quais não teria acesso de outra forma. E muitas pessoas se comunicam comigo. Tenho amizades que foram desenvolvidas pelo Instagram. Algumas nem conheço pessoalmente. A gente troca ideia mesmo e se fala, sabe? Mas tenho a impressão de que o Instagram está morrendo. Principalmente, por conta desse limite. Ele não é território livre. É uma ferramenta de conexão de acesso, mas rouba teus dados – nem que sejam os teus interesses. Essa não é uma ferramenta que existe pra fazer amigos. Existe pra vender coisas, como tudo no mundo.
CONTINENTE Num de seus stories do Instagram, você disse que uma de suas personagens preferidas é a Zelda Scott, interpretada por Andréa Beltrão, na série Armação ilimitada, dos anos 1980.
KARINE TELES A Andréa Beltrão é uma espécie de entidade pra mim. Acho que ela é uma escolhida do Universo, sou louca por ela. Tenho até de me controlar quando estou por perto pra não ficar tietando – tive a sorte de trabalhar com ela duas vezes recentemente. E eu me lembro do espaço que abriu na minha cabeça quando assistia a Armação ilimitada. Eu era apaixonada por aquilo! Aquela mulher independente, que tinha o emprego dela e tinha dois namorados. Era moderna, gata e usava umas roupas loucas. Foi um exemplo do que eu gostaria de ser. Além disso, acho sensacionais o texto, a estética, o tempo, o ritmo e o humor de Armação ilimitada. Uma coisa mais moderna do que se faz hoje. Muito por conta da gênia que é Andréa.
CONTINENTE Você trabalhou com Andréa Beltrão em Ela e eu, com direção de Gustavo Rosa de Moura.
KARINE TELES E no Hebe [:uma estrela do Brasil]. Mas esse filme [Ela e eu] foi muito louco porque teve todo um trabalho de colaboração do elenco no roteiro, e eu não participei porque era outra atriz que ia fazer. Em cima da hora, por conflito de agenda, ela não pôde, o diretor ficou meio atordoado e a Tati Leite, produtora do Benzinho, sugeriu meu nome. Aí tive uma conversa com o Gustavo de Moura e entrei já em cima da boca de filmar. Foi uma experiência incrível porque o Gustavo é um diretor que tem essa inteligência da escuta, que acho fundamental. De não seguir um método, de saber que as pessoas são diferentes e o acesso a elas também. E de confiar no que a pessoa está dando de retorno a partir do que você fala. E eu estava ali com pessoas que admiro e com quem nunca tinha trabalhado: Mariana Lima, uma gênia, o Du Moscovis, um gênio, a própria Lara Tremouroux, que conheço desde criança e acho uma atriz sensacional, a Jéssica Ellen. Era um set muito tranquilo, calmo, amoroso.
CONTINENTE Você também está no elenco de Pantanal, escalada no papel de Madeleine. Como foi sua preparação para o papel? Chegou a ver capítulos, cenas da versão original, da TV Manchete?
KARINE TELES Na época em que a novela passou [em 1990], eu era bem nova e lá em casa não rolava, meus pais não deixavam a gente ver. Tinha fama de ser uma novela pornográfica, e a gente não via. Quando falaram comigo sobre a personagem, corri no YouTube, catei umas cenas que achei pra ver, mas, ao mesmo tempo, entendi que era uma releitura. Principalmente, a Madeleine. Ela foi bastante modificada na versão atual. E eu estou assumindo uma personagem construída por outra atriz – Bruna Linzmeyer faz a primeira fase. Então, foi fundamental assistir a Bruna: como ela se movia, falava, se mexia, qual era o comportamento dela. A segunda parte foi a questão da caracterização. Ela é uma blogueira, uma mulher muito rica, famosa no Instagram.
CONTINENTE Olha o Instagram aí.
KARINE TELES Exatamente. E ela acredita na beleza como uma ferramenta importante. Isso, pra mim, foi difícil porque eu penso de maneira completamente diferente. No trabalho e na vida. Então, o trabalho de caracterização e de figurino foi fundamental pra construção da personagem. Daí também pensei: “Eu não vou colocar botox na minha cara”. Porque na vida real, hoje em dia, a Madeleine teria preenchimento facial, harmonização, botox, mas eu não vou fazer isso. Então, a gente fez um cabelo considerado moderno, bonito, fiz bronzeamento artificial – eu não sou dessa cor [mostra o braço esquerdo], jamais ficarei dessa cor pegando sol. Fiz muitas provas de figurino. É algo que está sendo muito bem-cuidado porque é uma característica definidora da personagem. A grande questão dela é essa. Ela trabalha no seu exterior e esquece o que está dentro: na relação com o filho, com o ex-marido, com o namorado. Ela não sabe se relacionar sem ser pela aparência. Está sendo muito legal trabalhar isso também, entender como é isso. E ver como as pessoas têm se relacionado comigo de forma diferente. Porque agora estou bonita [faz um sinal de positivo com o polegar e sorri exageradamente]. É muito louco.
Atriz em Pantanal, como Madeleine. Foto: Rede Globo/Reprodução
CONTINENTE E como tem sido as gravações da novela?
KARINE TELES Quando entendi uma possibilidade de modus operandi, comecei a curtir e a me divertir. Eu acredito que o trabalho do ator é estar presente, que não pode planejar nada. Ele tem de saber o texto pra estar presente e reagir ao que está acontecendo. Estar disponível pro jogo. E achei que dava pra brincar disso fazendo novela porque, às vezes, você grava 20 cenas num dia. Algo que nunca vai acontecer no cinema. Então, tem de estar com o estado de presença ativado. Às vezes, saio destruída, parece que corri uma maratona, mas estou me divertindo.
CONTINENTE Você já falou ter a sensação como atriz de que no cinema “a câmera enxerga o que a gente está pensando”. Como é estar do outro lado da câmera, como diretora do curta Romance?
KARINE TELES Tenho gostado muito, quero seguir fazendo. Gostei muito de interagir com outros atores, de ajudar a conduzir a cena, estando do outro lado. É outro lugar, é completamente diferente, não tem nada a ver com ser atriz. Só que o fato de ser atriz me ajuda a acessar os atores, a entender de que formas a gente pode construir os personagens junto. Mas é também um lugar de ansiedade, de apreensão, de nervosismo. Achei muito difícil mostrar o filme. Em Tiradentes, foi menos sofrido porque era online, eu não estava ali com as pessoas. Em dezembro [de 2021], teve uma sessão presencial no Festival do Rio e achei que fosse morrer de tão nervosa.
CONTINENTE Seu filme se utiliza da fantasia pra falar de liberdade feminina e da violência contra a mulher. Como é que surgiu a ideia dessa fábula, de fazer esse curta?
KARINE TELES Eu estou no processo de dirigir um longa-metragem, um roteiro que escrevi e vou dirigir. E precisa ter portfólio. “Que que essa garota quer dirigir um filme? Mostra aí o que você pode fazer, minha filha. Não está satisfeita de ser atriz, não? Quer dirigir? Então, tem de provar que pode.” Nessa, a Tati Leite e o Thiago Macêdo Correia, meus produtores do longa, falaram: “Cara, a gente tem de fazer um curta. Vamos fazer alguma coisa no universo do longa”. Acabou que, esteticamente, ficou muito diferente do que eu imagino pro longa, até porque a gente tinha zero reais. Era meio que uma gincana: “Você tem zero reais, tem dois dias pra filmar, não tem equipamento de luz, ninguém vai receber e é isso o que a gente tem. Vamos fazer um filme?”. Falei: “Vamos”. Aí consegui pessoas maravilhosas que toparam fazer porque gostaram da ideia. E a Gilda Nomacce, de quem sou fã, topou. Então, é como se fosse a história pregressa da personagem dela. Aquela figura, que é a Gilda, aparece já acorrentada no longa.
CONTINENTE E o Princesa?Em que pé está essa produção? Você já filmou alguma coisa?
KARINE TELES Não filmei nada. Eu ainda estou no processo de desenvolvimento. A história é centrada num jovem casal e as discussões do filme são todas por esse lugar que te contei. E é um filme de gênero, a ideia é que seja um suspense. Porque eu amo filme de gênero e acredito que eles têm um potencial gigantesco de furar a bolha. O meu desejo é furar a bolha, fazer filmes que se comuniquem com pessoas que assistem ao meu curta e não entendem. Porque pras pessoas que assistem ao meu curta e acham óbvio demais, eu não preciso falar sobre isso. Essa discussão já está presente na vida delas. Quero fazer filmes pra pessoas que não têm acesso a essa discussão. Acho que, através do filme de gênero, tenho mais chance de chegar nelas, de botar uma pulga atrás da orelha delas. Pode ser ingenuidade minha, mas o desejo é esse. E pensar numa distribuição que leve o filme pra fora da bolha.
CONTINENTE E como você avalia o momento do cinema brasileiro?
KARINE TELES A gente está sob ataque descarado e sem-vergonha. Tudo o que possa ser feito pra impedir que a gente faça cultura e arte no Brasil está sendo feito e essa é uma clara reação aos avanços recentes. A gente estava criando indústria, emprego pra caramba, imposto. E as pessoas se esquecem de pensar que o audiovisual é uma indústria no país. Não ficam com raiva quando corta a [Lei] Rouanet. Só que todas as indústrias do país têm incentivos fiscais, como é a Lei Rouanet: a indústria automobilística, a indústria agropecuária, a indústria alimentícia. Como os artistas viraram os vilões, os “mamadores”, os “mamateiros”, dane-se. “Não precisa de arte, não precisa de cultura.” A meu ver, a gente só abre a cabeça, só evolui, só muda com arte, cultura e educação. Sem essas coisas, a gente fica na Idade Média. E tem um interesse muito grande, de um poder muito grande, que as pessoas não evoluam, porque as cabeças abertas não são controláveis. E causam incômodo as gerações que entraram na faculdade. Que horas ela volta?, gente. Dona Bárbara tá puta, mandando a Jéssica sair da piscina. Só que não adianta porque as cabeças que foram abertas ninguém fecha mais. Essa é a grande questão: a cultura e a educação são bens imateriais, não tem como você tirar isso de ninguém. Não tem. Acho que a gente está vivendo um momento muito difícil, triste e desesperador. Amigos passando dificuldade, o país inteiro – a quantidade de gente que está na rua. É uma loucura como o Brasil retrocedeu. Não só em arte e cultura. A pobreza aumentou, a fome aumentou.
Dona Bárbara em Que horas ela volta?. Foto: Gullane/Divulgação
CONTINENTE Qual o maior desafio que se apresenta aos realizadores do audiovisual brasileiro?
KARINE TELES Atualmente, é conseguir realizar [as produções]. O segundo é conseguir distribuir porque são feitos filmes geniais e cinco pessoas assistem. Porque não tem dinheiro pra divulgação, não tem força de mídia, um milhão de questões. Mas eu espero que o desafio que a gente tenha seja apenas o de conseguir fazer coisas relevantes. E quando digo isso, não estou falando de filmes de arte, herméticos. Eu sou apaixonada pelas comédias brasileiras. Acho que a gente tem grandes comediantes e me emociona os fenômenos de bilheteria de comédia do Brasil. Eu assisto, adoro, choro, acho o máximo. Porque é formação de público. A gente precisa se ver na tela. Meu sonho é que os nossos desafios sejam apenas de conteúdo. Não de realização. Porque não é pra ter! É uma indústria, é emprego pra caramba! Gera muito imposto, riqueza, reconhecimento internacional. Por que a pessoa fica feliz quando o cara ganha medalha de ouro na Olimpíada e não fica feliz quando o cara ganha o Urso de Prata em Berlim? É a mesma coisa. O Bruno [Ribeiro] acabou de ganhar [com o curta Manhã de domingo], a coisa mais linda [se emociona]. Ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim. Isso é uma honra pro país, um reconhecimento, um negócio incrível! O fato de o Bruno ganhar esse prêmio significa que vai conseguir fazer um próximo filme, que ele vai gerar, no mínimo, 200 empregos. Ele vai gerar uma bilheteria, que gera imposto revertido de volta pro país. Então, tem de entender que a cultura não tem só a função educativa. Ela tem a função social de avanço do país, financeira, de melhoria de vida das pessoas.
CONTINENTE E quando você olha sua trajetória até agora, o que passa pela cabeça?
KARINE TELES Eu agradeço praticamente todos os dias porque, durante muito tempo na minha vida, sonhei, desejei viver do meu trabalho de atriz e, de alguns anos pra cá, eu consigo viver dele. Ano que vem, faço 30 anos de carreira. E eu só vivo do meu trabalho há uns oito. Sem passar perrengue, há uns quatro. Passar perrengue que eu estou dizendo é não ter dinheiro pra pagar conta, ter de pegar empréstimo. Mas tem só uns quatro anos que consigo pagar todas as minhas contas. Estar com os boletos “tudo pago”. E aí eu fico com menos vergonha de insistir, de continuar.
FERNANDO SILVA, jornalista.