"Somos empurrados pelo sistema"
Artista pernambucano Lourival Cuquinha exibe instalação "Transição de Fase", em formato pentagonal, no Pátio de São Pedro e na Rua da Imperatriz, de 24 a 28 de setembro
TEXTO Carol Botelho
23 de Setembro de 2024
Artista traz para o Recife trabalhos inéditos da série que já tem dez anos
Foto Divulgação
O percurso artístico do pernambucano Lourival Cuquinha é um grande autorretrato fragmentado dele mesmo. "São micropedaços gerando um pedaço grande de minha parte, de meu todo". Um todo que é despedaçado para depois ser costurado, colado, ligado e ressignificado. Uma reinvenção de si e da paisagem urbana ou sonora onde age e interfere para provocar novas maneiras de pensar o lugar e o ser que o habita. Foi assim com o projeto Mapa do Ácaro (2004), em que fotografou partes microscópicas do corpo da designer Daniela Brilhante para depois juntar essas micropartes em um corpo gigantesco. Foi assim com o projeto Varal (2003), que ligou locais periféricos a ruas centrais. Fragmentos de cidade que se uniram a partir do que há de mais singelo em uma habitação periférica ou de classe econômica menos favorecida - o varal de roupas, a intimidade das peças do guarda-roupas exposta ao passante sem grandes pudores.
Em Transição de fase, obra que leva o título de teoria cujo exemplo mais popular é a mudança da matéria - a água- que transita entre os estados sólido, líquido e gasoso. Mas uma transição de fase é também e, principalmente neste caso, um deslocamento, que não é somente físico, mas social e econômico, a depender de mudanças de padrão de comportamento, que, por sua vez, são resultados ou causas de alterações econômicas e sociais. Algo como uma mudança de padrões. Uma mudança climática e tecnológica que também afeta as mudanças econômicas e sociais de uma nação. Diante disso, Cuquinha reflete o “estado” do imigrante e sua condição forçada de imigração com o objetivo de simplesmente sobreviver. Além do próprio trabalho em si. Não somente o do imigrante-camelô, mas o trabalho como um todo: “Antes de mais nada, o que é trabalho?”, disse o pensador britânico Bertrand Russel, a quem Cuquinha recorreu para conferir arcabouço teórico a sua reflexão.
O público poderá conferir ao vivo um trabalho que o artista já realiza há dez anos, e que já resultou em 150 obras. Inspirado nos imigrantes que trabalham como camelôs nos grandes centros urbanos do mundo, como Londres, Paris, São Paulo e Recife. Pessoas que, para fugir da pobreza, da fome, da guerra e da violência, buscam, por questão de sobrevivência, outros lugares para existir e subsistir. De 24 a 28 de setembro, Cuquinha exibirá, no Pátio de São Pedro e na Rua da Imperatriz, uma instalação em formato pentagonal feito de cobre com cinco obras, entre elas a Transição de Fase Eloy, criada em 2015 a partir do encontro entre o artista e o peruano Eloy, no Bairro do Recife. As outras obras são inéditas e resultam da continuidade da pesquisa, agora chamada de Transição de Fase Recife, feita pelas ruas da capital pernambucana, no primeiro semestre deste ano, quando conheceu dois imigrantes senegaleses, Momar Mbaye e Amâdou Touré, e duas venezuelanas, Noelis Quijada e Maria Warao. Pequenas caixas de som emitirão os áudios das entrevistas ao mesmo tempo, interferindo a paisagem sonora, como é comum aos camelôs, que precisam gritar suas mercadorias.
O projeto é realizado por meio do Sistema de Incentivo à Cultura, Fundação de Cultura Cidade do Recife, Secretaria de Cultura, Prefeitura do Recife, a exibição de Transição de Fase Recife contará com a presença de mediadores. O ambiente expositivo e todas as obras que compõem a instalação estarão audiodescritas, possibilitando a fruição do resultado a pessoas com deficiência visual.
A Continente conversou com o artista sobre a própria condição de imigrante que ele já viveu, a questão do valor de uma obra de arte, deslocamentos e fragmentos, e sobre o trabalho que agora apresenta no Recife. Confira:
CONTINENTE De onde partiu a ideia do projeto com os imigrantes-camelôs?
LOURIVAL CUQUINHA A ideia partiu da minha própria condição em Londres. Eu era um imigrante que vendia um produto pelas ruas de Londres e me apropriava das ruas de Londres nesse sentido. Só que os camelôs com os quais eu trabalho vendem produtos físicos e eu vendia um serviço. Eu era táxi-biker. Essa minha condição me fez ver que existe uma ilha conceitual nesse tipo de trabalho. Você começa a entender a cidade de outra forma. É quase como uma caçada. Os lugares que você pode arrumar sua subsistência na cidade é diferente de quem mora na cidade. Você se apropria da cidade de outra maneira. É uma outra cidade, no fim das contas. As pessoas que moram na cidade, que podem ser seus clientes, também são parte da paisagem. Você começa a se apropriar, saber uns caminhos que pouca gente sabe ou que pouca gente usa. Você cria uma outra topologia.
Desse trabalho, veio outro, o Topografia suada de Londres, que desenvolve um pouco mais a pesquisa. Comecei a pensar nessa condição das pessoas. E pensando nisso, uma vez cheguei a uma citação: “Antes de mais nada: o que é trabalho? Há dois tipos de trabalho: o primeiro, alterar a posição de um corpo na ou próximo à superfície da Terra relativamente a outro corpo; o segundo, mandar outra pessoa fazê-lo”, como diz Bertrand Russell em Elogio ao Ócio. Nessa frase, encontrei o que eu era e o que esses personagens que eu encontro são nas duas maneiras nesses dois conceitos dele. Ele era um lógico, um matemático. Mas, no período entre guerras, ele vai pra esse livro, que tem mais a ver com sociologia. Ele começa, de uma definição quase cartesiana, de um conceito do trabalho, para entrar numa profundidade da exploração do homem pelo homem bem básica. Ele é um lógico matemático marxista, de alguma maneira. Nesse conceito, ele percebe que aquela acumulação de capital por exploração levava a guerras, e não a uma melhoria social.
Para mim, ele define essa condição do imigrante ambulante porque a gente fica se mesclando com esses dois conceitos de trabalho. Se, por um lado, parece que a gente tá fazendo o que a gente quer, como dita o conceito neoliberal do empreendedor: “eu não tenho patrão, faço o meu horário”. Ao mesmo tempo, isso existe também. É como uma caçada. Você sai pra cidade: ‘vou pegar meus clientes pra andar de táxi-bike, ou vender, e tal.. Marlei fala um pouco disso nos depoimentos dele. Marlei é um dos imigrantes senegaleses que trabalha na (avenida) Dantas Barreto. Por outro lado, é uma marionete do sistema geopolítico mundial porque, como muitos de nós, está sendo levado, como as coisas que se levam perto da superfície da terra. Nós somos uma coisa, um pedaço do sistema, da engrenagem. Somos levados para Londres, um centro urbano que vai te dar os restos que sobram dos bolsos dos londrinos, que, por sua vez, vale muito no nosso país. Vai levar para o Recife, que também é uma metrópole em relação a Dakar, capital do Senegal.
Então, somos empurrados, em cima da Terra, pelo sistema e, ao mesmo tempo, parece que estamos empurrando essas coisas em cima da Terra. No caso dos imigrantes com quem eu trabalho, as coisas são as mercadorias. Eles levam coisas pra vender em cima da terra, deslocando esses objetos em cima da terra para venda, e o sistema deslocando eles, e eles sendo mandados, mas eles não mandam. Pensam que ninguém manda, mas são mandados. No meu caso, desloquei não só a mim, mas as pessoas, que eu levava de um lado a outro. Enfim, essa frase amarra e deixa também abertos os conceitos do imigrante ambulante de uma forma bem lírica e poética de interpretação. Porque ela é muito mais incisiva e lógica, mas a condição de imigrante ambulante fica permeando dois conceitos do trabalho, às vezes como ilusão nossa mas como uma parte bem concreta do grande sistema mundial.
CONTINENTE Qual o critério que você usa para escolher esses personagens?
LOURIVAL CUQUINHA O critério é meio aleatório. Ando pela cidade e vou encontrando. Em São paulo, eu fiz mais de 100 desses imigrantes. Nesse projeto no Recife, encontrei dois senegaleses. Tinha uma mulher, mas o marido não deixou ela dar entrevista. Aí partir pra outra nacionalidade. Fui atrás da ONG Cáritas, que trabalha com imigrantes e refugiados e encontrei duas venezuelanas que vendem com produtos artesanais. No caso de Eloy, encontrei com ele há dez anos no Recife. O critério é o da observação dos grandes centros e da parte mais comercial onde as pessoas vão adquirir subsistência vendendo seus produtos. Então é o encontro que se dá pela andada, mas claro que variar as nacionalidades está na minha cabeça. O primeiro que fiz foi em Paris. O imigrante vendia réplicas em miniatura da Torres Eiffel. Esse trabalho está em uma coleção particular.
CONTINENTE Por que somente agora o trabalho veio para o Recife?
LOURIVAL CUQUINHA Porque eu estou morando aqui. E tive um tempo de maturação na cidade, de observar. É um trabalho que venho desenvolvendo como uma série e não sei nem quando vai parar. É meio contínuo e está sempre na minha cabeça. De vez em quando, penso em fazer um ou outro. Ou vejo alguém vendendo. Depende muito de colocar onde eu habito. Percebi que aqui tinha essa possibilidade. E também consegui incentivo do governo, pois é um trabalho caro. Já fiz independente também. Fiz um patrocinado pelo MAM de São Paulo, outro para um colecionador. É meio por onde eu estou e como se o lugar se propõe.
CONTINENTE Essa questão de estabelecer um valor para a mercadoria e tal... é sempre um questionamento sobre o valor de uma obra de arte, não é? Poderia comentar sobre isso?
LOURIVAL CUQUINHA A questão do valor acho que está sempre no trabalho em geral, que eu fico inventando que é arte. Ou o deslocamento de uma coisa que tem valor no lugar. Como o varal que estava na rua da Aurora, a “sala” da cidade. Sai da periferia para ir ao centro. Sai do arredor para o núcleo. O valor não é só da arte. É do trabalho e do dia de trabalho, do deslocamento, da conquista dos clientes, das vozes, das histórias de como chegaram aqui. Esse valor mais geopolítico do que a gente está sendo levado a fazer e do que a gente está fazendo por nossa própria vontade.
CONTINENTE A escolha dos materiais com os quais você está trabalhando nessas obras obedeceu a algum critério?
LOURIVAL CUQUINHA O produto que eu compro a eles não é escolha minha. De Marlei, comprei relógios, correntes e pingentes vindos da China. Coisas de ouro, com as quais faço uma composição. Esses materiais têm valor de troca ou valor de especulação financeira que me dizem algo sobre o valor do trabalho. Uso cobre, dinheiro, moedas, prata… Nesse trabalho do Recife, utilizei madeira de massaranduba. Nunca havia utilizado. E isso me faz pensar nas queimadas e no Brasil pós-golpe, em que o valor da madeira está maior do que o de qualquer outro produto. É um valor nem só financeiro mas da vida, da gente, da respiração… Fiz a impressão em pequenos tabletes de massaranduba e costurei esses tabletes impressos.
CONTINENTE Por que você escolheu o Pátio de São Pedro e a Rua da Imperatriz?
LOURIVAL CUQUINHA Originalmente pensei no Camelódromo, mas é uma instalação relativamente grande e no Camelódromo ia se perder muito. O lugar mais livre perto do Camelódromo para visualizar a obra inteira é o pátio. E a Rua da Imperatriz é uma rua decadente, só passa pedestre e tem muito imigrante. E alguns dos imigrantes com quem falei estarão na Feira Imperatriz das Artes, dia 28.
CONTINENTE Essa mistura de vozes ao mesmo tempo... Tem a ver com o trabalho do camelô, sempre gritando suas mercadorias?
LOURIVAL CUQUINHA Totalmente a ver, tanto com a estética camelô, que chama atenção pela fala, quanto pela estética dos centros urbanos, com sua algaravia de sons.
CONTINENTE Acha que o deslocamento é algo essencial ao seu trabalho?
LOURIVAL CUQUINHA Dentro do que a gente tenta fazer. Muitos artistas fazem isso também. É meio que um filtro do mundo através do olhar do artista. Coisas particulares que acontecem com você se tornam ações, objetos, signos do mundo, do que está acontecendo ao redor. O nome da exposição Transição de Fase é o jeito que você se torna. Pensei nesse conceito da física, que é quando você está indo do sólido para o líquido e fica meio instável, e tem que se reinventar. É como os imigrantes, que se sentem transicionando, refazendo sua matéria, corpo, pensamento, alma, mente. O nome vem muito daí.
CONTINENTE Como indivíduo, você acha que todos nós deveríamos ter direito ao livre deslocamento?
LOURIVAL CUQUINHA Acho que nascemos assim. A gente tem direito a andar pelo mundo inteiro. Direito é abstração. Essa é a naturalidade dessa ação. É claro que pessoas que vivem no lugar há mais tempo vão estranhar o forasteiro. Por isso, pisar devagar, entender as alteridades dos lugares, as pessoas e seus costumes e hábitos se apropriam dos lugares. O mundo é de todos, mas há pessoas que já vivem nele que têm uma simbiose com o lugar e isso deve ser respeitado. O planeta em si é naturalmente de todos. As fronteiras são um dissenso e ao mesmo tempo um consenso de quem manda em todos os condutores dos governos, os condutores das granas, os milionários.
CAROL BOTELHO, repórter especial das revistas Continente e Pernambuco