"Eu sempre tive medo de expor as minhas coisas. Justamente porque eu tinha essas grandes referências. Aí foi terapia mesmo, para eu tentar me afastar dessas referências. Porque comecei a perceber que tudo que eu escrevia, eu queria passar por uma aprovação", diz Sofia Freire. "Eu ficava sempre medindo o que eu escrevia a partir disso", acrescenta.
Superadas essas questões, Sofia fez a letra de oito das nove canções do álbum. A exceção é a sexta faixa, Dentro de mim, de Igor de Carvalho, parceiro ocasional também nos palcos. Mas essa composição também segue o tom intimista das demais e ressoa harmoniosamente no PDL.
Da mesma forma que algumas letras falam sobre sentir e experimentar, a música também transita por experimentações, aprofundando o que já aparecia em menor grau nos discos antecessores, Garimpo (2015) e Romã (2017). Enquanto antes, o piano era o principal guia e os beats eletrônicos e os complementos, agora a voz – às vezes, vozes, em várias camadas – funciona grande força-motriz.
Essas mudanças também exigem ajustes para as apresentações ao vivo do novo álbum, que devem ser anunciadas em breve. Habituada a se apresentar sozinha, tendo essencialmente a companhia de teclados sintetizadores, Sofia hoje ensaia acompanhada de outros músicos para levar o Ponta da língua para os palcos com mais dois músicos: Miguel Mendes (teclados) e Homero Basílio (percussão e beats). Este último, aliás, é o responsável pela mixagem e coprodução do álbum, que é masterizado por Buguinha Dub.
É um disco mais pop que os anteriores, tanto em sonoridade quanto em seus temas, mas nunca de forma óbvia. São identificáveis ecos de artistas como Björk, Kate Bush e Cocteau Twins, para citar alguns, além de acenos literários a Elena Ferrante e Virginia Woolf (esta última, explicitamente, na faixa Orlando). Essas e outras referências, vale destacar, sempre aparecem muito bem assimiladas, sem nunca serem sobrepostas à assinatura de Sofia.
ENTREVISTA
CONTINENTE Tudo que está nesse álbum foi pensado pra ele? Ou foram materiais pincelados de diferentes períodos?
SOFIA FREIRE Ele foi pensado num conjunto. Na verdade, quando eu estava escrevendo essas coisas, eu nem estava pensando “estou fazendo um disco”. Eu fui simplesmente fazendo, compondo, produzindo as coisas. E aí eu vi que tinha um número de material que aí eu disse, “pôxa, eu acho que tô fazendo um disco”. Tudo aconteceu meio que num momento só, foi uma coisa bem terapêutica, depois eu entendi que tinha aí um produto.
CONTINENTE Nesse caso, enquanto você estava produzindo esse material, foi um processo parecido com o que ocorria quando você trabalhava com poesias de outros autores? Ou já pensava musicalmente?
SOFIA FREIRE Acho que a prática anterior de musicar os poemas influenciou bastante. Eu continuo tendo a palavra como centro. A letra continua sendo aquela coisa que a música se desenvolve ao redor dela, não o contrário. Nesse sentido, acho que foi bem parecido. A diferença que eu percebi é que tenho liberdade de mudar o texto se eu precisar. Se tiver alguma coisa que não coube direito, uma palavra que fique melhor de outro jeito, enfim. Eu começo com aquela estrutura, vou trabalhando na música, mas às vezes a música vai indo pra outro lugar que, se eu mexer na letra, se eu mexer na estrutura, ela vai caber melhor. Acaba sendo um processo mais flexível. Embora, realmente, a palavra, o texto, seja o eixo; ainda assim, ela pode ser moldada. É um tipo de liberdade que eu não tinha quando musicava os poemas, porque eu não queria mexer no texto de outra pessoa, na autoria do poeta. Então eu fazia de tudo para que a música entrasse, coubesse, naquela estrutura. Eu fazendo as minhas próprias letras, posso alterar o que for preciso.
CONTINENTE E é mais fácil?
SOFIA FREIRE Eu não diria que é mais fácil. Tem uma questão aí: é que é a minha voz mesmo. Eu não tô falando através de outra pessoa. Então existe uma parada interna, de entender que eu tô me expondo, uma ideia minha, um sentimento meu. Então, quando a gente se comunica através do outro, a gente pega aquilo que é do outro e assume pra si também. É claro que eu nunca cantei nada com o qual não me identificasse, tudo que eu tava cantando ali tinha um sentido para mim, para a minha vida, com os meus sentimentos, com a forma de eu encarar o mundo e as coisas. Mas você escrever a letra, aí sou eu mesmo, estou realmente dizendo o que eu acho, realmente dizendo tudo. É um nível de exposição que, pra mim, é novo. E que dá muito medo. Tem um lugar também de você medir um pouco a forma como vai falar, o que vai falar, mantendo, aí, o que vai falar. E aí, nossa, é difícil.
CONTINENTE É difícil, mas você gostou da experiência.
SOFIA FREIRE Gostei, visse? Achei massa. [rindo]
CONTINENTE Para futuro, o caminho será continuar compondo?
SOFIA FREIRE Acho que tudo é possível, não tenho nada definido. Inclusive nesse disco tem uma música [Dentro de mim] que é de Igor de Carvalho. Então eu continuo [com parcerias]. E eu acho superválido, colaborar é massa. Às vezes tem coisa que a gente não consegue dizer, que o outro vai dizer melhor. Eu acho que, na verdade, eu adicionei uma possibilidade, ao escrever minhas letras, eu adicionei uma forma de compor, eu não subtraí.
CONTINENTE Você falou muito sobre encontrar, assumir a voz. E o disco também fala muito sobre amadurecimento. Você tinha esses temas em mente enquanto produzia o álbum?
SOFIA FREIRE É engraçado, aconteceu a mesma coisa com o Romã [o segundo disco, de 2017]. Depois que eu tinha aquele repertório e olhei pra ele e percebi vários pontos em comum, a partir daí eu pude entender qual seria o conceito. Pode até ser um exercício interessante, mas não aconteceu isso nem no Ponta da língua nem com Romã, nem com Garimpo (2015) também. Mas o Garimpo foi muito solto com relação a tudo. Acho que isso vem de um processo do subconsciente, daquele momento em que você está passando por uma coisa em específico, está tendo certos tipos de reflexão. Você vê que tem uns pontos em comum, então ele realmente vai refletir o seu contexto.
CONTINENTE E qual era esse contexto?
SOFIA FREIRE O Ponta da Língua fala muito sobre esse crescimento, esse amadurecimento, sentir mesmo essa identidade que é outra hoje, de se sentir mesmo uma pessoa diferente, de perceber essas mudanças. E eu acho que, pegando as palavras-chaves que tem nas músicas, fala sobre muito sobre partes do corpo, de peito, de língua... Falo muito sobre romper, explodir. De tamanho, aumentar, essa coisa do corpo muito forte, assim, aumentar de tamanho, diminuir... E aí eu percebi que isso partiu muito de um desejo por liberdade. Ele [o álbum] foi composto num contexto de pandemia, eu tava muito encerrada em casa, e tinha um sentimento muito forte de liberdade física, de querer sair correndo pela rua, mas também tinha uma prisão mental, emocional, que não era uma consequência da pandemia, era uma situação em que eu já estava, já tava me sentindo aprisionada emocionalmente em muitas coisas, sabe? Então, quando eu vi essas letras, eu vi que, caramba, eu tava louca pra sair desse lugar onde eu tava. Tava louca para sentir as coisas, por isso eu falo tanto de sentir o gosto com a ponta da língua, de ter o corpo, meu corpo mesmo, como veículo para eu sentir as coisas, não ficar só nesse lugar da mente, da cabeça. A gente vive as coisas pelo toque, pelo cheiro, pelo gosto, por estar, pela nossa presença – o meu corpo estar – nos lugares.
CONTINENTE E passado esse momento da pandemia e superadas essas questões emocionais, você acha que finalmente viveu essas coisas que está lá cantando? Deu tudo certo?
SOFIA FREIRE Estou vivendo, está acontecendo, com certeza. [risos]
BRENO PESSOA, jornalista.