Em 1º de abril de 2015, data que marcava os 51 anos do golpe militar de 1964, portanto, Beth enquadrava Cláudio, com uma Bíblia a tiracolo, e Eduardo em um estúdio na capital capixaba. Seriam quatro horas de conversa, das quais resultaria Pastor Cláudio, com seus 73 minutos de imersão na história daquele homem que hoje é um bispo evangélico de voz tranquila e “memória meio cansada por causa da idade”, mas que durante décadas atuou como delegado responsável por aniquilar opositores da ditadura militar que comandou o país entre 1964 e 1985. O verbo “aniquilar”, aqui, não surge como retórica para reforçar horrores, e sim como palavra adequada para dar conta de tudo que Cláudio fez, testemunhou e, diante de Eduardo, da câmera de Beth e, agora, de nós, sua audiência, relata.
Ele nos conta, por exemplo, que foi cooptado pelo Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna/DOI-CODI para missões secretas no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Recife. Em reuniões com o coronel Freddie Perdigão, a quem dá nome e sobrenome, recebia as instruções: para onde ir, a quem matar. Com naturalidade, fala do tiro que deu em alguém numa parada de ônibus na avenida Angélica, em São Paulo, ou dos militantes de organizações de combate à ditadura cujos corpos incinerou no forno da Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, no Rio: Ana Rosa Kucinski, David Capistrano, Fernando Augusto Santa Cruz, Eduardo Collier Filho e Luiz Ignácio Maranhão Filho.
Cena de Pastor Cláudio. Foto: 4 Ventos Comunicação/Divulgação
"Por curiosidade", Cláudio e sua equipe, "eu e mais dois ou três policiais", abriam os sacos pretos que transportavam os cadáveres a chegar na usina de propriedade da família Ribeiro. "Ana Rosa Kucinski tinha claros sinais de que tinha sido violentada", revela, "e o forno era grande, cabiam dois de uma vez". Ana Rosa era a irmã do jornalista e escritor Bernardo Kucinski, que, sob o manto da ficção, narra em K – Relato de uma busca (2014) as agruras familiares em buscar respostas para aquele desaparecimento – sim, ela é uma das cidadãs brasileiras que sumiram durante as duas décadas de ditadura militar, civil e empresarial. Vendo Pastor Cláudio, descobrimos que seu corpo virou cinzas na fornalha da usina, cuja destruição recente chamou a atenção do Ministério Público do Rio de Janeiro, e que Cláudio Guerra era empregado pelo Estado – recebendo salário em conta corrente aberta com “documentação fria” sob o nome de Stanislaw Meirelles - para matar os que desse Estado divergiam.
Em um país onde a História contemporânea parece estar sendo reescrita - o presidente Jair Bolsonaro ordenou que o Ministério de Defesa faça as "comemorações devidas" para a data festiva do que militares descrevem como a "revolução democrática" - e onde se distorce a memória dos "anos de chumbo", da ditadura que veículos de imprensa chegaram a rotular de "ditabranda", o documentário de Beth Formaggini é peça importante para engendrar reflexões sobre o quão violenta é a nossa sociedade.
"Temos uma experiência assustadora com a violência. Na época dos escravos, as pessoas iam trabalhar ao lado dos pelourinhos onde os negros estavam sendo açoitados e mortos", comenta a diretora em entrevista com a Continente, que transcorre no dia em que o ex-presidente Michel Temer havia sido preso. Diante de tudo, Beth reconhece a atualidade do filme rodado quatro anos atrás, antes mesmo do impeachment de Dilma Rousseff: “Mais importante do que saber quem matou Marielle, é perguntar: quem mandou matar Marielle?”
No que tange sua arquitetura formal, Pastor Cláudio desemboca não numa sessão de análise, de expurgo de traumas, o que poderia pressupor embaraço, e sim numa entrevista em que detalhes aterrorizantes são relembrados sem que o entrevistado se abale. O pastor, afinal, não precisa responder por seus crimes, perdoado que foi pela Lei da Anistia Política, promulgada em 1979. Mas diante de Eduardo Passos, e de um cenário em que Beth Formaggini projeta fotografias, vídeos e os nomes dos comunistas, esquerdistas, guerrilheiros que ele ajudou chacinar, o personagem aponta para a naturalização da violência nossa de cada dia.
Assim, Cláudio Guerra, que já contara sua história a Rogério Medeiros e Marcelo Netto no livro Memórias de uma guerra suja, volta a discorrer sobre tudo isso sem remorso algum. A Operação Radar, que entre 1973 e 1975 vitimou 19 integrantes do comitê central do Partido Comunista Brasileiro/PCB; Brilhante Ustra; Sérgio Fleury; os porões da rua Tutóia, onde funcionava a sede do Departamento de Ordem Política e Social/DOPS na capital paulista; a Escuderia Le Coq – embrião dos esquadrões da morte; a Casa da Morte, em Petrópolis, na região serrana do Rio; o centro de tortura na estrada de Itapevi; a CIA "dando dinheiro e treinamento" para os militares brasileiros; os banqueiros que financiavam a Operação Bandeirantes; o "suicídio" do jornalista Vladimir Herzog; os atentados a bomba quando o regime já caminhava para a "distensão lenta, gradual e segura" propalada pelo presidente Ernesto Geisel; e as novas missões de torturadores que, como ele, foram trabalhar com segurança paramilitar depois ("o que faziam para o Estado começaram a fazer particular")… De fato, não sobra um tópico que o pastor não aborde, talvez na certeza de que o abraço ao Evangelho o redimirá: "Mudei realmente, eu sou outra pessoa".
Sobre ele e o filme que dele se erige, a herança de Eduardo Coutinho e um Brasil que não se incomoda com o sangue alheio, a diretora falou à Continente.
CONTINENTE Pastor Cláudio é um desdobramento do curta-metragem Uma família ilustre (2015). Como se deu a transposição para o longa? BETH FORMAGGINI Eu tinha ganhado um edital de curta-metragem da RioFilme para falar sobre a Operação Radar, então fiz o curta e fiquei muito impressionada com aquele personagem complexo, aquele homem que falava abertamente dos crimes que tinha cometido. Daí quis mostrar também como ele falava sobre o que tinha acontecido depois da abertura e resolvi partir para o longa, produzido por nós mesmos.
CONTINENTEDe fato, ele impressiona pelos dados que divulga, pela certeza com que fala sobre os cidadãos e cidadãs que matou, pela serenidade com que descreve o modo como incinerava os corpos na fornalha da usina, como dá o tiro de misericórdia em um “comunista” que tinha sido torturado ao extremo… O antigo delegado e agora pastor chega a ser didático. BETH FORMAGGINI É a banalidade do mal, como falava Hannah Arendt. O Brasil tem uma experiência impressionante com a violência. Matamos camponeses, negros, quilombolas, índios… E seguimos matando. A sociedade se anestesia diante de tudo isso e é a mesma sociedade que saía para trabalhar ao lado do pelourinho, na época da Colônia, e trabalhava ao lado de negros sendo açoitados até a morte. Assim começou essa barbárie assustadora que segue até hoje. O que vemos no filme? Alguém que, a serviço do Estado, matava quem se opunha àquele regime. Esse mesmo alguém diz que se tratava de uma política de Estado e demonstra um certo orgulho, até, por ter feito tudo aquilo. Se prestarmos atenção ao que ocorre no Brasil, vamos perceber que o filme tem uma atualidade, que o discurso do pastor, muito embora seja claro que seja sobre a ditadura e os crimes assombrosos que cometeu, é atual.
CONTINENTE Falando em discurso, você adota o formato de entrevista, que é recorrente nos filmes de Eduardo Coutinho, com quem trabalhou. Como foi a opção por esse caminho? BETH FORMAGGINI Que ótimo você perguntar sobre a forma! O filme tem um tema tão forte que é natural que muitas vezes as pessoas só falem sobre isso. Amo o Coutinho, sinto muitas saudades dele e admiro o que ele fazia quando ia filmar. Ele costumava dizer que uma pessoa com um microfone, em frente a uma câmera, estava prestes a protagonizar um acontecimento verbal. E então ele criava uma provocação para que aquela pessoa fosse, aos poucos, representando, pois contar uma história é representá-la. Coutinho costumava dizer que seus entrevistados detinham a coautoria do filme. Eu queria apresentar aquele personagem complexo, queria trazê-lo para ouvi-lo, para saber de suas histórias. Achei que propor um encontro com o Eduardo Passos e filmar aquela conversa fosse a melhor maneira, pois o Eduardo é psicólogo, com um trabalho com pessoas que foram vítimas da violência do Estado e tinha um lugar de fala para estar ali.
Pastor Cláudio e as vítimas da ditadura. Foto: 4 Ventos Comunicação/Divulgação
CONTINENTEE como foi a experiência de filmar com o pastor Cláudio? BETH FORMAGGINI Eu sabia que precisaria fazer tudo naquele estúdio, que tinha que aproveitar ao máximo aquelas quatro horas, porque não sei se teríamos outra chance para filmar de novo. Então, tudo que você vê no filme, aquelas projeções, aquelas fotografias, foram projetadas na hora mesmo, e não adicionadas posteriormente na edição. O pastor é do Rio de Janeiro, mas mora em Vitória há muito tempo, tanto que tem um momento no filme em que diz que o DOPS do Espírito Santo era tão conhecido como o de São Paulo. Mandei para ele uma pesquisa e disse que queria falar com ele sobre aquela época em que ele era empregado do Estado para matar gente que se opunha à ditadora. Veja, ele tinha sido preso, acusado de matar a esposa, mas aquilo não me interessava. Não estava ali para acusá-lo ou para perdoá-lo, eu queria saber dos crimes políticos, queria saber do que ele faz a mando do Estado. Porque o mais importante não é saber quem matou Marielle. A pergunta tem que ser: quem mandou matar Marielle?
CONTINENTE O filme está em cartaz nesse mês de um ano de morte da vereadora Marielle Franco e também do aniversário do golpe de 1964, que hoje é visto como um “movimento” ou uma “revolução democrática”. Tendo feito esse documentário, como você percebe esse olhar que o Brasil joga para seu passado? BETH FORMAGGINI Acho complicado as pessoas pedirem a volta da ditadura, de um regime de exceção que não respeitava a dissidência, que perseguia os que defendiam ideias diferentes. O que o Estado pode fazer com esse cidadão? Em vez de respeitá-lo, o Estado vira uma ameaça: temos hoje Marcia Tiburi e Jean Wyllys morando fora do país por não se sentirem seguros, por representarem uma ameaça à ideologia que o país defende agora. Vivemos uma democracia?
CONTINENTE Há um aspecto alarmante no final de Pastor Cláudio, quando ele fala da “irmandade” que ainda hoje manda em tudo, dos mesmos militares que autorizavam e praticavam a tortura e depois foram trabalhar com a segurança de banqueiros do jogo do bicho. Como o país tem hoje um presidente com inegável ligação com as milícias, aquela colocação se agiganta. BETH FORMAGGINI É como se agora ele estivesse do outro lado do balcão. Ele sabia, como militar e agente diretamente implicado nos crimes de tortura, de muita coisa. Não apenas de quem cometia os crimes, mas de quem financiava e mandava. Ali ele está falando de como essas pessoas, depois da anistia e da redemocratização, apenas continuaram a fazer o que já faziam.
CONTINENTE Para fechar: o pastor Cláudio viu o filme? BETH FORMAGGINI Não sei. Espero que ele vá ver, de verdade. Assim como espero que o filme, de alguma forma, sensibilize as pessoas. Somos uma sociedade violenta e mal informada, então precisamos discutir a ditadura e falar sobre perseguição, tortura, morte e tudo isso que aconteceu não muito tempo atrás.