Entrevista

"O novo disco é bastante Francisco, El Hombre"

Banda conhecida por suas performances catárticas no palco se concentra em seu próximo disco, menos explosivo, mais introspectivo, previsto para ser lançado ainda este ano

TEXTO Thaís Schio

27 de Julho de 2021

A banda para a nova versão da música 'Roda viva'

A banda para a nova versão da música 'Roda viva'

Foto Júlia Rodrigues/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Entre setembro e outubro de 1967, pouco antes de protagonizar a intensificação da repressão e das perseguições políticas durante a ditadura militar, por meio do Ato Institucional nº 5, o Brasil conhecia uma das canções até hoje compreendida como símbolo de resistência: Roda viva. A música foi apresentada no 3º Festival da Música Popular Brasileira, transmitido, à época, pela TV Record. 

Escrita originalmente por Chico Buarque de Hollanda, para compor a trilha de sua primeira peça de teatro homônima, a faixa Roda viva foi pensada para o personagem fictício Benedito da Silva, um artista constantemente atropelado pelas tendências da indústria capitalista. Em sua temporada de estreia, um ano depois de a canção emplacar o terceiro lugar do festival da MPB, a peça ficaria marcada por um “incidente” liderado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que, por achar se tratar de outro grupo, o Grupo Opinião, acabou invadindo o teatro onde aconteciam as apresentações, agredindo os artistas e desconfigurando o cenário de Roda viva.

Por consequência da atmosfera opressora dos anos de chumbo, a canção incorporou tom político. Hoje, por descaso ou porque, como nos afirmou Karl Marx, a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa, a trilha ganha, no Brasil de 2021, novos episódios da “roda-gigante” e uma releitura criada pela banda Francisco, El Hombre para integrar o documentário A fantástica fábrica de golpes (The coup d'état factory). O filme, dirigido por Victor Fraga e Valnei Nunes, investiga as estratégias midiáticas que impulsionaram a quebra da ordem democrática decorrente do impeachment de Dilma Rousseff.

Motivados pelo convite dos diretores e pela dimensão histórica e política de Roda viva, a banda Francisco, El Hombre, formada pelos mexicanos Mateo Piracés-Ugarte (voz e violão) e Sebastián Piracés-Ugarte (voz e bateria), além dos brasileiros Juliana Strassacapa (voz e percussão) e Andrei Martinez Kozyreff (guitarra), não só aceitou fazer uma releitura da música, como incorporou variados ritmos tradicionalmente latino-americanos. É o caso da influência da bachata, estilo surgido na República Dominicana, além de outro clássico de Chico Buarque, Apesar de você.


Juliana Strassacapa, Andrei Martinez Kozyreff, Sebastián e Mateo Piracés-Ugarte. Foto: Júlia Rodrigues/Divulgação

Formado em 2013, o grupo de músicos adotou a alcunha da banda em homenagem à lenda colombiana de “Francisco, El Hombre”, trovador que venceu um duelo de acordeões com o Diabo e que costumava entoar sua poesia enquanto seguia viajando entre um lugar e outro. O personagem foi descoberto por Sebastián através da literatura de Gabriel García Márquez, no livro Cem anos de solidão (1967). Imagem coerente para a banda meio mexicana, meio brasileira, que, antes de ser nomeada ao Grammy Latino em 2017, pela canção Triste, louca ou má, percorreu a América Latina para experimentar outros ritmos e expressões artísticas enquanto fazia apresentações para arrecadar dinheiro. 

Em 2015, numa dessas viagens pela América, a banda chegou a ser assaltada enquanto realizava a turnê intitulada Mochilazo. Sem documentos, instrumentos, malas, carro e dinheiro, o grupo precisou pedir ajuda nas redes sociais, episódio que se tornou um divisor de águas, graças ao acolhimento instantâneo do público. Depois disso, Francisco, El Hombre lançou o EP La pachanga!, com seis faixas autorais. Um ano depois, em 2016, veio o primeiro disco, o SOLTASBRUXA, integrando canções frenéticas como BolsoNada, Calor da rua e também Triste, louca ou má, música que voltou a fazer sucesso enquanto trilha sonora da ex-BBB e queridinha do Brasil de 2021, a advogada paraibana Juliette Freire. 

Finalmente, em 2019, veio o RASGACABEZA, segundo álbum de estúdio da banda, ainda mais catártico, principalmente quando performado, ao vivo, em cima de um palco. Por isso, quem já teve a oportunidade de frequentar os shows da Francisco, El Hombre sabe bem que a formação de rodinhas punk, por exemplo, é algo esperado. Um frenesi que permeia grande parte do trabalho do grupo, além da fusão de ritmos e do teor político sempre afiados. 

Agora, neste novo momento de configurações epidêmicas, a banda se concentra em seu próximo disco, menos explosivo, mais introspectivo, previsto para ser lançado ainda este ano. Em entrevista à Continente, Andrei Martinez Kozyreff e Juliana Strassacapa nos deram algumas pistas do que será o caminho a ser trilhado no novo álbum. Também conversamos sobre a participação da banda na trilha sonora do documentário que será lançado no 42º Festival de Havana, em Cuba, e no Brasil, em 2022; sobre trabalho coletivo; repressão e os maiores delírios comunistas da Francisco, El Hombre. 



CONTINENTE Primeiro, como vocês estão dentro desta crise sanitária, política e social enquanto indivíduos e também enquanto banda?
ANDREI MARTINEZ KOZYREFF É uma loucura, estamos como todo mundo, malucos da cabeça, sem saber direito o que está acontecendo. Mas, enquanto grupo, acho que conseguimos reverter um pouco disso, porque puxamos um ao outro para fazer música. Estamos desesperados, mas mantendo uma base de apoio, sem deixar a peteca cair. Ano passado, a gente lançou, praticamente, um single por mês e, agora, estamos trabalhando no disco novo, com muitas participações, que vai sair.
JULIANA STRASSACAPA Também tem a fita de que, com qualquer resfriado, você entra em choque. Estou passando pelo segundo resfriado da pandemia e é muito chato. Você fica se sentindo radioativo. Mas que bom que a gente tem essa comunidade que é a Francisco, El Hombre para se amparar. Seguimos focando na arte, porque a arte ajuda a manter a saúde mental. 

CONTINENTE De onde surgiu a vontade para regravar o clássico de Chico Buarque?
ANDREI MARTINEZ KOZYREFF Foi o convite de um documentário (A fantástica fábrica de golpes), um doc sobre o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma, com várias entrevistas muito importantes. O pessoal convidou a gente e piramos na ideia de fazer. Fez todo sentido para o momento. O Mateo foi quem produziu a música e ele arrasou.
JULIANA STRASSACAPA É uma música que sempre rondou nosso imaginário. Qualquer pessoa que foi criada no Brasil da década de 1990 e 1980 teve Chico Buarque muito presente em casa, na criação, no imaginário. Está sendo muito bonito, neste momento da carreira, fazer versões de vários compositores. Fizemos essa versão de Roda viva, também fizemos a versão de Bebemorando, de Adoniran Barbosa e, logo menos, vamos fazer a versão de outra banda clássica que a gente nunca esperaria fazer. É interessante traduzir essas raízes da música brasileira através do nosso filtro. 

CONTINENTE Vocês falaram que vai sair novo álbum, já tem data de lançamento? O que vocês pensaram para ele?
JULIANA STRASSACAPA Vai sair esse ano (risos)! O novo disco é bastante Francisco, El Hombre, nossa casa, nossa cara. Buscamos explorar várias raízes. A gente sempre gostou de diversas influências musicais e, com todas as viagens do grupo, amplificamos esse caráter eclético ainda mais. Tudo que a gente absorveu de cada canto, cada região, cada país, foi se acumulando. E, num primeiro momento da Francisco, isso veio de uma maneira um pouco afobada, queríamos explorar todas as facetas ao mesmo tempo, mas sem muita maturidade. Por isso, no disco anterior, RASGACABEZA, a gente decidiu mergulhar de cabeça em uma só dessas facetas, que é a punk rock, mais urbana, mais contestatária, mais densa e mais dada ao momento daquela época, 2019, no Brasil. Mas, agora, muitas coisas que a gente vivenciou ao longo das viagens, músicas que deixamos nas gavetas, tiveram a chance de decantar e de serem olhadas, resgatadas. Então, tem músicas datadas de cinco a sete anos atrás que estamos trazendo de volta. Vai ser um disco bem maduro, sobre o que a gente é mesmo, mas com maior integridade, mais consciência da nossa identidade.
ANDREI MARTINEZ KOZYREFF Total. E tem o lance de ter sido gravado aqui em Piracicaba, interior de São Paulo, no estúdio LAB Sound, onde vivemos um mês isolados. O que acabou deixando a gente bem à vontade para gravar muitas músicas; explorar várias facetas; cortar pouco; trabalhar juntos nos mínimos detalhes. Foi um processo orgânico, algo que, na verdade, a gente sempre quis fazer. Nós vivemos o processo e, por causa disso, fizemos algo bem nossa cara. 


Foto: Júlia Rodrigues/Divulgação

CONTINENTE Aproveitando que vocês falaram das muitas influências da banda, acho que seria interessante se vocês se apresentassem de uma maneira não tão curricular. Quem é Juliana, quem é Andrei?
JULIANA STRASSACAPA Eu sou uma bruxa no meio de um monte de ateu (risos). Sinto que sou um canal e tenho tentado, cada dia mais, calibrar esse canal, em termos de receber músicas e mensagens. Sinto que nenhuma música vem cruamente de mim, eu simplesmente sirvo de canal para trazê-las à tona e isso tem muito a ver com o desenvolvimento mediúnico, de se ver como esse canal e trabalhar essa conexão e a possibilidade de trazer as coisas à tona. Antes de mais nada, sou algum tipo de curandeira. Um passarinho que fica cantando.
ANDREI MARTINEZ KOZYREFF Eu não sei o que dizer, mas sei o que tenho sido e sentido nesses últimos anos. Tenho sido uma pessoa que confia, cada vez mais, no trabalho coletivo, na troca. Tenho sido, cada vez menos, individualista e, ainda mais nesses últimos anos de banda, isso mudou muito, não só o meu jeito de ver o mundo, mas todo mundo da banda. A possibilidade de um trabalho coletivo saudável, onde todo mundo é ouvido e possibilitado de colocar um pouco de si. Jogar essas sementes têm sido massa e olhar de longe para tanto tempo de banda e ver essas coisas germinando entre nós tem me movido bastante. 

CONTINENTE Sinto que os discos de vocês têm uma transição estética muito alinhada com a performance explosiva da banda ao vivo. Digo isso porque, em 2019, estive num show de vocês no Festival de Inverno de Garanhuns e, apesar do RASGACABEZA ser uma novidade na época, consegui, mesmo super cansada da cobertura do festival, pular com vocês e com a galera até o fim do show. Ali, eu percebi a dimensão do corpo presente no álbum, da importância da ação, do elemento fogo. Isso foi algo pensado ou aconteceu de maneira orgânica?
ANDREI MARTINEZ KOZYREFF Foi pensado, mas foi natural também. A gente percebeu que existia uma diferença muito grande do show do SOLTASBRUXA para o disco. Desde o La pachanga! era assim, o disco era bem mais tranquilo do que o show. Porque, no show, a gente realmente muda as coisas, prolonga e mistura as músicas, faz outro produto mesmo. No RASGACABEZA, isso foi pensado. Quer dizer, como levar a energia do show para o disco? Ainda mais nesse contexto de São Paulo, capital, loucura… Como trazer toda essa maluquice dentro de um disco? Na ironia de que depois a gente fez um show muito mais intenso pro RASGACABEZA, mas até o RASGACABEZA parece ser mais ameno que o show hoje em dia (risos). A gente conseguiu explorar mais o show, porque é muito difícil passar a vibe de um show para o disco. 

CONTINENTE E como vai ser o movimento desse terceiro álbum? Quer dizer, que tipo de movimento ele vai invocar?
JULIANA STRASSACAPA Eu sinto que esse disco que está vindo agora explora sentimentos. No SOLTASBRUXA, estávamos menos maduros, ainda entendendo quais eram as nossas facetas, o que a gente gostava de fazer, quais sonoridades a gente invocava sem pensar muito sobre. Neste momento, agora, sinto que há tanto um senso de integridade coletiva, do que é esse coletivo, de quem somos, quanto um senso de maior consciência individual, de cada um de nós que compõe o coletivo. Não vai ser um disco só de fogo no parquinho, mas vai ter uma energia mais contestatária também. Vamos convidar as pessoas para colocar para fora sentimentos engavetados, soterrados de alguma maneira, explorando várias facetas: facetas alegres, de manifestação, de posicionamento político, tanto do grito quanto do choro pela perda e/ou processo traumático. O disco traz também o sentimento do novo... Não adianta a gente só bater na mesma tecla do caos para sempre, já sabemos que o mundo tá no caos, né? Então, sobre o que as pessoas tão falando menos? O que vem depois da tempestade? Trazemos um pouco disso, um pouco de acalanto. Não consigo falar sem dar spoiler, mas vem muita coisa por aí (risos). 


Foto: Júlia Rodrigues/Divulgação

CONTINENTE De onde veio a vontade da Francisco, El Hombre de misturar ritmos, de viajar e experimentar novas culturas? Como vocês explicam esse desejo de estar em variados movimentos sonoros e estéticos?
ANDREI MARTINEZ KOZYREFF O Mateo e o Seb sempre tiveram esse espírito viajante, muito por causa da família deles. Eles não têm lugar fixo e acabaram nos levando a conhecer outras culturas. Foi bem isso de pegar o carro para ver o que aconteceria. Acabamos conhecendo mais coisas do que imaginávamos, e essas coisas demoram para cair a ficha, para se tornar parte do seu repertório. A gente saiu e conheceu milonga, cumbia, vários estilos. Foi algo que aprendemos a fazer e que sempre gera bons frutos. É isso que a gente tenta colocar no nosso som, mas não de uma forma colada, tentamos entender a essência e encaixar no que fazemos. 

CONTINENTE Como está sendo a construção dessas novas composições em um momento sem a dimensão do corpo, quer dizer, das performances em palco?
JULIANA STRASSACAPA Deu tempo de sossegar um pouco, o show é realmente uma coisa catártica. Tem muitas histórias de artistas que entram em depressão depois de uma turnê, porque, de fato, é viciante, é maravilhoso, é instigante, mas, ao mesmo tempo, é desgastante e a gente fica sem tempo para absorver, de fato, o que foi vivenciado. Então, nesse momento, entendemos melhor quem cada um é dentro e fora desse coletivo. Tivemos espaço para desenvolver projetos paralelos e para enxergar com outros olhos nosso coletivo, entendendo que, para além de uma banda, somos uma comunidade, uma família de pessoas que se amam e gostam de trabalhar juntos. A gente se reencontrou e, por isso, as imersões foram importantes. Primeiro para trazer todas as ideias, entender o que cada um tem na sua gaveta, sem julgamentos, só ouvindo. Ter dado essa pausa possibilitou ter um momento mais cauteloso por tudo que já havíamos criado. Talvez no frenesi, a gente fizesse novas músicas e essas outras músicas continuassem na gaveta para sempre.. Não sei, não dá para saber. 

CONTINENTE A Francisco, El Hombre sempre fala muito de política. Isso é muito interessante, especialmente quando vários artistas jovens e atuais preferem não discutir certos assuntos. Vocês têm medo? Já sofreram repressão?
JULIANA STRASSACAPA A gente quase foi preso no Rock in Rio, em 2019, né? 

CONTINENTE Nossa, sério? Eu nem sabia disso, desculpa.
JULIANA STRASSACAPA Imagina, ninguém sabe, na verdade.
ANDREI MARTINEZ KOZYREFF E já rolou de cair vídeo nosso no Youtube, ataque de robô… A gente está numa posição muito privilegiada, porque não estamos na linha de frente do perigo. Mas não se posicionar nunca foi algo que cogitamos fazer. Viemos do punk rock, onde música e política sempre andaram de mãos dadas. Nunca foi uma dúvida. Preferimos nos posicionar e não ter fascistas nos seguindo, do que ficar em cima do muro, sendo ouvido por gente mal caráter. A gente aprendeu com o movimento punk e com todas as bandas que curtimos. E não só punk. Tem a Nina Simone. Tem toda uma galera que participa de movimentos sociais. Se posicionar sempre foi necessário, principalmente em um momento como agora, não dá para arredar o pé.
JULIANA STRASSACAPA Tem gente que faz arte como expressão do próprio umbigo, né? E tá tudo bem… Mas arte vai além disso. Arte é um veículo de comunicação, uma maneira de comunicar o que está acontecendo neste tempo. Arte tem tudo a ver com contracultura. Se todo mundo está indo para o mesmo fluxo, então não é por ali que vamos seguir. Arte não é puramente entretenimento, assim como também não é só política. Nossa verdade é se colocar no mundo enquanto pessoas sensíveis, presentes em um momento histórico e social, presentes nas relações, valorizando a vida das pessoas e as conexões com as pessoas. A gente transparece o que vive, o que sente, o que defende e seria muito benéfico se as pessoas fizessem isso também, porque teríamos mais nitidez de em quem estamos acreditando. Não é uma questão de separatismo, mas de responsabilidade. Se todo mundo tivesse consciência sobre o próprio alcance, maior seria a responsabilidade. 


Foto: Júlia Rodrigues/Divulgação

CONTINENTE Para finalizar essa conversa, vou pegar o gancho “delírio comunista”, a expressão que a Juliana Paes usou e que acabou virando meme por se tratar apenas de direitos básicos, para perguntar: qual o maior delírio comunista da Francisco, El Hombre?
ANDREI MARTINEZ KOZYREFF Moradia e educação para todes. Comida e arte, só isso.
JULIANA STRASSACAPA Acho que, infelizmente, o maior delírio comunista já passou. A gente pensava que o Bolsonaro era só uma piada, né? E a gente deu evidência para essa pessoa, pensando que não passaria de uma piada... E olha no que deu. Eu teria escolhido não ter dado todo esse Ibope, essa atenção. Infelizmente, esse foi o pior delírio comunista.

THAÍS SCHIO é jornalista e produtora cultural.

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