Entrevista

"O bolsonarismo é um projeto que não será facilmente derrotado"

Uma das vozes mais lúcidas no cenário atual, a professora, economista e escritora Laura Carvalho fala sobre a necessidade de ampliarmos a discussão econômica no Brasil de contradições abissais

TEXTO LUCIANA VERAS

29 de Janeiro de 2021

A economista Laura Carvalho

A economista Laura Carvalho

FOTO Editora Todavia/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Se alguém chegar ao perfil de Laura Carvalho no Twitter, não há de tardar para ver suas credenciais: economista, professora da Faculdade de Economia e Administração da USP, doutora pela New School for Social Research, colunista do Nexo e autora de dois livros fundamentais para compreender o percurso econômico do Brasil nas últimas duas décadas – Valsa brasileira – Do boom ao caos econômico (2018) e Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado (2020), ambos lançados pela editora Todavia. Flamenguista e uma das autoras do programa de governo de Guilherme Boulos (PSOL) para sua candidatura às eleições presidenciais de 2018 também se enfileiram nas definições que podem ser atribuídas a essa paulistana de extensa família pernambucana.

Filha de Maria Tereza, estatística, e Luiz Antônio, jornalista, Laura Barbosa de Carvalho nasceu em 1984, em São Paulo, mas cresceu no Rio de Janeiro. “Minha mãe é pernambucana, meu pai é maranhense, tenho avós pernambucanos e mais de quinze primos e sete tios morando por aí”, conta numa conversa telefônica transcorrida em uma tarde de 2020, meses depois da Todavia soltar Curto-circuito dentro da coleção 2020 – Ensaios sobre a pandemia. Ela tem uma voz com sotaque carioca, como podem atestar os ouvintes do Entretanto, o podcast que apresenta ao lado de Renan Quinalha e que contribui para ratificar um dos seus papéis nessa contemporaneidade brasileira: o de democratizar o acesso ao debate econômimo, bem como a própria discussão em si, trazendo o “economês”, como no slogan do programa, para pessoas comuns cuja última lembrança de mulher economista remeta a Zélia Cardoso de Mello ou Maria da Conceição Tavares.

Quando indagada, por exemplo, sobre possíveis semelhanças entre o que estamos vivendo agora, com alta dos preços nos supermercados, e a era Cruzado dos anos 1980, ela responde de maneira incisiva e compreensível. “Pelo fato de termos essa memória inflacionária, todo e qualquer tipo de choque que leva a uma alta de preços acaba trazendo de volta esse medo, esse tempo. A alta de preços concentrada em alimentos afeta muito a população mais pobre, mas não se trata, de maneira alguma, de um fenômeno generalizado, de uma situação fora de controle. Pelo contrário, ainda estamos com um nível de inflação abaixo do piso. O problema é a falta de crescimento econômico numa crise profunda, é a alta do desemprego... É com isso que temos que nos preocupar”, pontua.

Na entrevista que se segue, ela discorre sobre seus dois livros; o papel do Estado em meio a uma grave crise; o auxílio emergencial, o programa de transferência de renda do governo federal que, nos meses pandêmicos, despejou o equivalente ao seis vezes o orçamento anual do Bolsa Família - “é um dos fatores que trouxe popularidade ao governo, mesmo com o governo tendo um objetivo muito diferente, que era um programa com metade do valor e atingindo muito menos pessoas”; e a importância de popularizar a discussão sobre Economia. Longe de fazer previsões, o que Laura Carvalho oferece é uma análise arguta sobre questões que não interessam apenas a professores e economistas como ela, e sim a todos nós que moramos nesse país de contradições abissais como o Brasil.

CONTINENTE Você escreveu Valsa brasileira, livro que se tornou essencial para entender o que aconteceu no Brasil na última década, e o que nos trouxe até aqui, e que ajudou a popularizar a discussão sobre a economia. Na época do lançamento, em 2018, você já escrevia para a Folha de São Paulo, e lembro que nesse ano era um dos volumes que mais circulava, em especial entre pessoas que, como eu, não eram tão afeitas ao debate econômico. Como você enveredou por esse caminho? Foi a crise brutal do capitalismo, foi o impeachment de Dilma Rousseff ou foi a agudização de tudo isso já sob o governo Michel Temer?
LAURA CARVALHO Na verdade, foi uma combinação de coisas. Entre 2015 e 2016, vivemos uma crise muito profunda, que ganhou uma interpretação de senso comum de que era fruto apenas de uma gastança desenfreada e, portanto, a solução passava por uma redução dos gastos públicos e do tamanho do Estado. Essa foi a visão que ganhou o debate, à época, e foi justamente quando eu estava começando a escrever na Folha, em 2015. Foi nesse período em que passei a tentar me comunicar com um público mais amplo e que coincidiu com o período dessa crise. Isso me deu a possibilidade de construção de um diagnóstico, que fosse além desse que era, a meu ver, muito simplista, para as causas dessa crise. Fui buscar outros fatores. O período anterior, os anos 2000, tinha sido de crescimento econômico maior, então era preciso entender o que era fruto dos acertos do governo e do cenário internacional e, depois, o que era fruto dos erros do governo e de uma crise que nos afetou em tudo, a partir de preços como o do petróleo. A questão principal sempre foi essa de pensar uma leitura crítica, que trouxesse mais elementos do que aquilo que vinha sendo trabalhado, de forma mais frequente, na imprensa. A partir disso, claro, Valsa brasileira acabou ganhando um outro papel, que vem sendo um dos meus propósitos na hora de fazer o debate econômico: introduzir conceitos de economia e fazer o esforço de trazer o debate para uma linguagem mais acessível. Como eu também estava escrevendo no jornal na época, acho que o livro conseguiu trazer uma quantidade maior de pessoas que antes não liam coisas de economia, ou que não estavam a par do debate econômico. Essa tentativa de se comunicar com um público cada vez mais amplo acabou virando uma das minhas tarefas principais. Hoje em dia, para além de divulgar pesquisas científicas e de tentar interpretar o Brasil, me sinto muito nesse papel de professora de Economia para pessoas que não estudam Economia.

CONTINENTE Sou sua seguidora no Twitter e sei que você se engaja nas discussões por lá, como também tem esse zelo em democratizar o acesso ao debate econômico no Entretanto, o podcast que divide com Renan Quinalha, ajudar a navegar os ouvintes “entre o economês e o juridiquês”. Duas perguntas: você se surpreendeu com a repercussão de Valsa brasileira? Acredita que no Brasil a discussão sobre economia ainda está restrita, majoritariamente, aos castelos da academia, aos bancos, e nós, a população, muito embora sejamos reféns dessa economia, achamos que esse debate pertence a outras pessoas e não cabe na nossa vida comum?
LAURA CARVALHO Sim, me surpreendi, até porque eu acho que, quando se escreve um livro no Brasil, nunca se imagina que o livro vá vender muito. Isso está muito claro, com os dados do nosso mercado de livros, que temos um público leitor tão pequeno que talvez venham daí todos os nossos problemas estruturais. Não escrevi Valsa brasileira pensando em vender muito, foi uma surpresa mesmo, até porque o livro teve nove reimpressões. Acho que chegou no momento pré-eleitoral e as pessoas estavam buscando interpretações para o que estava acontecendo com a economia. Mas de fato, foi surpreendente o tamanho que teve e, a partir daí, me abriu os olhos para uma outra possibilidade, que era trazer para esse debate sobre a economia as pessoas que nunca estiveram no debate. Antes, quando eu escrevi o livro, acho que o objetivo era oferecer uma interpretação, um diagnóstico, que competisse, dentro desse debate, com outras análises. Eu tinha até uma ideia de que o livro ficaria como um diagnóstico, uma interpretação, e que eventualmente ele até poderia ser mais lido no futuro, sobre esse período histórico, do que agora. Mas o que aconteceu é acabei trazendo muita gente para esse debate e, sim, passei a pensar um pouco mais sobre isso, colocar isso também como um objetivo. Me parece que no Brasil, e não só no Brasil, os economistas tendem a buscar essa linguagem que de algum jeito bloqueie as pessoas do debate, que dê uma aparência técnica a um debate que é sempre político em algum grau. É evidente que a economia é uma área que, claro, tem toda uma teoria, tem teorias distintas, vertentes diferentes, técnicas que podem ser usadas, estatísticas que podem ser usadas, mas isso não significa que ela vai justificar uma única alternativa diante de uma determinada situação. Eu acho que toda essa aparência técnica esconde, na verdade, um debate que é político. E toda a sociedade brasileira deveria estar participando desse debate. E sim, isso é verdade no mundo inteiro, e no Brasil essa discussão talvez seja mais dominada por um tipo de pensamento, mas acho isso vem mudando, desde a crise de 2009, agora com a pandemia, e estamos vendo essa maneira das pessoas pensarem a economia dentro de uma centralidade maior, a partir de questões como a desigualdade.

CONTINENTE Por falar em desigualdade, me chamou muita atenção um dado destacado em um dos episódios do Entretanto: no Brasil, cerca de 1% da população tem mais do que um quarto de toda a renda. A discussão econômica também é, como você disse, eminentemente política. Como é para você ter esse papel de difundir o debate sobre economia para um público mais amplo em um país desigual como o nosso, em que o fosso entre o topo e a base da pirâmide é enorme e no qual essa diferença parece ter se aprofundado durante a pandemia?
LAURA CARVALHO Acho que tudo isso torna ainda mais urgente essa discussão. Somos um país com esse alto grau de concentração de renda, portanto, um país onde as estruturas de poder e de influência sobre o sistema político são afetadas por essa desigualdade e a reproduzem de várias maneiras. É ainda mais importante a abertura do debate econômico para que a sociedade consiga se mobilizar em torno de alternativas, de políticas que não reproduzam as desigualdades, e não apenas atendem a esses interesses poucos. Enfim, isso só torna ainda mais grave o fato da desigualdade ser tão alta, dessa concentração tão alta estar garantida no topo da pirâmide, e essa tendência dos economistas de afastarem as decisões tomadas do conjunto da população.

CONTINENTE Como você analisa essa discussão no Brasil acerca do aumento da taxação sobre as grandes fortunas, sobre a possibilidade de quem ganha mais, quem tiver uma renda mais alta, pagar mais imposto? Considera que isso seja viável e aplicável no país de hoje?
LAURA CARVALHO Eu acho que a gente tem muitos impostos, em particular o imposto de renda e outros sobre patrimônio, que claramente estão abaixo, em termos de alíquotas efetivas cobradas para o topo da pirâmide, do que aquilo que é cobrado em outros países. Sem dúvida, se há espaço em outros países que possuem uma tributação bem mais alta do que a nossa, aqui é que tem espaço mesmo. Mas me parece que, às vezes, no debate no Brasil, se você considera que um imposto sobre grandes fortunas é aquele que vai gerar mais recurso para gastar com outras coisas, eu diria que, nesse sentido, é o oposto: o imposto sobre renda acumulada, sobre grandes fortunas, vai ajudar a reproduzir essas desigualdades ao longo do tempo. Porque as pessoas que já acumularam muito acabam tendo rendimentos sobre essa riqueza, o que de alguma forma mantém essas desigualdades eternas. Do ponto de vista do poder de arrecadação, o imposto de renda é melhor por gerar muito mais possibilidade. Isso significa não só cobrar mais imposto de renda, mas acabar com as isenções para dividendos, que é um dos excessos de hoje, quando quem tem renda do capital não paga imposto de renda, e aumentar a própria alíquota máxima, que hoje é de 27,5%, que é baixa em termos globais, para quem está nesse 1% mais rico. Sem dúvida alguma, isso poderia ser feito.

CONTINENTE Como se deu o processo de escrita de Curto-circuito no meio dessa loucura toda, no redemoinho dessa grave crise sanitária que nos afeta individualmente e como nação? Você provocou a Todavia ou a editora lhe convocou?
LAURA CARVALHO Foi a convite da editora, que resolveu criar uma coleção de ensaios sobre 2020, sobre a pandemia. Fui procura e não quis, quando me trouxeram essa possibilidade, fazer algo que fosse uma interpretação definitiva do que é esse momento. Me parece que a gente estava no meio de uma crise inédita, em que todo mundo sabia muito pouco sobre o que esperar, sobretudo os economistas, que sabem menos ainda. O que acabou surgindo como ideia foi usar exemplos concretos da pandemia para rediscutir o papel do Estado. Para trabalhar as funções do Estado, voltando no tempo e vendo como elas surgiram, como mudaram a maneira dos economistas pensarem e como, aqui no Brasil, a gente poderia repensar essas funções. É um livro sobre a pandemia, mas não é sobre a pandemia; é sobre o Estado brasileiro, sobre essas políticas econômicas aplicadas no nosso país e no mundo que entraram em curto-circuito quando as necessidades ficaram claras no momento da pandemia.


Valsa brasileira e Curto circuito: lançamentos da Todavia. Foto: Divulgação

CONTINENTE No contexto da pandemia, até mesmo os liberais e neoliberais que votaram em Jair Bolsonaro, talvez por causa do liberalismo personificado na figura do ministro Paulo Guedes, devem estar vendo a importância de termos um Estado forte. No seu livro, você delineia as cinco funções do Estado: investidor, estabilizador, protetor, prestador de serviço e empreendedor. Como estamos agora? Pensando nessa perspectiva que você aponta em Curto-circuito, o Estado brasileiro é um pouco de tudo ou não é nada?
LAURA CARVALHO Na verdade, a pandemia claramente, e isso tem a ver com título do livro, provocou um curto-circuito no discurso anterior do Estado mínimo e da retirada do Estado de todos os seus papéis da economia, e a realidade se impôs. E demandou uma série de atuações, ainda que essas atuações possam não ter sido, às vezes, na magnitude necessária ou possam ter tido problemas de desenho. Mas o fato é que tanto o Congresso, a partir da pressão da sociedade, como o próprio governo, a partir da pressão do Congresso, aprovou o auxílio emergencial e isso acabou mudando o rumo da política econômica, ao menos temporariamente. Do ponto de vista da política social, o auxílio emergencial é algo muito substantivo, ainda que a gente possa criticar em alguns casos. É um programa que foi capaz de assistir metade da população brasileira, num contexto de crise profunda, e que, enquanto esteve em vigor, foi capaz de neutralizar o aumento da desigualdade no mercado de trabalho, que a pandemia exacerbou. Isso é algo muito significativo e que ao menos nos permite observar a capacidade de destinar recursos substanciais do orçamento público os mais vulneráveis, ou seja, de realmente reverter a pobreza e reduzir a desigualdade.
De fato, o orçamento público tem essa capacidade quando é destinado a esse fim. Isso nos leva a pensar para a frente, sobre o que pode ou não pode ser feito do ponto de vista da expansão das redes de proteção social, do mercado de trabalho, de caminhar na direção de uma frente mais ampla e permanente. É claro que o governo não tem interesse em fazer isso, assim como tampouco tem interesse de desenvolver as outras funções que abordo no livro, que demandam mais uma visão de longo prazo. O que a gente está vendo é o retorno para uma política de corte nos gastos públicos, em um contexto em a economia e área da saúde ainda precisariam de recursos.

CONTINENTE Um dos diagnósticos que você sinaliza no livro é que a pandemia teria levado o bolsonarismo a esse curto-circuito. Mas o bolsonarismo parece sobreviver, navegando nas ondas do capital e da popularidade advinda do auxílio emergencial e dentro de uma lógica abjeta de menosprezar a gravidade do que estamos a viver. Que olhar você lança para o bolsonarismo agora?
LAURA CARVALHO Na verdade, Curto-circuito não é um livro sobre política e nem faço esse tipo de julgamento sobre o que vai ou não acontecer do ponto de vista político. O que me parece que entrou em curto-circuito no bolsonarismo foi justamente o discurso da equipe econômica de um Estado mínimo. E sim, nós vimos, e aliás a cada dia temos demonstrações disso, que no projeto bolsonarista, esse pilar do fundamentalismo do mercado, que fez parte da plataforma do bolsonarismo nas eleições de 2018, foi ficando cada vez mais frágil e entrando em contradição com os objetivos de conquista de popularidade em meio a esse contexto atual de pandemia. Então, na verdade, aquilo que diagnostiquei, que é o título do livro, é essa contradição no projeto, que ficou cada vez mais clara entre a ala militar e a ala da equipe econômica, entre o próprio objetivo de ganho de popularidade e o projeto dessa equipe. Me parece que isso está ainda mais em evidência agora do que estava no momento em que o livro foi escrito. Essas coisas, essas tensões e esses conflitos externos, foram crescendo. Agora, quando eu encerrei o livro, coloquei que isso significa que o bolsonarismo está numa certa encruzilhada: de um lado, pode haver uma guinada da política econômica, uma percepção de que o auxílio emergencial, por exemplo, trouxe alguma popularidade, como já estava previsto ali em junho, quando esses recursos saíram. Essa é uma possibilidade de mudar a política econômica daqui pra frente, com uma expansão do orçamento para essas áreas. A outra possibilidade, que também está colocada, é de um retorno a uma política de austeridade maior, em 2021, que sem dúvida traria custos políticos, além de econômicos. Em ambos os casos, e isso eu coloco no livro, você tem um risco para a democracia. No primeiro caso, mesmo com a guinada, e isso depois ficou claro nas pesquisas, esse apoio a um projeto autoritário, que ainda por cima ganhou o apoio popular por meio de programas sociais, torna esse projeto ainda mais perigoso. E do outro lado, a escolha por um retorno a uma política de austeridade, de corte nos gastos públicos num quadro econômico e social trágico como o atual, traz um custo social enorme e isso também é horrível. E é um risco para a democracia também. O que estava colocado eram esses dois caminhos, ambos muito perigosos, e acho que ainda não está claro qual o que a gente vai seguir. Mas o que está mais claro ainda é que o bolsonarismo é um projeto que não será facilmente derrotado.

CONTINENTE Ou seja, nós é que estamos nessa encruzilhada, entre a cruz e a espada, para lançar mão de um clichê surrado. Agora uma curiosidade: como você virou o que a cantora e compositora Teresa Cristina sempre chamou nas suas lives de “a maior economista do Brasil”? Economia fazia parte das suas conversas na adolescência? Queria entender a sua trajetória até se tornar uma das vozes mais lúcidas, e mais legais de acompanhar, na democratização da discussão econômica atual.
LAURA CARVALHO Na verdade, quando eu fiz vestibular, não tinha nem clareza do que era Economia. Prestei vestibular para Economia e Direito. Comecei Direito e Economia junto e acabei gostando. Minha mãe é professora de Estatística, ela se formou em Matemática e fez doutorado em Estatística. Meu pai é jornalista, e de alguma maneira, acho, Economia acabou juntando um pouco das coisas que eu gostava, pelas quais me interessava. Fui seguindo, fiz mestrado, fiz um doutorado e em nenhum momento estava claro que eu faria debate público. Eu nunca trabalhei pensando em me tornar uma economista do debate público. Sempre me concentrei naquilo que gostava de estudar, e a partir daí foi virando trabalho de pesquisa e, de uma hora para outra, meio que caiu no meu colo isso de escrever na Folha de São Paulo. Foi, na verdade, escrever no jornal que me trouxe esse outro mundo, de comunicação e de interface com mais gente, com pessoas que estão fora da área. Então, até escrever na Folha, isso não me passava pela cabeça.

CONTINENTE Você escreveu muito tempo na Folha, hoje é colunista do Nexo, já lançou dois livros e é uma professora universitária. Como é para você ser uma intelectual no momento em que o pensamento crítico é atacado no país? Em que o jornalismo, a ciência, as artes, a cultura e a criticidade parecem incomodar muito ao governo?
LAURA CARVALHO É claro que estar no ambiente das redes sociais, nesse contexto, exige a gente ter uma certa sabedoria, saber não se deixar afetar por qualquer tipo de comentário. No final das contas, em 2020 fez cinco anos que comecei a escrever na Folha de São Paulo. Nesse período fui aprendendo a saber travar esse debate, essas batalhas, e conseguir ganhar o espaço para chegar àquelas pessoas que são interessadas, mas sem se afetar pelo ambiente de ódio da internet. Sem dúvida, é um ambiente cada vez mais inóspito, ainda mais para mulheres e para pessoas que fogem do pensamento conservador, de direita, e acho que isso está muito claro. E tem pessoas que sofrem violência. Quem trabalha em áreas ligadas a esse conservadorismo religioso, àquilo que acaba sendo classificado como “ideologia de gênero”, sofre muito mais, sofre ameaça mesmo. Não é o meu caso; até hoje, nunca tive alguma ameaça mais séria que de fato me inibisse nesse debate. Outras áreas, inclusive jornalísticas, têm sofrido muito mais. E dentro da minha área, às vezes é mais difícil a convivência com outros economistas do que com as pessoas na internet.

CONTINENTE Vamos viajar em um exercício hipotético e supor que tenhamos um resultado positivo para a esquerda nas eleições presidenciais de 2022 e o presidente, ou a presidenta, que for eleita lhe chame para ser ministra da Economia, ou da Fazenda. Você aceitaria? E em estando no cargo, o que faria primeiro, diante dessa vasta contradição que é o Brasil?
LAURA CARVALHO Olha, é difícil até imaginar esse cenário. Acho que a gente está muito distante do país em que eu seria ministra da Economia. E de fato nem é algo que move, no sentido de que quem ser ministro da Economia, em geral, não diz o que pensa. Ou faz um debate, em geral, já com algum pensamento sobre como acalmar as pessoas numa eventual situação. Sério, essa nunca foi a minha postura. Sempre gostei de falar exatamente aquilo que penso e acho que isso já denota uma escolha que não é essa. Mas, de toda maneira, acho que assumir um ministério da Economia numa crise econômica demanda, a meu ver, uma ação urgente no sentido de, de um lado, estender os mecanismos de proteção social, e aí entra a discussão da renda básica, e do outro, aumentar a tributação das altas rendas e patrimônios, como maneira de sustentar isso. Tornar o orçamento público mais redutor de desigualdade, seja pelo lado dos impostos, seja pelo lado dos gastos, é aquilo que é mais urgente, eu diria, no Brasil de hoje. E que nos ajudaria em várias outras tarefas também, tanto no crescimento econômico como em outros objetivos sociais e políticos.

CONTINENTE
Para fechar: você se considera uma pessoa otimista?
LAURA CARVALHO Eu me considero uma pessoa que é pessimista da razão e otimista da vontade. Acho que tem muita coisa que pode ser feita, não acho que a gente tenha limitações de caráter técnico para muitas dessas coisas e eu gosto de criar agendas propositivas e positivas para o país. Isso, de algum jeito, já revela um certo otimismo. Por outro lado, eu também enxergo que há restrições políticas enormes, gigantescas, para implementação dessas agendas e essas restrições políticas me tornam pessimista num curto prazo.

LUCIANA VERAS
 é repórter especial da Continente.

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