"Coisas ruins podem parecer muito naturais"
Em 'O venerável W.', Barbet Schroeder dá voz a Ashin Wirathu, o budista que incita a violência à minoria muçulmana rohingya em Mianmar, uma das maiores crises humanitárias do momento
TEXTO Mariane Morisawa
27 de Novembro de 2017
O cineasta Barbet Schroeder, autor da 'trilogia de mal'
Foto Frame Youtube
Naquilo que chama de sua trilogia do mal, Barbet Schroeder já esteve frente a frente com tipos assustadores, como o ditador de Uganda Idi Amin Dada, responsável por milhares de mortes em seu país, em General Idi Amin Dada: a self portrait (1974), e Jacques Vergès, que defendeu culpados de terrorismo e genocídio como o nazista Klaus Barbie e o líder do Khmer Vermelho Pol Pot, em O advogado do terror (2007). Em O venerável W., exibido fora de competição no último Festival de Cannes, seu personagem é Ashin Wirathu, acusado de instigar o ódio contra a minoria muçulmana rohingya em Mianmar, cerca de 1 milhão de pessoas numa população de 54 milhões, uma das maiores crises humanitárias do momento.
Estima-se que 600 mil rohingyas tenham atravessado a fronteira com Bangladesh desde agosto de 2016. Imagens feitas por drones registram mares de gente atravessando florestas e rios e estradas precárias para escapar da perseguição, que inclui a queima de casas e plantações, muitas vezes com ajuda dos militares do país, que já esteve diversas vezes sob ditadura militar. O governo, porém, pelo menos no papel, é civil, liderado pela primeira-ministra Aung San Suu Kyi, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991 justamente por sua luta contra as injustiças dos militares. A falta de ação de Suu Kyi provocou pedidos de que seu Nobel fosse revogado. O mais surpreendente: Wirathu é um monge budista, uma religião raramente associada a violência. Seu discurso, porém, em nada difere de outros líderes populistas e nacionalistas, incluindo o uso de fake news para incitar o ódio aos muçulmanos.
Ashin Wirathu em cena de O venerável W. Foto: Divulgação
As raízes da tragédia em Mianmar, que os mais cautelosos chamam de limpeza étnica, e os mais incisivos, de genocídio, já estavam presentes em 2016, quando Schroeder esteve no país conversando com Wirathu, que o diretor de 76 anos prefere chamar simplesmente de W. “Até seu nome me aterroriza”, confessou em entrevista à Continente, em Cannes. Outros massacres já tinham sido perpetrados, e Wirathu tinha sido preso em 2003 acusado de fazer discursos inflamatórios. Muitos deles são vistos no filme. Schroeder, um simpatizante do budismo, que considera a religião do ateísmo, já que não tem deus, passou um mês com visto de turista, falando com Wirathu. Logo a equipe chamou a atenção dos militares, que mandaram recados via celular. O cineasta saiu do país às pressas e, quando tentou voltar, seu visto foi negado. Na entrevista a seguir, ele conta como conseguiu terminar o filme e suas impressões de Wirathu.
CONTINENTE O budismo é conhecido por promover a paz e a quietude. Mas o filme faz barulho sobre esse líder que prega coisas absurdas.
BARBET SCHROEDER Sim! Parte da surpresa é que ele lembra outros líderes em outras situações, pessoas que podem existir no seu país ou no meu. E são coisas que aconteceram antes e podem acontecer novamente. É isso que dá medo.
CONTINENTE Mas ele representa o budismo.
BARBET SCHROEDER Sim. Mas, como dá para reconhecer coisas que estão acontecendo em outros lugares, e as coisas que estão acontecendo em outros lugares não estão ligadas ao budismo, então ele talvez esteja representando alguma outra coisa. Outro fenômeno humano, talvez o nacionalismo. Talvez o populismo, que também está muito na moda. Sim, ele é budista, mas se transformando em outra coisa.
CONTINENTE Você usou Marine Le Pen como uma maneira de convencê-lo a ser entrevistado, não?
BARBET SCHROEDER Expliquei a ele por que estava fazendo o filme. Vi uma relação entre ele e a possível futura presidente da república francesa. Ele ficou interessado. Também ajudou que eu estava fazendo o filme para o cinema, não era algo para a televisão. E também foi fundamental eu ser um diretor trabalhando em Hollywood. Isso sempre ajuda! [risos]
CONTINENTE Você fez uma trilogia do mal. Pode comparar as três expressões do mal que abordou em seus filmes?
BARBET SCHROEDER O interessante não é o mal, que é uma noção abstrata, mas, sim, que formas ele toma quando nos aproximamos. Não é a expressão do mal, mas a máscara que usa. Ele se esconde atrás de discursos suaves, às vezes, como no caso de Amin Dada, atrás do humor. Há muitas maneiras de o mal se disfarçar no mundo real. E é importante entender que tantas coisas ruins podem parecer muito naturais. Não é que o mal pode ser ordinário. Mas como pode ser aterrorizante perceber a face humana que ele pode ter. Quando fiz o filme sobre Amin Dada, eu mal pude acreditar no que estava vendo. E vi que queria repetir a experiência, mas com alguma coisa diferente. Todo o mundo me pediu para fazer todos os ditadores do mundo. Não queria fazer isso. Mas, se pudesse achar outro ângulo do mal que me mostrasse uma abordagem diferente… E claro que o terrorismo era uma questão fascinante que descobri, porque sempre há uma ambiguidade quando se chega perto, não dá para saber se é totalmente ruim. Nesse caso, estava indo atrás de algo aterrorizante, porque era o máximo do mal. Se estou lidando com algo que vai ser, ou tem chance de ser ou é um estágio de genocídio, é o mal absoluto. Dá medo porque significa que talvez você seja um pouco responsável, é preciso ter cuidado com o que se está fazendo. Os riscos são maiores. Mas sempre tento manter minha atitude de não julgar.
CONTINENTE Um filme que fala de nacionalismo e populismo é importante porque está acontecendo em todas as partes, dos Estados Unidos à Polônia. Por que isso está acontecendo?
BARBET SCHROEDER Não sou um médico da civilização, tentando analisar a doença. Certamente há algo a ver com a decadência de uma civilização. Pode ser um sinal de que não vamos ter nunca mais um presidente dos Estados Unidos que é decente, que segue certas regras, que as coisas não vão mais ser normais lá. E se Trump for removido e o cara que assumir não corrigir todas as coisas ruins que ele está fazendo? Aí você tem uma nova realidade que se perpetua. Não dá para saber. Uma vez que as coisas são destruídas, uma vez que as coisas mudam, às vezes é impossível voltar ao estado anterior. Então dá muito medo, e é preciso aceitar que talvez seja decadência. Espero que as pessoas vejam quais são as raízes disso no meu filme. Queria fazer um filme que fosse importante não apenas para Mianmar, mas para o resto do mundo.
CONTINENTE Queria perguntar sobre o processo de conhecer este homem. Você disse que foi lá sem preconceitos. Descobriu algo inesperado?
BARBET SCHROEDER O que descobri é que ele é muito mais inteligente que pensei. E que tem um controle extremo de si mesmo e de tudo. Ele passou mais de 10 anos na prisão. É extremamente inteligente, tem controle de si, é diabolicamente esperto. E ele me disse: “Você deve saber que estou pronto para responder a todas as suas questões e não deve temer perguntar nada. Responderei a tudo”. Isso é impressionante. É algo que um jesuíta bom diria, um intelectual do Partido Comunista. Eles sempre dizem que vão responder tudo, mas sempre fogem da pergunta. Então você precisa saber que não vai ganhar nenhuma discussão, basicamente.
CONTINENTE Houve alguma questão que queria fazer e não fez?
BARBET SCHROEDER Não, não. Eu não tinha perguntas, só queria que ele falasse. Claro que eu tentei dirigi-lo um pouco, mas basicamente não estava tentando fazer uma entrevista de imprensa, em que um jornalista tenta fazer com que o entrevistado declare sua política ou explique certas coisas. Só queria que ele revelasse seu discurso. E então, vagarosamente, a verdade seria revelada. Foi a mesma coisa que fiz com Amin Dada e com Vergès. É o mesmo estilo. É muito diferente do jornalismo.
CONTINENTE E quando ele dizia mentiras, você reagia?
BARBET SCHROEDER Não! Não! Eu dizia: “Que interessante! Me conte mais! Os rohingyas estão mesmo queimando as casas? Não percebi isso. Por que estão queimando as casas?”. E ele: “Porque assim eles ganham mais dinheiro das Nações Unidas”. Eu me fazia de desentendido. Ele deu muitas entrevistas a jornalistas, que o confrontavam. Não era minha intenção. Um dos momentos mais chocantes do filme é quando ele diz que eles queimam suas próprias casas, e daí você vê milhares de pessoas saindo de suas casas em chamas, com o exército em volta. Eles são refugiados. É um pesadelo. São imagens muito raras, aliás. Então essas são as pessoas queimando suas próprias casas? Ver essas imagens é tão forte… Não é preciso discutir com ele.
CONTINENTE Mas, no fim, você é humano. Apesar de tentar manter uma certa distância, quando você o vê com o celular, mostrando uma mulher morta, não ficou com vontade de dizer algo?
BARBET SCHROEDER Não!
CONTINENTE Não ficou com medo?
BARBET SCHROEDER Não. Porque aquele vídeo da suposta budista morta por muçulmanos é uma ficção que ele filmou com seus discípulos. Não aconteceu de verdade. Ele que diz que as pessoas precisam saber como aquela garota foi assassinada. Que foi colher depoimentos dos três garotos muçulmanos que a mataram. E filmaram aquela ficção. Tentei não mostrar muito de perto, para não ser violento demais. Mas ele tentou usar esse assassinato para fazer discursos incendiários. Ele usa pôsteres do lado de fora de sua casa mostrando coisas horríveis que incitam à ação contra os muçulmanos. É uma técnica. Acho que mostra bem como ele faz.
CONTINENTE Acha que algo aconteceu na infância dele que o fez pensar assim? Há uma breve menção a isso.
BARBET SCHROEDER Eu adoraria saber. Num filme, sempre é preciso explicar por que o cara tem aquele problema. Sendo um cineasta americano de Hollywood, tentei achar uma explicação que talvez tivesse a ver com sua infância, de uma menina que foi assassinada. Mas não acho que é a chave do segredo. Pode ser, mas também podem ser outras coisas. Existem muitas teorias. Um cara acha que é porque sua mãe abandonou seu pai por um muçulmano. Outro diz que é porque seu monastério foi incendiado por um muçulmano quando ele tinha 14 anos. Mas chequei e não dá para ter certeza. Todo o mundo procura uma explicação. Mas sabemos que ela não é necessária, no fim das contas. Por que Hitler fez o que fez? Porque foi recusado na academia de artes por um judeu? Pode ser. Mas havia outras coisas relacionadas a judeus que ele foi colecionando. Lixo que ele coletou em sua mente.
CONTINENTE Na cena do massacre, é estranho, ele parece estar apensas observando o que acontece em vez de tentar impedir. Pode explicar?
BARBET SCHROEDER É muito simples. Ele estava fazendo um tour pela cidade, se assegurando de ser filmado, pois não queria ser acusado de ter provocado o massacre. Ele ficou fazendo discursos, pedindo calma, dizendo que queria criar uma associação em que a propriedade seria protegida. Era paz e amor. Mas ele está fazendo um tour pela cidade depois de um massacre pelo qual é talvez parcialmente responsável. E claro que dizem que tudo aconteceu porque um monge foi morto pelos muçulmanos e por isso os budistas reagiram. Mas li um panfleto que estava sendo distribuído na hora e que soava muito com os discursos de W. E no filme vemos o discurso que ele fez na mesma cidade um mês antes. Claro que ele diz não ter nada a ver com o massacre, mas… Toda vez que mencionam uma provável ligação, ele diz “imagine!”.
CONTINENTE Quais as dificuldades de rodar um filme em Mianmar?
BARBET SCHROEDER Clandestino com visto de turista? Total liberdade. Mesmo filmando em resolução 4K.
CONTINENTE Não teve problemas, então?
BARBET SCHROEDER Claro que a polícia militar estava observando W. – até seu nome, Wirathu, me aterroriza. Eles viram que eu estava indo com muita frequência encontrá-lo. Fizeram um dossiê sobre mim, com muitas fotos. Quando descobri isso depois de um mês, e meu visto tinha expirado, vi que era hora de ir embora rapidamente. Em Paris, pedi então um visto de jornalista. Não tivemos resposta. Depois de insistir muito, ouvimos que o visto tinha sido negado, que eu jamais teria permissão de voltar oficialmente, que eles não me queriam. Pedimos uma carta dizendo isso. Negaram também para que eu parecesse um idiota. Assim, eles podem dizer que é mentira minha.
CONTINENTE Mas você teve sorte de ter filmado tudo o que precisava?
BARBET SCHROEDER Não tudo. Precisava de outras coisas. Então comecei uma operação mais complicada. Em vez de voltar a Mianmar, fui para a Tailândia, na fronteira com Mianmar. Então pudemos trazer algumas pessoas para entrevistar. É uma fronteira frouxa. Também levamos algumas pessoas a Bangcoc de avião. Assim, consegui terminar o filme. Foram seis meses de preparação, um mês rodando em Mianmar, um mês editando para ter certeza do que precisávamos, depois pré-produção, mais um mês rodando na Tailândia e depois nove meses editando. Tempo suficiente para uma gestação de bebê.
MARIANE MORISAWA, apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater em Hollywood e cobre festivais.