O diretor Eduardo Nunes (à direita) orienta o ator Lee Taylor no set ambientado na região serrana do Rio de Janeiro. Foto: Zeca Miranda/Divulgação
CONTINENTE De onde vem o filme, tanto em termos poéticos como na composição imagética?
EDUARDO NUNES O começo mesmo, a ideia inicial, são dois contos da Hilda Hilst, O unicórnio e Matamoros. Essa é a base: dois contos muito difíceis de adaptar. Unicórnio, por exemplo, é o primeiro trabalho de ficção dela e traz muito da poesia da Hilda. Essa dificuldade vem porque o texto não descreve uma ação, e sim um estado emocional. Aliás, só me lembro de um curta adaptado da obra dela, O caderno rosa de Lori Lamby e, mais recentemente, do documentário Hilda Hilst pede contato, que tem partes encenadas. Ou seja, essa coisa de adaptar a obra dela é muito recente, o que eu acho ótimo, pois percebo a Hilda rivalizando com a Clarice Lispector em importância literária. Elas eram contemporâneas, mas a Clarice era muito mais conhecida. Talvez tenha aí uma coisa de redescoberta… Essa homenagem na Flip ajuda muito também.
CONTINENTE Não conheço os dois contos. Em qual deles há o personagem da menina, por exemplo? Qual deles lida com essa questão do desabrochar
EDUARDO NUNES Os personagens da mãe e da filha vêm do Matamoros; O unicórnio é praticamente um diálogo entre duas pessoas que você fica tentando identificar quem são. O que fiz foi transformar esse diálogo que existe em Unicórnio em uma conversa entre a menina e o pai e aí trouxe também uma questão biográfica da Hilda, pois ela tinha uma relação muito forte com o pai, que era esquizofrênico e havia sido institucionalizado. Ela foi conhecê-lo, de fato, quando tinha 13, 14 anos. Eu fui na Casa do Sol, onde ela morou em Campinas, conheci a Olga, amiga dela, procurei me aprofundar nessa questão da relação dela com o pai, que era muito forte. Então, preferi trazer o diálogo do conto O unicórnio, com todas as questões sobre Deus e a natureza, e lá coloquei o pai e a menina. De Matamoros, vem a história da mãe e da filha e do homem que chega. Cada conto é um ambiente do filme e tentei criar um diálogo colocando o personagem da menina como um ponto de comunhão entre eles.
CONTINENTE E como foi a composição pictórica? Pergunto porque considero o filme uma pintura, me lembrando até telas de Van Gogh, como Wheatfield with crows.
EDUARDO NUNES Para mim, a poesia vinha da transposição pelas imagens e pelos sons, então era muito importante trabalhar essa junção para o filme se tornar uma questão sensorial. Queria que não passasse só pela parte racional, sabe? Os elementos da natureza, o barulho dos pássaros, dos animais, e juntando a imagem nesse pacote, tudo para criar um ambiente de imersão, como uma fábula. Eu, particularmente, enxergo a história que acontece no campo como uma narrativa que a menina conta para o pai e, aí, você permite tudo, já que é uma história inventada.
CONTINENTE Um aspecto que me deixou intrigada foi justamente esse componente de fábula, ora parecendo estar ambientado nas montanhas do Marrocos, com o personagem do homem que chega se assemelhando aos berberes, ora no interior do Brasil. Algo como uma paisagem idealizada, meio kitsch até.
EDUARDO NUNES A questão da fábula permite isso. Nossa intenção era misturar diferentes elementos de culturas distintas, para ter uma coisa árabe e persa nos tecidos e aquelas montanhas que poderiam ser de qualquer lugar. Teve gente em Berlim e acho que era na Suíça, pois aquelas montanhas não poderia existir no Brasil. Essa questão surge às vezes, como se o filme perdesse uma certa identidade brasileira, mas não acho que passe por aí. A identidade brasileira não está restrita a um estereótipo. Estamos filmando a partir dos escritos de uma autora brasileira e, nesse sentido, a fábula extrapola uma ideia de identidade nacional.
CONTINENTE Mas o que é uma identidade, não é? Será que um filme só poderia ser do Brasil se tivesse uma favela? Aproveito para perguntar sobre as cores, que são expressivas, cativantes, envolventes. É como se estivéssemos em uma viagem lisérgica.
EDUARDO NUNES Quanto à questão da identidade, acho natural que isso aconteça pelas expectativas. Mas me diverti em Berlim quando um rapaz perguntou, não de forma agressiva, mas de curiosidade mesmo, se o Brasil tinha aquelas cores (risos). A ideia era trabalhar esse tom de exagero, de fábula. Sudoeste, o primeiro filme que fiz, é em preto e branco, no mesmo formato scope, mas ali eu sentia que não precisava carregar nas cores. Em Unicórnio, isso vem junto à presença da natureza. A menina está ali sozinha. Tudo que existe ao redor é o universo dela. Então ela tem uma relação com a árvore, com os animais, com aquele campo… Fizemos em digital o filme e depois tivemos uma pós muito demorada. Fomos criando várias camadas, movendo elementos, carregando nas montanhas, nas árvores, pintando com uma ferramenta, quase como se estivéssemos pintando à mão com um pincel mesmo, sabe? Então, se existe esse aspecto de pintura, é porque foi pintado mesmo. Pode até parecer um luxo, mas era necessário para o filme. O visual era muito importante.
CONTINENTE O visual também ajuda a contar a história daquela menina...
EDUARDO NUNES Sim, e o que eu queria era um aspecto que ratificasse aquilo, o fato de ser uma fábula, através do ir e vir da menina: ela sai de um ambiente branco, chapadão, com o pai e vai para aquele ambiente colorido com a mãe. Uma coisa vai contaminando a outra, assim como aquelas conversas com o pai contaminam a relação da Maria com a mãe. Acho que existe uma coisa entre mãe e filha que não existe, por exemplo, entre mãe e filho. E no filme construímos essa questão de uma competição da filha com a mãe a partir da chegada daquele elemento, que está entre as duas na questão da idade. A primeira cena do conto é quando a menina vai mostrar a árvore ao homem e ele tira a mão dela de cima da dele. Ele pode ir para um lado, o da menina, ou para o outro, o da mãe dela. E é a primeira presença masculina além do pai dela. Ou seja, traz algo para de uma certa forma transformar aquele ambiente.