Mock trabalhou como stripper e na prostituição para poder pagar sua cirurgia de readequação de sexo e foi jornalista de celebridades antes de escrever seu livro Redefining realness, sobre suas experiências. Foi o livro que chamou a atenção de Ryan Murphy, que queria trabalhar com pessoas trans à frente e atrás das câmeras em Pose. Sobre tudo isso, ela falou com a Continente.
Janet Mock e o elenco no set do seriado FOTO: Jojo Whilden/FX Networks/Divulgação
CONTINENTE Qual tem sido a resposta do público em relação à série? Acredita que um seriado de televisão possa mudar as coisas? No Brasil temos números gravíssimos de violência contra pessoas trans.
JANET MOCK O poder de Pose está em não apenas ter um elenco cheio de mulheres trans interpretando mulheres trans, mas também em fazer com que nosso público veja a humanidade delas. A televisão como meio é um espaço íntimo. As pessoas convidam os personagens a entrar em suas casas. A maior parte das pessoas que não são trans não conhecerem pessoas trans nas suas vidas, então agora, quando assistem à série, passam a ter cinco delas em suas vidas. O Brasil realmente é um dos lugares mais perigosos para pessoas trans. Esse é um tema de que falamos muito entre os ativistas, a violência contra a mulher trans principalmente. Na série, mostramos mulheres trans que não são vítimas, que estão traumatizadas ou mortas, mas sim que estão vivas, que sonham, que têm esperança, que querem amor ou uma família e sucesso – as coisas que todos querem. Ou seja, serem quem são realmente e serem amados pelo que são realmente. Espero que nossa série não afete apenas a indústria, mas também cada um dos espectadores que estão torcendo por elas, chorando por elas, que estão a seu lado. Como mulher trans, eu sei o que é passar por tudo isso e esperar que as pessoas me aceitem, me amem, me abracem. Espero que, quando assistam Pose, as pessoas se peguem sentindo e chorando com elas. Porque Pose oferece um retrato familiar diferente e mostra o que é ser completamente descartado pelo resto do mundo e depois encontrar sua comunidade, suas pessoas, sua família. Espero que todos possam amar as pessoas trans e, em retorno, se sentirem amadas também.
CONTINENTE Pose se passa nos anos 1980. Como acha que a série retrata aquele tempo?
JANET MOCK Quando Ryan Murphy me chamou para trabalhar com ele, uma das coisas que mais me atraíram no projeto foi ser uma série de época. Na Nova York dos anos 1980, as pessoas trans não tinham nenhum recurso. Quando você olha para o passado, consegue ver paralelos com os dias de hoje. Na época, não havia setor LGBTQ, não havia recursos para a saúde das pessoas trans. Então elas tinham de ser criativas para cuidarem de si mesmas e umas das outras. A violência que existia na época contra as pessoas trans continua hoje. As pessoas continuam sendo expulsas de casa, empurradas para fora da escola. Sem casa e sem educação, é difícil conseguir emprego. Assim, elas acabam nas ruas, tendo de se virar para se sustentar. Por isso temos uma personagem como Angel, que trabalha com sexo para poder sobreviver. Ou como Blanca, que precisa criar um espaço seguro para sua família. Na cultura dos bailes, que existe desde os anos 1960, os frequentadores sempre criaram suas próprias famílias, cuidaram uma das outras. E temos um homem que trabalha nas Organizações Trump, o que diz muito sobre hoje. Mostra como ele chegou aonde chegou e como essas outras pessoas sem dinheiro, poder ou privilégio tinham de se virar. A série fala muito do desequilíbrio do poder, que deixa algumas pessoas entrarem e descarta os marginalizados.
CONTINENTE Acha que estamos mesmo numa era de ouro da televisão, em que coisas impensáveis estão acontecendo?
JANET MOCK Gosto de escrever para televisão porque há mais oportunidades e mais espaços para contar tipos diferentes de histórias. Cresci assistindo televisão, vendo apenas um tipo de história ser contada. Definitivamente nunca vi reflexos de mim mesma e de minha vida na televisão. Estamos numa época em que é possível contar essas histórias. Nossa série é um musical com dança e drama familiar. Podermos mostrar um tipo diferente de família em que essas pessoas podem perseguir seus sonhos como em outras séries é realmente vital e importante. Acho que mostra como o mundo mudou. As pessoas estão exigindo isso. Pose só pode existir porque o público está disposto a ver. A história é familiar, mas as pessoas são diferentes. É muito empolgante e fico feliz de escrever, produzir e dirigir uma série que nunca tinha sido feita antes.
Janet Mock e Ryan Murphy com atrizes do seriado Pose FOTO: FX Networks/Divulgação
CONTINENTE Como tem sido a experiência na série?
JANET MOCK Um sonho. Sou fã de Ryan Murphy há tempos. Quando soube que ele queria me encontrar, vi que era uma oportunidade única. Ele viu algo em mim que era certo para Pose. Ele não é uma pessoa trans, então percebeu que precisava dos colaboradores certos para a série ser autêntica. Poder ver nossas cinco atrizes trans virarem estrelas. É um dos maiores presentes que tive na vida ver essas mulheres que dificilmente teriam uma chance fazendo todo o mundo rir e chorar com elas. Sendo uma mulher trans que cresceu assistindo televisão, também é um presente ver que elas podem ser as heroínas de suas próprias histórias, que podem ter cabelos e maquiagens maravilhosos, figurinos lindos, iluminação incrível e uma história poderosa para empoderar suas comunidades. Fico feliz de participar dessas série e de poder escrever e dirigir o episódio 6, que Ryan Murphy diz ser a coisa mais poderosa que ele jamais produziu na televisão.
CONTINENTE O episódio que você dirigiu, Love is the message, começa com uma cena muito poderosa entre Angel e Patty (Kate Mara), a mulher do seu amante. Tive a impressão de que aquela cena só ficou daquele jeito porque pessoas trans estavam envolvidas. Falamos muito de representação e inclusão, mas queria saber na sua opinião o que praticamente muda quando há pessoas trans envolvidas numa série como esta?
JANET MOCK Nossa série centra-se em pessoas e histórias que nunca antes foram centrais. Então, a única maneira de ser autêntico é colocar no centro pessoas que nunca estiveram no centro nos bastidores e na tela antes. O processo, portanto, foi mais orgânico. Patty descobre não apenas que seu marido está envolvido com outra mulher, mas com uma mulher negra latina, que trabalha na indústria do sexo e que é transexual. Queria que ficasse muito claro que Patty é que estava entrando no mundo de Angel. Que Angel jamais teria vergonha de quem é. Porque ela é uma das personagens mais autoconfiantes. Quando ela diz que é transexual, é sem medo, trepidação ou vergonha. Porque durante muitos anos a representação das pessoas trans é de personagens que morrem e ensinam aos personagens que não são trans o que é ser autêntico e real. Seria completamente diferente se não fosse dirigido e escrito por mim. Ryan Murphy realmente quis que fosse uma série para nós e por nós. Espero que se torne um exemplo de como empoderar as pessoas atrás das câmeras para tomarem controle da narrativa.
MARIANE MORISAWA é uma jornalista apaixonada por cinema. Vive a duas quadras do Chinese Theater em Hollywood e cobre festivais.