Entrevista

"A poesia que vai se fazendo junto com a própria vida"

Artista curitibano Francisco Mallmann fala da tríade poesia-teatro-performance que rege seu trabalho e do lançamento do seu livro de poesias 'Tudo que leva consigo um nome'

TEXTO Valentine Herold

11 de Novembro de 2021

Jovem curitibano é destaque na poesia contemporânea brasileira

Jovem curitibano é destaque na poesia contemporânea brasileira

Foto Luana Navarro/Divulgação

[conteúdo exclusivo Continente Online]

Todo fim de relacionamento amoroso representa, com mais ou menos dor, uma ruptura de sonhos, planos e até de certos processos pessoais e muito íntimos de formação identitária. Romper com alguém é também romper um pouco com um modo de vida, quebrar paradigmas e se deparar com toda essa revolução dentro e fora de si. Assim também é lidar com o fim de um projeto ou a derrocada de ideais políticos por muitos anos desejados… E se esses dois fins acontecem de forma simultânea, temos uma crise, uma explosão de sentimentos, um furor desesperador – e a arte para nos salvar.

Tudo que leva consigo um nome, o novo livro do jovem poeta curitibano Francisco Mallmann, é justamente sobre tudo isso e mais um pouco. Sobre o caos que fica quando o outro se vai, essa sensação de abandono quando nossas bandeiras de luta são queimadas diariamente diante de nós. Recém-lançada pela José Olympio, a obra é a quarta do artista e marca sua estreia em uma grande editora.

Nome cada vez mais de destaque na poesia contemporânea brasileira, Francisco Mallmann é força lírica que escancara, em seus versos ousados e originais, as dores não só amorosas, mas também políticas e sociais. Ele fala sobre o Brasil de hoje e de ontem, provocando os leitores com um desconforto necessário. Se nos livros anteriores – Haverá festa com o que restar (Urutau, 2018), língua pele áspera (7Letras, 2019) e América (Urutau, 2020) – o foco eram os violentos processos colonizatórios e as questões atreladas a uma vivência queer, Tudo que leva consigo um nome chega um pouco mais ousado na forma e no conteúdo.

Com cerca de 300 páginas, é sua obra mais extensa, uma narrativa longa, escrita em primeira pessoa com uma voz lírica feminina discorrendo sobre o fim de um relacionamento com Fernando, nome repetido ad infinitum em interessantes jogos de palavras. Através dessa raiva pelo término, o/a narrador/a também nos entrega situações de seu cotidiano, fala de outros afetos e desafetos, de política e de gênero. As poesias, feitas para serem lidas em voz alta, são independentes ao mesmo tempo em que contam uma história com começo, meio e (não necessariamente) fim.

tem coisas resolvidas na vida
tem coisas resolvidas na escrita
tem coisas que não se resolvem
em lugar nenhum e assim me
mantenho fernando em trânsito

Em entrevista dada à Continente por videochamada, Francisco, que também é mestre em Filosofia e atualmente faz doutorado em Artes da Cena, falou sobre a tríade poesia-teatro-performance que marca seu projeto artístico, as diferenças entre estar em uma editora independente e em um conglomerado, a liberdade através da palavra, as redes sociais e os seus desejos libertários para o próximo ano.



CONTINENTE
Uma das características mais marcantes da sua obra é a indissociabilidade da poesia com a performance e a dramaturgia. Isso ficou muito claro em América e agora está novamente presente em Tudo que leva consigo um nome. São poemas que parecem ter sido escritos para serem lidos em voz alta. Além da literatura, você tem também um percurso nas artes da cena, né? Poderia falar um pouco sobre sua trajetória no teatro e como ela se relaciona com a poesia?
FRANCISCO MALLMANN Pra mim, a poesia se faz e passou a se fazer de um modo um pouco mais consciente, muito atravessado pelo meu trabalho em coletivo, no teatro, nas artes presenciais e nas artes cênicas. Acho que eu me entendo de um modo um pouco mais consciente e talvez mais sistemático, de algum jeito, com algum limite estabelecido, ainda que a minha prática vá ser justamente a de tirar os limites de tudo, fazendo teatro. E tem essa palavra que se dá processualmente, junto e indissociada do corpo. Então, tem algo pra mim que é muito interessante aí. Porque embora a escrita esteja associada a esse espaço de se fazer de um modo mais solitário, no silêncio de um reduto afastado – mais romanticamente e historicamente –, a minha palavra vai se dar no atravessamento, vai se dar coletivamente. E eu acho que isso me deu um certo tipo de relação que é muito performativa já logo de início, a partir dessa palavra que é sonora, que se espalha no espaço afetivamente. Tem algo envolvendo essa noção de arena pública mesmo, né? Tanto isso quanto a relação com esse performativo que é sempre uma palavra que, de algum modo, já está próxima de uma ação e que já se dá inevitavelmente encarnada, reverberando num corpo próprio e num corpo coletivo.

Mas também tem esse lugar que me interessa muito e que vai se dar acho que de uma forma menos ou mais lúcida nos livros, que você localiza superbem com América e agora com esse livro, que é um pouco esse tom meio processual, essa relação meio libidinosa com a palavra falada. Então tem isso de ir dizendo, um pouco dessacralizando essa palavra, um pouco dessacralizando o próprio fazer literário ou poético. Tenho gostado de pensar nisso, nessa poesia que vai se fazendo junto com a própria vida. E, sim, eu acho que isso é uma coisa que vem do teatro pra mim. Porque quando vou pensar o livro eu fico pensando sempre quem é essa pessoa que vai “fazer” comigo, minha interlocutora. Então, esses dispositivos de convidar a leitora a fazer junto, sejam eles diretos ou meio indiretos, me interessam muito. Artisticamente, eu vou endereçar um convite pra ela e dizer: “Faz junto comigo que isso aqui só vai ser alguma coisa se a gente fizer juntas!”

CONTINENTE Queria justamente falar um pouco sobre a palavra, a linguagem. Em América tem um verso em que você se define como “una marica en guerra” e eu já ouvi também você falando em “poesia bicha”. Em Tudo que leva consigo um nome temos uma voz lírica feminina do início ao fim e, inclusive, um poema que diz justamente “falo no feminino o que é que tens com isso fernando fala”. A linguagem para você é um instrumento de libertação?
FRANCISCO MALLMANN Isso é algo que eu tenho pensado bastante! Essa relação dos gêneros. E aí quando eu estou falando gênero, acho que estou falando de várias coisas: gêneros literários, gêneros artísticos ou gêneros em uma perspectiva mais próxima às sexualidades e identidades possíveis e impossíveis. Tenho um interesse muito grande em fazer esses tensionamentos e, mais do que isso, fazer esses alargamentos, entendendo o que é que reside nessa convenção, o que é que reside nessas instaurações permanentes e transitórias. Então acho que existe aí, sim, um desejo que nasce a partir desses limites que a gente, com menos ou mais tempo de pesquisa, descobre que geralmente são feitos à nossa revelia. Às vezes, o modo como nos nomeiam ou nomeiam nossos trabalhos são muito externos, né? Então eu acho que essa figura, essa voz, essa criatura que fala nesse livro e que vai compondo poesia, a partir do momento que ela vai se compondo também e que ela vai se fazendo, é uma figura que fala no feminino do início ao fim. E aí, para mim, tem muitas direções e muitas vias de acesso. Tem tanto uma via de acesso mais direta, envolvendo talvez uma cultura ou uma prática LGBT, que é a das pessoas se referirem a si no feminino, algo muito da coloquialidade dos meus coletivos, dos lugares onde eu circulo. As pessoas se referem a si no feminino como um tensionamento, como uma marcação para se afastar de uma masculinidade hegemônica e violenta. No Haverá festa com o que restar já tem uma coisa dessas, e é legal a gente revisitar porque a gente se esquece do que faz às vezes (risos), e tem um poema que chama Lição de Português, que é sobre essa essa busca de um plural no feminino. Queria quebrar essa ideia de masculino, de homem enquanto sinônimo da humanidade, que já nos diz tão pouco respeito! Que faz tão pouco sentido no modo como a gente vibra a língua atualmente, no modo como a gente quer se comunicar ou fazer coletivos mais possíveis para todas, todos e todes. Essa maneira unilateral de dizer um coletivo ou de dizer um plural já não vibra de um modo que a gente quer que a vida aconteça. Então eu acho que essa essa figura meio bicha meio bicho, a substituição do outro vem desse desejo de querer também se afastar dessa compulsoriedade da língua no masculino. Eu pensei muito sobre isso e acabou que também me aproximei das discussões sobre linguagem neutra ou linguagem não-binária, e isso me ocorreu uma dada hora mais próxima do processo de edição, sabe? O que é que mudaria aqui, por exemplo, se ao invés do feminino eu estivesse usando uma linguagem não-binária ou se eu tivesse tencionando a língua com essas práticas que também respeitam o nosso tempo? Ao mesmo tempo que existe isso, tudo que eu digo sobre o que é essa figura no feminino, existe também um certo lugar pra mim do borrar que é interessante.  Porque em uma certa instância, ao mesmo tempo que existe esse polo de reivindicação, pouco importava pra mim se as pessoas iam chamá-la de mulher ou de bicha. Ou se as pessoas iam se aproximar dela entendendo-a enquanto um corpo binário ou um corpo não binário...Eu queria que ela fosse a própria encruzilhada. O trato com a língua e a linguagem poética nos oferta essa palavra que é em si mesma a questão.

CONTINENTE Muito interessante isso da linguagem poética oferecer essa liberdade. O próprio termo “voz lírica” que usei na última pergunta é algo que a gente aprende desde cedo, nas aulas de literatura na escola, né? Então temos essa noção que, desde quase sempre, as poetas, os poetas, tinham essa liberdade de falar tanto no feminino quanto no masculino, que a poesia era também esse campo de experimentação.
FRANCISCO MALLMANN Exato, concordo com você! Acho que a poesia tem esse potencial emancipatório de liberdade de tensionamentos. Mas eu também tento me manter muito atento a essas questões entre arte e política, ou mesmo a essas discussões de arte e identidade. Porque eu acho que  a gente está num período - e talvez isso seja bastante próprio da nossa geração – dessa constante reivindicação. Estamos muito atentas a várias coisas ao mesmo tempo, que estamos descobrindo como se reivindica, o que a internet tem a ver com isso, o que a cultura do cancelamento tem a ver com isso, o que as pautas identitárias tem de libertárias e também de aprisionamento. O que os nossos feminismos, os nossos transfeminismos, os nossos anticapacitismos, os nossos antirracismos têm a nos ofertar enquanto material de trabalho artístico, enquanto pauta política, enquanto militância, estudo teórico? E, no meio dessas intersecções, descobrir quais são as nossas posições exatamente. Isso tudo me ocorreu ao longo do processo de livro. Um certo receio também do livro ser confundido enquanto uma tentativa de performar uma coisa que não me cabe, sabe? Isso tudo ocorre num lugar onde ao mesmo tempo existe, sim, esse manejo da liberdade do tensionamento, da provocação, mas eu fico também pensando “será que, por ventura, isso violenta alguém?”. É claro que violenta um certo conservadorismo e um certo purismo da língua, mas esse aí tudo bem, é onde residem os nossos esforços (risos). Mas eu fico pensando assim, se alguma aliada minha vai, por ventura, se sentir atravessada de um jeito não legal? Isso me preocupa… E eu acho às vezes tão difícil também discutir algumas coisas, num momento e num país como o nosso, em que há tanta confusão em relação à liberdade de expressão e liberdade de opinião.Existe um polo muito assustador sobre essa certa noção de liberdade, né? Porque eu acho que quando a gente está falando aqui, a gente está muito ligada, e pra gente é muito evidente o que a gente está entendendo por liberdade e por possibilidade. E às vezes eu fico apavorado de saber que existe um polo que também está usando essa mesma palavra “liberdade de expressão” pra fazer reivindicações completamente opostas a essas com as quais a gente está trabalhando. Então às vezes eu tenho esse susto no peito assim, que é sim uma liberdade radical pela qual a gente está lutando, mas existe uma reivindicação completamente alheia, distante dessa nossa sendo, operada a partir da mesma palavra. As mesmas palavras estão sendo disputadas a partir de disposições e de lugares completamente distintos. Isso é interessante pra gente pensar nosso trabalho, demandas e articulações. 

CONTINENTE Voltando um pouco a esse caráter além texto que sua poesia tem: a cor vermelha está muito presente em todos seus livros, tanto no projeto gráfico quanto nas sensações que seus versos provocam. É uma poesia que, de certa forma sangra, no sentido mesmo de colocar para fora decepções, raivas, sonhos, desejos. Queria que você comentasse um pouco a escolha dessa cor porque ela me parece muito simbólica.
FRANCISCO MALLMANN Que delicadeza, que sensibilidade linda essa pergunta! A Paula Alice, que é uma dramaturga, diretora, professora da Bahia, uma parceira de trabalho, tem uma peça infantil com uma frase que me marcou muito: “o vermelho é importante”. E eu lembro sempre disso! Ao mesmo tempo que eu sei mapear e identificar várias razões pelas quais o vermelho me interessa – e o vermelho tem sido uma prática mesmo, visual mas também dessas associações que você fez –, eu não sei….  Eu tenho pensado sobre como o vermelho diz muito respeito pra mim envolvendo o lugar, o Sul do mundo, uma América Latina, o modo como o vermelho me interessa por ser mesmo a cor do sangue, por ser a cor de uma porção de coisas que me interessa muitíssimo. E acho que tem algo sobre a quentura do vermelho e sobre uma certa noção de mancha na paisagem. Eu tenho pensado cada vez mais nisso, essa certa noção de mancha que é um pouco riscar tanto a brancura quanto o cinza. Ou como nessa paisagem, que às vezes pode ser comum, tão violenta na tentativa de falsear a história e falsear a realidade. Para mim, o vermelho é essa cor que consegue reunir toda a dor e todo o desejo do mundo. Ela tem a possibilidade de ser a instauração de algo brutal, tanto positivo quanto negativo, tamanha a intensidade que ela carrega. A paixão mais ardente e a dor mais assustadora. Talvez o meu trabalho com a poesia e com a palavra tenha também um pouco esse desejo de produzir esse risco, sabe? Ser esse trânsito entre o anúncio e a denúncia. Que a gente possa, com o nosso trabalho, nossa prática e com os nossos corpos, fazer as denúncias das violências, mas também ser festa. Que a gente não fique nem encalacradas na dor nem soltas pura distração. O vermelho tem um pouco a ver com isso de ser o grande gozo, mas também o grande grito de horror.

CONTINENTE Tudo o que leva consigo um nome marca sua estreia fora do circuito independente, integrando o catálogo de uma grande editora. Como se deu essa passagem, quais as principais diferenças sentidas por você? Isso também influenciou na forma como você produziu o livro?
FRANCISCO MALLMANN Essa possibilidade de publicar em uma grande editora surgiu com o convite da minha agora editora, Livia Vianna, que acompanhava o meu trabalho. A gente passou a conversar de um jeito que foi super bonito e daí veio esse interesse por parte dela pelo que eu estava criando. O Tudo que leva consigo o nome já existia, mas eu não sabia como ia ser publicado, se iria existir de fato no mundo. Estava quase finalizado quando o apresentei a Livia e ela vibrou, ficou muito feliz com esse livro, então a gente começou o processo de edição no segundo semestre do ano passado.  Um grande conglomerado é muito diferente de uma editora independente na medida em que existem mil departamentos e muita gente trabalhando para conceber o livro. Arte, comunicação e marketing, jurídico etc... Um livro é feito a partir de muitas mentes e do trabalho de muitas pessoas, mas ao mesmo tempo a relação que eu estabeleci com a Lívia foi de parceria de criação que não se diferenciou de nenhum tipo de parceria de criação que eu tive em outros espaços! Uma coisa que foi bonita foi essa espécie de direção artística do livro também. As ilustrações e a capa foram feitas por uma grande parceira minha, a Thalita Sejanes. Então, embora eu estivesse ali na grande editora, eu tinha essa parceira de vida e essa artista criando junto comigo. E sobre a recepção do livro, para mim é um grande susto! Eu estou aprendendo a entender o que é que é ter a coisa no mundo. É sempre um delírio, alegre e assustador. Mantenho uma relação um pouco ingênua e apavorada ainda. Mas a coisa mais bonita sobre a recepção é que a gente não dimensiona porque ela é livre, aberta, emancipada e até incapturável.

CONTINENTE Justamente falando na recepção… Você era bastante atuante nas redes sociais, compartilhava fotografias de poemas, de suas bandeiras, usava mesmo essa plataforma como extensão de sua obra poética e estava reunindo um número cada vez mais crescente de público. Vi que recentemente seu perfil está desativado. Foi escolha própria?
FRANCISCO MALLMANN A minha história com o Instagram não foi planejada. Eu usava enquanto uma rede social pessoal, postava meus afetos e a minha vidinha ordinária, minhas coisinhas.  Fotografava o que eu estava lendo - eu sempre fui um leitor de poesia, um leitor meio ávido até de poesia contemporânea, então eu partilhava muito dessas leituras. Em 2019 eu passei a fazer um trabalho que depois eu parei de fazer exatamente porque assustou muito o modo como ele aconteceu na internet, que era a produção de materiais poéticos com cards, cartões. Nisso começou aquela coisa de poder compartilhar nos stories a deu uma viralizada. Eu nem sei se é essa palavra,  mas a coisa se espalhou, sabe? Eu tinha aberto minha conta havia pouco tempo e, de fato, muita gente chegou até mim pelo Instagram. Nesse momento era eu quem enviava os livros ainda, que revendia a partir do que eu comprava na editora, enfim, esse processo mesmo independente de circulação do trabalho. Então isso aconteceu de um jeito muito legal no Instagram, de modo muito bonito. E isso que me interessa na internet, estar em rede, perto de pessoas, e produzir essa espécie de irmandade. Mas eu comecei a ficar um pouco desconfiado e um pouco assustado a partir de dois fatos marcantes. Uma vez dei uma entrevista para um podcast e a pessoa que estava me entrevistando me apresentou como “poeta de Instagram” e isso foi um pouco ruidoso para mim, sabe? Não sei se quero ser chamado disso, mas não há uma coisa moralista aqui. Eu gosto muito de ler poesia nas redes sociais, existem páginas incríveis com curadorias muito bonitas, um trabalho de formação de público mesmo muito importante sendo feito. Existe uma geração que está conhecendo a poesia a partir dessas práticas virtuais, desse modo deselitizado. Mas essa fala dessa pessoa me fez pensar: “poxa, será que estão me lendo como alguém que produz para o Instagram?” E minha criação não tem como finalidade isso,  não está pautada pelos movimentos virtuais e das redes. Elas são um meio. E o segundo acontecimento foi em outra entrevista, quando me foi perguntado sobre como era o meu trabalho na “criação de slogans” com as minhas bandeiras. Daí nesse momento eu pensei “cara, realmente existe um ruído entre o meu desejo e a minha prática”.  Não tem produto, não é publicidade! Minhas bandeiras são materiais expositivos, uma produção de ruído na paisagem. Eu sei que quando a coisa está no mundo as pessoas vão ter recepções distintas. Existe quem vai ler como slogan... Mas isso alterou um pouco o meu modo de estar nas redes sociais. Dou então minhas saídas, mas elas são temporárias, estou sempre em trânsito.

CONTINENTE Voltando um pouco ao livro, queria falar sobre as temáticas presentes nele. Em América havia uma necessidade muito forte de revelar feridas abertas pelos processos colonizatórios, pela violência contra corpos LGBTQIA+, questões objetivamente políticas. Esse novo livro parece ao mesmo tempo desenvolver algumas dessas pautas, mas de forma mais subjetiva, voltando um pouco a algo de uma certa crônica urbana e amorosa dos nossos tempos, como em Haverá festa como que restar e língua pele áspera.
FRANCISCO MALLMANN Olhando primeiro para essa trajetória dos livros, eu tenho a impressão de que o Haverá festa com o que restar tinha uma coisa de eu reunir poemas escritos em vários anos, coisas escritas em lugares, em tempos, em maneiras muito distintas. O pitiquinho, língua pele áspera, tem uma coisa de já tentar uma coesão maior. No América eu entendo algo que pra mim vai ser muito importante pra chegar nesse, que é uma ideia de projeto mesmo. Isso fica evidente na medida em que o livro é também uma ação, uma ação cênica, ele é a bandeira, um montão de coisas, que me fez conceber ele como projeto do início ao fim. E esse, Tudo que leva consigo um nome, tem esse trânsito que você localiza muitíssimo bem. Eu mesmo não corro o perigo de dizer o que é (risos). Pra mim são poemas dentro de uma história mais longa. Essa história é uma história que se dá no tempo e acho que dá tanto pra fazer isso, de ler esses poemas como peças independentes e materiais autônomos. Mas o meu convite é o da travessia, de fazer leitura que vai acompanhando essa essa voz/personagem/eu lírico. E pensei bastante sobre o que há de mobilizador na escrita desse livro. Tem esse quê novelístico, esse quê de narrativa longa, ao mesmo tempo em que é o caderno dessa narradora, algo que ela escreve sozinha, meio desavisada, tentando pôr ordem nessa vida pós-ruptura, mas também um guardanapo em que ela escreve bilhetes. É poesia, mas também terapia. Ela na verdade está pouquíssima interessada em pensar se isso é poesia de fato, tem uns versos em que ela fala sobre isso. E existe um humor que eu desejei investigar também nesse livro, que é uma coisa que eu tenho enquanto a pessoa que sou, mas que às vezes eu não articulava muito nas minhas criações artísticas.

CONTINENTE Estamos chegando no fim do ano e 2022 parece bem decisivo para muitos, tanto pelo avanço da vacinação contra a covid-19 quanto pelas eleições. O que você espera desse novo ano?
FRANCISCO MALLMANN Eu espero que os nossos aprendizados não se desfaçam, que eles não sejam à toa. Espero também uma certa instauração da ação, a partir de toda essa contenção. A partir desse bombardeio diário pesadíssimo - e eu estou falando de política institucional,  das estatísticas, dos nossos sustos, desamparos e das nossas perdas pessoais e coletivas. Eu queria muito que essa fúria não se abrandasse em um certo tipo de alegria desinteressada por a gente estar voltando a se encontrar presencialmente, por exemplo. Eu queria muito que a gente conseguisse dar corpo a essa fúria, produzir práticas efetivas em relação a isso. Eu queria muito também que a gente conseguisse retomar com dignidade os nossos ofícios e os nossos trabalhos, criar as maneiras e os cenários que a gente acha importantes pra que a vida e a dignidade humana sejam valorizadas nesse país. E aí eu estou falando tanto das eleições diretas quanto das nossas possibilidades de ação no raio mais próximo que a gente tem ao redor do nosso corpo. Eu queria mandar os malditos embora, como diz aquela composição que eu amo, Purificar o Subaé (risos). Queria a queda do genocida, evidentemente. Que a gente se mantenha furiosas e que a gente não se acostume com o horror das coisas. E que a gente  possa alterar e que a alteração seja profunda!

VALENTINE HEROLD é jornalista com mestrado em Sociologia.

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