Entremez

Vou consultar o oráculo

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

05 de Setembro de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Desde as oito horas da manhã tento me concentrar na escrita de meu novo romance. O dia amanheceu ensolarado, a temperatura agradável, perfeito para ganhar as ruas. Preciso escrever, mas não consigo. Na igreja presbiteriana em frente ao edifício onde moro, os fiéis cantam alto e a música me desconcentra. São hinos em louvor a Deus. Jesus Cristo é exaltado como a salvação e a vida. 

Desisto do trabalho, calço os tênis e saio para caminhar. Os cantos se elevam no templo frequentado por pessoas de classe média alta, bem-vestidas, que chegam em carros. A não ser pelo contínuo da música, os fiéis não incomodam a vizinhança. São pessoas educadas, com bíblias nas mãos e bandeiras do Brasil enfeitando os veículos, revelando de que lado seus proprietários se posicionam na disputa política que nos divide. Estranho a apropriação que os bolsonaristas fizeram dos símbolos nacionais: a bandeira, o hino da independência, o hino do Brasil. É como se os outros brasileiros que rezam por uma cartilha diferente não estivessem autorizados a lançar mão desses símbolos. 

Paro e ouço o sermão do presbítero sobre amor, fraternidade e paz. Parece-me da boca para fora, uma mentira, pois ele aceita o discurso de um candidato que estimula o uso de armas, prega o ódio e despreza o sofrimento das pessoas, como na pandemia do coronavírus. O Cristo de que fala não é o mesmo do Sermão da Montanha, nem o que deu a vida pela salvação do homem. Parece-me um Deus plastificado e embalado para consumo, um artefato social. Confirma para mim o que disse Nietzsche, que só existiu um único cristão verdadeiro, o Cristo. O restante é simulacro. 

Sinto vontade de invadir o templo e alertar para a incoerência da pregação, pedir que me revelem por que insistem na mentira e falam em nome de Deus como se tratassem da verdade. Mas não tenho coragem de fazer isso, precisaria entrar em milhares de outros templos no Brasil, como Jesus fez em Jerusalém, e açoitar os vendilhões da fé. Controlo-me e sigo em frente. 

Não consigo deixar de ver e pensar, observo a arbitrária divisão que os administradores da cidade fizeram para atender à ganância das construtoras. A Estrada do Encanamento divide Casa Forte, Monteiro e Poço da Panela, de um lado, e Casa Amarela do outro. Os três primeiros bairros são considerados nobres, enquanto Casa Amarela é um bairro popular. Nos bairros nobres há limite de altura dos prédios e no bairro popular pode-se construir à vontade. Estão subindo um edifício de quarenta andares, ao pé do Alto de Santa Isabel. 

Em Recife, nos trinta anos de administração de partidos considerados de esquerda – mas que na verdade funcionam como de centro direita –, o projeto urbanístico da cidade saiu do poder público para as mãos das grandes construtoras. São elas que botam casas abaixo, derrubam árvores, aterram mangues. E a sociedade civil, quando se manifesta, é derrotada pelos donos do capital, os que compram, pagam e financiam campanhas políticas. 

A administração pública não escapa ao modelo capitalista neoliberal, por mais que os políticos escumem os cantos da boca em seus discursos de punhos fechados. De nada valeu a luta contra a elevação das Torres Gêmeas, a ocupação de armazéns no Cais José Estelita, o protesto de moradores no Pina, contra o Shopping Rio Mar. A cidade perde sua feição de Veneza Brasileira, botam abaixo o casario em estilos variados, o centro histórico se degrada, o Bairro do Recife não recebe investimentos para sua recuperação. 

Uma arquiteta do patrimônio Histórico faz um comentário bem pertinente: se temos pessoas abandonadas, vivendo na faixa da miséria, como podemos investir na recuperação de prédios? Precisamos investir em seres humanos. 

Calo diante do argumento incontestável. 

Final de tarde, atravesso as ruas caóticas e degradadas do Recife Antigo, em meio ao barulho de maracatus. Milhares de pessoas celebram Deus. Qual deles?, me pergunto. 

No palco do Teatro Apolo, assisto a uma performance sobre a Sibila. Sinto que perdi meus vínculos com os mistérios e o sagrado. Essa constatação me apavora. 

Das 21 às 23 horas acompanho o debate dos seis candidatos à presidência de nosso país. Me estarreço com as agressões e mentiras. 

Não consigo dormir bem. O que é possível fazer? A literatura parece não ter mais sentido, diante da realidade bruta do Brasil. Vou consultar a Sibila do templo de Apolo, em Delfos.

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