Entremez

Toda a cidade um carnaval

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

05 de Março de 2018

Foto Reprodução

Sábado de Zé Pereira, 16h30.

Apanho um táxi em Casa Forte com a intenção de chegar ao Bairro do Recife. Peço ao motorista que me deixe na Rua do Riachuelo, imagino que vamos encontrar a dispersão do Galo da Madrugada e não conseguiremos transpô-la de carro. Eu estava entre os 100 brincantes na primeira saída do clube, há 40 anos. Sem uma gota de álcool no juízo, me camuflava pelas calçadas, folião tímido e envergonhado. Às nove horas pendurava a fantasia. Acompanhei o crescimento da agremiação, vi as orquestras no meio da rua se transformarem em trios elétricos. A saída já não era ao alvorecer, o recolhimento beirava a noite, almoçávamos no Gambrinus. Quando senti o primeiro sufoco na rua da Concórdia, os pés levantados do chão contra meu desejo, o pânico de ser esmagado pela maré compacta, percebi que o meu tempo de Galo findara. Não busquei saídas colaterais como outros amigos, desisti mesmo.

Os foliões dispersos me assustam, o Recife afogado em lixo e sujeira constrange. Sem uma molécula etílica ou de cannabis no cérebro transponho a massa que não é real como a do frevo. Homens, mulheres e crianças, os humilhados de sempre, catam latas de cerveja e refrigerante, amassam com os pés e armazenam em sacos. É o carnaval deles. Trabalham indiferentes à música e aos que tornaram o carnaval compulsivo, obrigatório, lei, e só pensam em encher os bolsos de dinheiro.

Gente anônima, periférica, caminha à procura de transporte como se desejasse escapar o mais depressa de onde se esbaldavam no passo, na música ruim e estridente, no erotismo e no álcool. Bacantes? Uhn! Eram assim os cortejos dionisíacos, tão feios e assustadores? Tou fora. O Deus não se compadece da população recifense, bota pra quebrar. Seminus, homens e mulheres expõem banhas raspadas e tatuadas com palavras e imagens, incompreensíveis para eles próprios, uma nova pele que desbotará com o tempo, mas que será eterna como o sinal de Caim.

Capto a força descontrolada, dispersa, sem direção. Para onde ela converge, qual o seu fim? Um cortejo ditirâmbico. Embriagadas de vinho e música as bacantes se enfureciam e matavam, possuídas pelo Deus. Que deus possui e governa essa gente? O que ela deseja botar abaixo? Dois milhões de vontades podem muito. Podem.

A mesma pergunta se faz João Moreira Salles em seu documentário No intenso agora, sobre o maio de 1968, na França. A força destrutiva dos jovens estudantes não resultou em mudanças importantes nas universidades, nem para os trabalhadores grevistas. Prevaleceu a burguesia, os que se mantinham e se mantiveram à frente do poder. Ao término do filme, é inevitável a pergunta sobre a ocupação das ruas e o quebra-quebra de 2013, aqui no Brasil. Quais os ganhos daquilo tudo? É cedo para responder? Ah!, o enredo da escola de samba Paraíso do Tuiuti. Patos e jovens fantasiados de jogadores verde e amarelo, fantoches manipulados pela Fiesp, imprensa, banqueiros, políticos e empresários. Os bonecos e as mãos firmes, poderosas, nada molengas dos titeriteiros. Meu Deus, meu Deus está extinta a escravidão?

SEGUNDA-FEIRA
O amigo enviou a foto em que apareço de camisa estampada azul e branca, dois colares havaianos no pescoço. Ele comenta que roo as unhas. Na verdade, puxo os fios da barba. Desci novamente na Riachuelo e vim caminhando até a rua da Moeda, onde montei meu observatório. Passaram os blocos líricos que me deprimem e alguns maracatus de classe média, formados por pessoas brancas, estudantes, gente de outros estados e países. A depressão aumenta. Cuido em deslocar-me para outro observatório quando avisto a enorme bandeira vermelha com a palavra JESUS. Opa! Bebo cerveja, ninguém é de ferro, preciso aguentar o que vejo. Um conhecido sussurra ao meu ouvido que quatro agrupamentos iguais a esse desfilam pelo bairro. É o segundo que passa. O mesmo batuque indefinido entre samba, afoxé e maracatu, ala de mulheres à frente tocando agbê, um brincante percutindo o gonguê, correndo entre as fileiras e atiçando os batuqueiros. A indumentária lembra a dos fascistas italianos e nazistas alemães. Movimentos marciais, braços erguidos, punhos em riste, palavras de ordem. Socorro, Fellini! São evangélicos, católicos radicais, eleitores de Bolsonaro? Alguns membros da seita batuqueira caminham ao lado dos cordões, distribuindo panfletos e convocando a receber Jesus, a Palavra, o Caminho. No carnaval? Pode? Pode tudo. No carnaval desagua o que não achou lugar no mundo e anda atrás de encontrar algum espaço.

DA QUINTA PRÉ-CARNAVAL À QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Na quinta, vi o encontro de maracatus no palco do Marco Zero. A mesma desordem carnavalesca dos outros anos. Mesmo assim, os olhos encheram de lágrimas, o coração disparou. Senti saudades de Naná, mas exultei com Guitinho e o Grupo Bongar. Desculpem a rima. Na sexta, a abertura em homenagem ao frevo. Bonita. Quinteto Violado, orquestra regida pelo maestro Duda, muita música tradicional e a performance eletrizante do Pachka com a bailarina Inaê Silva. O frevo pulsa por mudanças. No sábado, palco da Torre Malakoff, a Orquestra Popular do Recife com o maestro Ademir Araújo. O frevo também pulsa pela tradição. Vi blocos, maracatus de baque solto e virado, caboclinhos, clubes, troças, bois, ursas. No domingo, Edson Rodrigues, o saxofone e a orquestra. Mais frevo bom e passistas. Na segunda, o caos. A cidade inteira transpondo pontes para ver a banda Natiruts e Devotos. Cabe tanta gente no bairro? Fujo para o Rec-Beat e assisto João do Pife e a Banda Dois Irmãos, e metade do show da Carne Doce. Quero escutar os tambores do Pátio do Terço, me apresso, Recife caminhado. No percurso, a multidão me assusta. Fileiras de rapazes periféricos escoltados de perto pela polícia motorizada. Nova tristeza. Chego ao Pátio de São Pedro, iluminado pela Família Salustiano e a Rabeca Encantada. Tocam uma ciranda e eu giro, giro, giro até ficar tonto. Um leitor me reconhece, convida para conhecer um sobrado que acaba de comprar, onde funciona um brechó. Nunca o vi antes, não o temo, aceito o convite. Subo escadas de madeira, chego a uma sala repleta de gente muito estranha, subo mais escadas e alcanço uma puxada de onde se avista o convento e a basílica de N. S. do Carmo, com seu belo altar barroco. Recordo o suplício de Frei Caneca, a Confederação do Equador, o Auto do Frade de João Cabral. Quanta revolução e poesia. As pessoas da casa me tratam bem, pedem fotos, selfies. Me despeço e sigo ao Pátio do Terço. De longe, ouço o baque dos maracatus tradicionais. Cadê Badia, cadê Badia, cadê Badia? Estou mesmo no Recife, sinto pelo nariz e pelos poros, na cidade onde acontece o melhor carnaval do mundo e se curte a quarta-feira no Mercado da Boa Vista, ao lado da Igreja de Santa Cruz, fechada, olhando a igrejinha de São Gonçalo, igualmente fechada.

Onde posso receber as cinzas da quaresma na cidade que tanto amo?, me pergunto.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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