Entremez

Tapem os ouvidos e não chamem a polícia

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

06 de Novembro de 2018

Santa Cruz do Capibaribe foi o único município de Pernambuco que deu maioria a Jair Bolsonaro, no segundo turno das eleições. Isso propõe alguma reflexão? Santa Cruz e os municípios que se desenvolveram em torno dela, no boom da produção de roupas conhecidas por sulanca, são cidades violentas, com sonegação de impostos e enriquecimento vertiginoso dos fabricantes de moda, comerciantes e pequenos industriais. Fortemente armada, sujeita a quadrilhas atuando em assaltos de banco, tem problemas sérios de saneamento básico, urbanismo e meio ambiente, como a poluição do Rio Capibaribe. Esses danos primários contrastam com o crescimento da economia.

Na vizinha Taquaritinga do Norte, durante a festa do padroeiro Santo Amaro, moradores e vizinhos realizam um concurso de paredão. Para quem não sabe, paredão é como chamam o som de um carro, alguns parecendo mais um trio elétrico do que um auto de passeio. Camionetas enchem as carrocerias de caixas de som e saem por aí, instaurando a desordem sonora no mundo sem lei do Brasil, lembrando os desmandos da era Lampião.

Uma vez atravessei por esse campo de batalha, os competidores entrincheirados nas duas pistas que dão acesso à cidade. Meus ouvidos reclamam até hoje. Todos acham normal e de direito ligar o som do seu carro em qualquer canto: na praia, numa serra, no meio da praça, na frente da casa do vizinho. Mas não é de direito reclamar contra o abuso. Na prática, nenhuma lei protege quem se sente incomodado. Os mais afoitos, quando reclamam, se deparam com uma horda de bêbados agressivos, que partem para a ação física, geralmente sacando revólveres. A polícia nunca comparece ao local, alega não haver contingente bastante e que se encontra ocupada com questões mais sérias do que ouvidos sensíveis.

Será que em Marte também existem paredões? Se alguém souber a resposta, por favor, me escreva. Na minha infância, o cariri cearense lembrava o paraíso. Hoje parece o inferno com milhares de carros e motos circulando para cima e para baixo. No interior do sul do Brasil, as cidades também eram silenciosas há alguns anos. O jeito é mudar para o Canadá, fugir como o personagem de Tchekhov: “Estou cansado de vulgaridades por todos os lados [...] Gente enfadonha, vazia... Não há nada mais medonho, mais ultrajante, mais deprimente do que a vulgaridade. Fugir daqui, fugir hoje mesmo, senão vou ficar louco!” Mas não consigo imaginar-me noutro lugar que não seja o Brasil. E fico, reajo, luto, esbravejo, falo e escrevo.

Taquaritinga situa-se no Agreste Setentrional de Pernambuco, onde o transporte popular são as Toyota. Até alguns anos atrás, a principal fonte de renda vinha da agropecuária. Da noite para o dia surgiu e cresceu a produção de roupas, prosperando uma classe social que antes morava no campo. Junto com Caruaru, Toritama, Santa Cruz do Capibaribe e pequenos distritos, a região ficou conhecida pela exportação de moda, sobretudo jeans.

O crescimento econômico não veio de mãos dadas com o crescimento na educação, na cultura, na preservação do meio ambiente, na saúde, no saneamento, no controle urbano e na segurança. A região passou a sofrer as mesmas mazelas dos grandes centros: consumo de álcool e drogas, aumento da violência, sobretudo no trânsito caótico dominado pelas motos. Tornou-se o retrato de um progresso desordenado, que trouxe ganhos ao PIB, mas uma conta social elevada.

As pessoas abandonaram os sítios, passando a morar nas periferias das cidades. As poucas que ainda residem no campo, sobrevivem do trabalho para as fábricas de sulanca. Instalaram máquinas de costura em casa e recebem as encomendas na porta. São os motoqueiros que se encarregam desse transporte. As Toyota fazem as entregas mais volumosas e levam os fabricantes para vender seus produtos nas feiras. A nova economia da região depende do trabalho de toyoteiros e motoqueiros, assim como eles dependem das motos e das Toyota para sobreviver.

Nada contra os novos meios de produção do Agreste e a mobilidade das classes sociais, que adquiriram mais poder de compra. Celebraria tudo isso com fogos, apesar de odiar o barulho, se as estatísticas em curva ascendente também fossem registradas na educação. Não são. Continuamos um país subdesenvolvido nesse item, principalmente no Nordeste.

O Toyoteiro que trabalha pesado durante a semana acha justo encher a cara de aguardente no domingo, substituir os bancos do carro por caixas, subir a serra e curtir a cachaça ao som de um forró abominável, no último volume, pouco ligando para os moradores que fogem do barulho da cidade. É um assassinato. Cada nota soa como um tiro no coração. Ninguém controla o cangaceiro. Ele acredita que pode qualquer coisa, da mesma maneira que pode andar sem cinto de segurança, passageiros com as pernas fora do carro, excesso de lotação, pneus carecas, faróis e sinaleiras sem funcionar e até embriagados. Nada que ele não resolva no jeitinho brasileiro, se acontecer a remota chance de ser parado por um policial do trânsito.

Viva-se com um barulho desses. Reclamar a quem, a Deus? Embora existam evangélicos em excesso, já não se encontram profetas como Elias, que invocava os poderes do céu e os raios desciam lá de cima, aplacando sua fúria de justiça. Mudar-me? Já falei que não. O poeta japonês Bashô, criador do haicai, só possuía um guarda-chuva e isso lhe dava mobilidade para deslocar-se. Acho que farei o mesmo, comprar um guarda-chuva made in China. Difícil será encontrar um lugar silencioso no Nordeste do Brasil. Vocês conhecem algum? Escrevam para mim dizendo. Mas não vale piadinhas como me recomendar o Cairo.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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