Entremez

Tango para Sevy

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

06 de Maio de 2020

Avenida Guararapes, centro do Recife, nos anos 1970

Avenida Guararapes, centro do Recife, nos anos 1970

Foto Alcir Lacerda/Reprodução

O carro de Zoca Madureira e Sevy era uma Brasília e nós estávamos no Alto José do Pinho, em Casa Amarela, na sede do Caboclinho Sete Flechas. Zé Alfaiate, o dono do brinquedo, gastava o dinheiro ganho na máquina de costura em capacetes, penachos, saiotes e pagando aos músicos e puxantes. Nessa noite, subimos o morro para assistir o Auto do Traidor, um entremez que Mário de Andrade registrara em sua viagem, e apenas um caboclo do Sete Flechas conhecia. A comissão carnavalesca do Recife limitava o desfile das agremiações a vinte minutos e, por conta disso, os caboclinhos negligenciavam danças dramáticas e coreografias, que findavam no esquecimento. Bergson Queiroz e eu registramos em torno de 120 passos e manobras. Suponho que menos de um quinto desse repertório se mantém.

Vivíamos a intensa década de 1970. Nóbrega, que na época se chamava Antonio Carlos, ou Toinho, e ainda tocava no Quinteto Armorial, também compareceu à representação. Éramos uma confraria de estudiosos da cultura popular, viajávamos à procura de brincantes, tivemos a sorte de ver o belo festival de folclore organizado por Théo Brandão, em Maceió. Nóbrega e eu tomávamos aula de dança com Nascimento do Passo, Mestre Salustiano e o gafieirista Benedito, numa casa ateliê mantida por ele na Estrada Real do Poço.

Voltemos à Brasília.

Eufóricos com a representação do Traidor, baixamos o fogo ao descobrir um vidro do carro quebrado. Levaram alguns pertences e a máquina fotográfica de Sevy. Decidimos consolar-nos no restaurante e bar A Nova Portuguesa, numa rua transversal à Praça da Independência. Depois de muita cerveja, da comida maravilhosamente péssima, da inoportuna companhia de uma pedinte louca, que assumiu cadeira na mesa e exigia camarão ou lagosta, apareceu um violão.

Um violão?

Madureira toca, percutem pratos, copos e colheres, e, por fim, o tango.

Quem dança?

Sevy e eu. 

Tudo acabava em tango naquele tempo maluco, como acaba em pizza no tempo incompreensível de agora.

Nosso tango era pândega de bailarinos sem escola, embromação e sensualidade falsa. Sevy, beleza pura, olhos verdes, cabelos abundantes, rebeldia e provocação.

– Um tango, vamos!
– Ah! De novo? Sinto vergonha.
– Vai, macho desconjuntado!, alguém me estimula.

O Mané Molenga ossos e barba, calça justa, tocava a dama e fingia dançar tango em requebros de gafieira e samba. Pernas juntas, coladas, de envergonhar um portenho.

E quando o cavalheiro deita a dama num clássico cambré, o garçom se atravessa entre os corpos e grita para o balcão:

– Uma macarronada à bolonhesa.

No retorno à vertical, os dois farsantes se olham e riem, gargalham até as lágrimas. A louca que só comia camarão e lagosta bate palmas, grita, saca da bolsa e desenrola tiras e mais tiras de plástico colorido, improvisando um bailado com elas. O restaurante cheio madrugada afora ri e aplaude. O tango macarrônico brocha, não se requenta ao tempero de manjericão, sálvia e molho de tomate.

– Tango para Tereza!, alguém pede.

Ângela Maria já gravara o sucesso? Não tem importância. A música se incorporou ao repertório dos dançarinos, onde houvesse bar com radiola de ficha.

Hoje, alguém pôs a rodar
Um disco de Gardel,
No apartamento junto ao meu,
Que tristeza me deu.
Era todo um passado lindo,
A mocidade vindo da parede
Me dizer para eu sofrer.

Se repetiria no Bar Central – em frente à estação do trem, Bairro de São José, onde os gays assumidos dançavam coladinhos e se beijavam na boca –, no Gregório, bar do beco do Veado Branco, Travessa de São Pedro, na dispersão do Galo da madrugada, e em festas e farras, até a performance final, no aniversário de 50 anos da dama de olhos verdes.

Conheci a partner na casa do Zumbi, o bairro de Joaquim Cardozo – Eu não sou bem um poeta. Minha vida é que é cheia de hiatos de poesia –, quando convidei Zoca Madureira para a nossa primeira parceria, no filme Lua Cambará. O segundo filho do casal, Lino, nome em homenagem ao irmão de Orfeu, chorava num berço. E a filha mais velha, Lia, onde brincava? Ariano viera conversar, o Armorial lançado em 1970 ganhara projeção, Madureira era o carro-chefe e a esperança de uma nova música. Sevy vestia um longo de chita, que mais realçava a beleza agreste. Convidaram-me a entrar no Bloco da Saudade, recém-criado. Ariano me segredou uma preocupação, ouvi bastante sobre literatura, ele tinha menos de 50 anos nessa época, era três anos mais jovem do que o meu pai.

Depois...

Depois frequentei a casa sobrado no Poço da Panela, cheia de mangueiras e ameaçada harmonia. Tempo de composição do Baile do Menino Deus, eu largando os plantões no Hospital Agamenon Magalhães para ouvir as músicas, angustiado, tenso, um sonâmbulo.

É alegre criar.

É doloroso criar.

Sevy correu atrás de si mesma. O casarão tornou-se grande, o casamento pequeno. Virou pesquisadora, mergulhou em projetos de promoção social dos miseráveis, no Brasil e na África, em meio à febre amarela e a malária, uma batalha por ideais, pela sobrevivência própria e dos filhos.

Lutou.

Adoeceu.

Lutou.

Descobriu-se forte, solidária, amiga, sentiu-se fraca, asmática, sozinha, em pânico, exausta. A doença consumiu as carnes da dança, triturou os nervos do tango. O viver tornou-se arco retesado.

Um projeto e um livro em 1996, Bairro do Recife, a revitalização & o porto seguro da boemia. Memória de liberdade que só os poetas e músicos inventam? Imaginam que as mulheres de vida livre (livre?) alcançam. A mãe de Sevy alcançara o céu por esse caminho? Talvez não. Com certeza não. A Boate Chantecler e o Bar do Grego deixaram de existir, sobreviveram apenas a miséria e a decadência do bairro, o Recife Antigo.

Preso sem haver cometido crime, sem alvará de soltura nem futuro, sonho com o Recife, sinto saudade, imagino Sevy atravessando as pontes do bairro portuário, que registrou no livro. Tudo é póstumo.

A luz do cabaré já se apagou em mim,
O tango na vitrola, também chegou ao fim,
Parece me dizer
Que a noite envelheceu,
Que é hora de lembrar
E de chorar.

Choremos todos juntos pelo não futuro.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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