Avenida Guararapes, centro do Recife, nos anos 1970
Foto Alcir Lacerda/Reprodução
O carro de Zoca Madureira e Sevy era uma Brasília e nós estávamos no Alto José do Pinho, em Casa Amarela, na sede do Caboclinho Sete Flechas. Zé Alfaiate, o dono do brinquedo, gastava o dinheiro ganho na máquina de costura em capacetes, penachos, saiotes e pagando aos músicos e puxantes. Nessa noite, subimos o morro para assistir o Auto do Traidor, um entremez que Mário de Andrade registrara em sua viagem, e apenas um caboclo do Sete Flechas conhecia. A comissão carnavalesca do Recife limitava o desfile das agremiações a vinte minutos e, por conta disso, os caboclinhos negligenciavam danças dramáticas e coreografias, que findavam no esquecimento. Bergson Queiroz e eu registramos em torno de 120 passos e manobras. Suponho que menos de um quinto desse repertório se mantém.
Vivíamos a intensa década de 1970. Nóbrega, que na época se chamava Antonio Carlos, ou Toinho, e ainda tocava no Quinteto Armorial, também compareceu à representação. Éramos uma confraria de estudiosos da cultura popular, viajávamos à procura de brincantes, tivemos a sorte de ver o belo festival de folclore organizado por Théo Brandão, em Maceió. Nóbrega e eu tomávamos aula de dança com Nascimento do Passo, Mestre Salustiano e o gafieirista Benedito, numa casa ateliê mantida por ele na Estrada Real do Poço.
Voltemos à Brasília.
Eufóricos com a representação do Traidor, baixamos o fogo ao descobrir um vidro do carro quebrado. Levaram alguns pertences e a máquina fotográfica de Sevy. Decidimos consolar-nos no restaurante e bar A Nova Portuguesa, numa rua transversal à Praça da Independência. Depois de muita cerveja, da comida maravilhosamente péssima, da inoportuna companhia de uma pedinte louca, que assumiu cadeira na mesa e exigia camarão ou lagosta, apareceu um violão.
Um violão?
Madureira toca, percutem pratos, copos e colheres, e, por fim, o tango.
Quem dança?
Sevy e eu.
Tudo acabava em tango naquele tempo maluco, como acaba em pizza no tempo incompreensível de agora.
Nosso tango era pândega de bailarinos sem escola, embromação e sensualidade falsa. Sevy, beleza pura, olhos verdes, cabelos abundantes, rebeldia e provocação.
– Um tango, vamos!
– Ah! De novo? Sinto vergonha.
– Vai, macho desconjuntado!, alguém me estimula.
O Mané Molenga ossos e barba, calça justa, tocava a dama e fingia dançar tango em requebros de gafieira e samba. Pernas juntas, coladas, de envergonhar um portenho.
E quando o cavalheiro deita a dama num clássico cambré, o garçom se atravessa entre os corpos e grita para o balcão:
– Uma macarronada à bolonhesa.
No retorno à vertical, os dois farsantes se olham e riem, gargalham até as lágrimas. A louca que só comia camarão e lagosta bate palmas, grita, saca da bolsa e desenrola tiras e mais tiras de plástico colorido, improvisando um bailado com elas. O restaurante cheio madrugada afora ri e aplaude. O tango macarrônico brocha, não se requenta ao tempero de manjericão, sálvia e molho de tomate.
– Tango para Tereza!, alguém pede.
Ângela Maria já gravara o sucesso? Não tem importância. A música se incorporou ao repertório dos dançarinos, onde houvesse bar com radiola de ficha.
Hoje, alguém pôs a rodar
Um disco de Gardel,
No apartamento junto ao meu,
Que tristeza me deu.
Era todo um passado lindo,
A mocidade vindo da parede
Me dizer para eu sofrer.
Se repetiria no Bar Central – em frente à estação do trem, Bairro de São José, onde os gays assumidos dançavam coladinhos e se beijavam na boca –, no Gregório, bar do beco do Veado Branco, Travessa de São Pedro, na dispersão do Galo da madrugada, e em festas e farras, até a performance final, no aniversário de 50 anos da dama de olhos verdes.
Conheci a partner na casa do Zumbi, o bairro de Joaquim Cardozo – Eu não sou bem um poeta. Minha vida é que é cheia de hiatos de poesia –, quando convidei Zoca Madureira para a nossa primeira parceria, no filme Lua Cambará. O segundo filho do casal, Lino, nome em homenagem ao irmão de Orfeu, chorava num berço. E a filha mais velha, Lia, onde brincava? Ariano viera conversar, o Armorial lançado em 1970 ganhara projeção, Madureira era o carro-chefe e a esperança de uma nova música. Sevy vestia um longo de chita, que mais realçava a beleza agreste. Convidaram-me a entrar no Bloco da Saudade, recém-criado. Ariano me segredou uma preocupação, ouvi bastante sobre literatura, ele tinha menos de 50 anos nessa época, era três anos mais jovem do que o meu pai.
Depois...
Depois frequentei a casa sobrado no Poço da Panela, cheia de mangueiras e ameaçada harmonia. Tempo de composição do Baile do Menino Deus, eu largando os plantões no Hospital Agamenon Magalhães para ouvir as músicas, angustiado, tenso, um sonâmbulo.
É alegre criar.
É doloroso criar.
Sevy correu atrás de si mesma. O casarão tornou-se grande, o casamento pequeno. Virou pesquisadora, mergulhou em projetos de promoção social dos miseráveis, no Brasil e na África, em meio à febre amarela e a malária, uma batalha por ideais, pela sobrevivência própria e dos filhos.
Lutou.
Adoeceu.
Lutou.
Descobriu-se forte, solidária, amiga, sentiu-se fraca, asmática, sozinha, em pânico, exausta. A doença consumiu as carnes da dança, triturou os nervos do tango. O viver tornou-se arco retesado.
Um projeto e um livro em 1996, Bairro do Recife, a revitalização & o porto seguro da boemia. Memória de liberdade que só os poetas e músicos inventam? Imaginam que as mulheres de vida livre (livre?) alcançam. A mãe de Sevy alcançara o céu por esse caminho? Talvez não. Com certeza não. A Boate Chantecler e o Bar do Grego deixaram de existir, sobreviveram apenas a miséria e a decadência do bairro, o Recife Antigo.
Preso sem haver cometido crime, sem alvará de soltura nem futuro, sonho com o Recife, sinto saudade, imagino Sevy atravessando as pontes do bairro portuário, que registrou no livro. Tudo é póstumo.
A luz do cabaré já se apagou em mim,
O tango na vitrola, também chegou ao fim,
Parece me dizer
Que a noite envelheceu,
Que é hora de lembrar
E de chorar.
Choremos todos juntos pelo não futuro.
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necessariamente a opinião da revista Continente.