Sim, continuo vivo e respirando sem ajuda de aparelhos. Às vezes parece que não, mas algum sinal me desperta o desejo de escrever, produzir espetáculos e ganhar as ruas.
No domingo seguinte às manifestações a favor da democracia, aos apelos por saúde e emprego, percorri o bairro da Boa Vista. Tinha dormido mal ou nem dormido, insone pelas imagens de repressão policial no Recife. Sou dos que ficaram em casa com receio de contrair a Covid-19. Não costumo correr das paradas, mas dessa vez agi como médico temeroso, obediente às regras sanitárias de prevenção ao contágio.
De Casa Forte ao Pátio de Santa Cruz encontrei a cidade vazia, até dos moradores de rua. Deserta, ela pareceu bonita igual a quando a vi pela primeira vez, em 1969. Quinze meses de exílio involuntário me causam a sensação de abandonar um presídio. Evoco a fala do Frei Caneca, no Auto do frade, de João Cabral.
Acordo fora de mim:
como fora nada eu via,
ficava dentro de mim
como vida apodrecida.
Acordar não é de dentro,
acordar é ter saída.
Acordar é reacordar-se
ao que em nosso redor gira.
Nunca fiquei muito tempo separado do Recife. O atual divórcio ameaçou minha criação. Abasteço-me no convívio com as pessoas em ruas, praças, cinemas, feiras, terreiros de candomblé, bairros periféricos. Minha literatura nasce dessa fricção, do sentir e contagiar-se com o que gira ao meu redor. Estive dormindo e não despertei completamente. Nem sei se algum dia acordarei enxergando o que antes enxergava.
Não desejo morar em Portugal, na França ou nos Estados Unidos, embora esteja na moda a deserção e o exílio. Compreendo os amigos que partem, mas dói vê-los partindo com seus argumentos de fuga. Os judeus que largaram tudo na Alemanha, Polônia e Hungria, antes da Segunda Guerra, salvaram as vidas e alguma coisa pouca. Ficando por aqui nesse tempo, é garantida apenas uma cela escura e a ilusão de estar vivo.
Será diferente morar em São Paulo? De lá partem os tentáculos da imprensa e da economia fortes. De universidades conceituadas, produções bem-sucedidas, do jornalismo e da crítica que nos impõem um involuntário (ou voluntário?) “de acordo”, parecendo não existir inteligência ou criatividade no restante do país. Também nos Estados Unidos as pessoas se esforçam em parecer felizes e eficientes, como se criassem o que ninguém é capaz de criar no restante do planeta. Numa ordem absoluta que vez por outra se fragmenta.
Aferrei-me ao Recife como Alphonsus de Guimarães a Mariana, Machado ao Rio de Janeiro, Bruno Schultz à desconhecida Drohobycz na Galícia, e Saul Bellow a Chicago, a partir da qual traçou o novo mundo americano de poder e riqueza, egoísmo arrogante e divisão social, onde a inteligência peleja contra o materialismo. Do Recife enxergo o Brasil, vivemos um tempo semelhante ao da América de Bellow, de individualismo, desgoverno e falência cultural.
Amargurado com o saldo das manifestações (não dormia nem acordava | tão forte era o meu abalo, | as imagens do Recife | povo e ruas sediados, | por policiais armados | com pimenta, gás e balas. || Quem mandou reprimir a gente, | que ordeira protestava?), quis olhar a Igreja de Santa Cruz depois da restauração, mas ela estava fechada. Vi um bêbado mijando nos gradis e senti o cheiro crônico de urina, que impregna a cidade.
Os bares proibidos em pleno domingo, por conta da pandemia, negavam a promessa do pátio virar um local de convivência e cultura, com teatros, livrarias e cafés. Caminho pela nova Rua Velha, um passeio livre de carros, e lembro desfiles de troças, la ursa, bois e caboclinhos. Masoquista, me pergunto quando voltaremos a ter carnavais. E Levino? E os Guerreiros do Passo? Mas nem o São João teremos!
Melhor visitar a Igreja da Conceição dos Militares com o precioso ex-voto cênico do coro, um painel pintado em louvor à expulsão dos holandeses, na Batalha dos Guararapes. Esperem um pouco! Os soldados representados no quadro, que Nossa Senhora protege e os pernambucanos celebram orgulhosos, são iguais aos que esmagam o povo na rua e se miliciam para um golpe futuro?
Assim, não quero mais ver a igreja.
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