Entremez

– Você conhece José Carlos?

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

02 de Março de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Meu vizinho sabe o nome do morador de rua que há meses ocupa uma pequena marquise de garagem, na casa vizinha ao nosso edifício. É uma bela construção no estilo década de 1960, com jardim, terraço ideal para conversas, cervejinha e café. Três coisas chamam atenção no imóvel: a ausência de muros e cerca elétrica, os donos raramente estarem em casa e permitirem que um morador de rua tenha se instalado na entrada, com seus trapos, colchão e travesseiro velhos. Quando os proprietários aparecem, é José Carlos quem segura o portão de madeira da garagem.

O novo vizinho foi incorporado à rotina da rua, tornou-se visível a alguns moradores do nosso prédio, uns poucos que não circulam apenas em seus carros blindados, saem para caminhadas ou academia. Os porteiros do prédio e os serventes de uma igreja presbiteriana, logo em frente, o ajudam dando água ou entregando quentinhas e caixas com alimentos.

Há um rodízio nos bens de José Carlos. Às vezes ele dorme sobre um papelão, sem nenhuma almofada para a cabeça, outras vezes tem um bom colchão, travesseiro e lençol. De repente, todos esses bens desaparecem. Ele também some por horas ou dias, ninguém sabe para onde vai. Uma tarde eu o avistei próximo à Avenida Norte, com o ar tresloucado de sempre.

José Carlos é branco, calvo, deixa a barba crescer ou se barbeia, as roupas não chamam atenção pela sujeira. Seria um homem bonito, não fossem os dentes podres, o desleixo e a alienação. Acredito que as pessoas doam roupas, além de alimentos. Quando me pediu sandálias, dei havaianas novas, que nunca usou. Não as vi nos seus pés. Lembrei a narrativa de Claude-Lévi Strauss no livro Tristes trópicos. As missões religiosas doavam roupas aos indígenas nambikwara para cobrirem a nudez. Eles vestiam por algumas horas, mas depois largavam os panos inúteis, que se transformavam em lixo. José Carlos está sempre descalço e os seus bens aparecem e desaparecem misteriosamente.

Na Califórnia, onde morei como escritor residente na Universidade de Berkeley, havia moradores de rua, pessoas que deixaram os manicômios depois da reforma psiquiátrica e viviam pelas calçadas e jardins das casas. O lixo californiano é rico, muito rico, os doidos sobreviventes da contracultura e do movimento hippie puxavam carrinhos e carroças para onde iam, verdadeiras mudanças. Afogavam-se em meio às sobras do consumo, aos refugos inúteis. No meio desse lixo e de alguns cães, reproduziam o modelo da sociedade capitalista que os repudiava e alienava. Sábios eram os nambikwara com a nudez e a recusa ao supérfluo.

Vizinha à misteriosa habitação que abriga José Carlos tem uma outra em estilo bangalô, onde funcionaram um cabeleireiro, uma boutique, uma galeria de arte e, por último, uma clínica veterinária. Acompanhei os sucessivos investimentos no imóvel, as transformações estéticas para cada um dos projetos comerciais, todos falidos. Há lugares com uma caveira de jumento enterrada, neles nada prospera. Agora, num esconderijo do jardim aberto e sem proteção, vez por outra aparece um morador de rua, sempre o mesmo com aparência de zumbi, provável usuário de crack. Ao contrário de José Carlos, é nômade, sujo e insociável. Quando saio bem cedo para o pilates, é comum encontrá-los confabulando.

Li que os moradores de rua sentem-se protegidos em lugares abertos, iluminados, com circulação de pessoas. Tornam-se menos vulneráveis a ataques criminosos. Sou um caminhante e costumo sair de casa em variados horários. Observo José Carlos dormindo sobre um papelão, sem anteparo para a cabeça, entregue ao sono.

Na casa dos meus pais, onde vivi até os 16 anos, moravam oito filhos. Somando os agregados, éramos quinze pessoas. Dividia um quarto com o irmão mais velho, um primo e um tio, irmão de minha mãe. Todos dormíamos em redes. Quando passei a usar cama, já completara 19 anos. Morei na Casa do Estudante Universitário com mais 195 colegas, uma experiência de quartel, nos anos da ditadura militar. Até espiões havia. A idade me tornou melindroso, cheio de pudores. Não compartilho o meu quarto com estranhos, nem mesmo com os filhos. Preciso de silêncio e escuro completos para conciliar o sono. E da certeza que estou em segurança.

Frequento o centro do Recife, observo os moradores de rua em suas precárias representações de casa e existência. Mas eles estão longe de mim, em São José, Santo Antônio, Boa Vista... José Carlos é meu vizinho, mora ao lado. Passo junto dele e não consigo esconder o rosto à sua condição de humilhado e ofendido. Ele é bem diferente dos trabalhadores que levantam prédios e constroem calçadas. Os trabalhadores deitam debaixo de árvores, no intervalo do almoço, dormem no chão, uns ao lado dos outros, cansados e sem fome.

Os rostos e os corpos dos moradores de rua e dos trabalhadores possuem expressões diferentes, a entrega ao sono é diferente, o sentimento de segurança diferente. É como se houvesse no sono dos trabalhadores um retorno à infância. Tornam-se até bonitos, apesar das barrigas salientes, por conta da cerveja e excesso de carboidratos. Nos trajes de cores berrantes que os nivelam aos “delta” de Admirável mundo novo, uma beleza se desvela no cansaço e na saciedade. Talvez fruto da certeza, mesmo precária, de que possuem uma casa para onde voltar no final do dia, e uma família que aguarda seu regresso com um jantar pronto.

Os moradores de rua possuem família? As pessoas me perguntam, sabendo que falta a eles o essencial para terem uma família. Emprego e renda gerando o sentimento de validade e força. Moradia onde se abrigarem. Assistência à saúde, segurança e transporte. Água e saneamento básico. Falta amor, educação, promoção social e reconhecimento dos direitos civis. Sem isso, é vazio e mentiroso o discurso político falsamente religioso em defesa de valores da família. O que é família para os que enchem a boca com a palavra e fazem campanha eleitoral exaltando seu valor? Apenas hipocrisia, nepotismo, conservadorismo e manipulação da ignorância e fé religiosa das pessoas para alcançar mais votos.

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