Rifa? O que os compradores recebiam de prêmio? Indulgências plenas, uma amortização das faltas cometidas em suas existências terrenas. Quanto mais dinheiro dessem, mais “x” eram riscados na cartela, garantindo a absolvição de pecados capitais, mortais e veniais, diminuindo o tempo de permanência no purgatório ou o risco de condenação ao fogo do inferno. Na Idade Média, a Igreja encheu os cofres vendendo indulgências. Os ricos pagavam fortunas ao papa, compravam o direito ao céu. Depois da compra, podiam pecar à vontade, pois tudo seria absolvido no passado, presente e futuro. Entregavam-se à esbórnia, excediam-se na soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça.
Não sei classificar o meu crime contra o Menino Jesus. Narro como ele aconteceu e vocês me ajudam a enquadrá-lo no código penal. Não se trata do costume de roubar a imagem de São José de uma casa, em ano de seca. Se chovesse, organizava-se festa, procissão, queima de fogos e devolvia-se o santo ao dono. Não, a minha transgressão era mais danosa porque envolvia a mentira e a falsidade de fé. Considerem o atenuante de que eu era uma criança e me inspirava numa prática secular do catolicismo, assumida nos tempos de hoje de forma igualmente extorsiva pelas igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais.
Tudo começou quando papai proibiu meu irmão mais velho de criar passarinhos. Ele havia construído um viveiro no fundo do quintal de casa, onde prendia canários, sabiás, azulões, patativas, galos-de-campina e rolinhas, contribuindo para a extinção dessas aves. Não sei o que o irmão mais velho fez dos seus pássaros, mas lembro de meu pai arrancando as telas de arame e as estacas da prisão. Restou do cativeiro apenas o piso de tijolo revestido de cimento. Um pequeno praticável, lembrando um palco.
Um palco rudimentar? Era bastante para a minha imaginação. Eu podia repor as estacas, improvisar uma empanada e estava construído o teatro, o primeiro de minha vida como encenador. Minhas irmãs e as amigas delas seriam as atrizes da companhia. Eu mesmo fabricaria roupas e adereços com papel crepom, de seda e laminado, caixas de papelão e pedaços de tecido. A cola se improvisava com grude de goma, os textos e canções eu tinha na memória.
Faltava apenas o dinheiro para as compras mínimas. A família grande e modesta, acrescida de parentes e amigos que ficavam longas temporadas em nossa casa, não possuía de sobra. Eu recebia um trocado para o lanche escolar e um filme semanal. Não lanchava e com a economia assistia ao seriado no Cine Araripe. Os trocos das compras e feiras, que eu fazia, iam para o minguado bolso de mamãe. Onde arranjar dinheiro para o teatro? Implorei ajuda aos céus e fui iluminado.
Pedindo esmolas. Para mim? Para a família? Não. Se o meu pai sonhasse com essa possibilidade... Pedindo para os santos. Eles compreenderiam. As sobras, se houvesse, eu depositava no cofre das almas, na Igreja da Sé. Festas de santo não faltavam: em maio, Nossa Senhora de Fátima; em junho, o Coração de Jesus; em agosto, Nossa Senhora da Penha; e, em dezembro, o Menino Jesus. Todo ano deixavam em nossa casa a criaturinha de gesso, rosada, vestida de seda, rendas e bicos, numa manjedoura cheia de palha. A maior lindeza.
Minhas irmãs, as amigas delas e eu saíamos à rua e pedíamos esmolas para o santinho. Alguns desconfiados, sabendo do costume do Jesus Cristinho peregrinar pelas casas, queriam vê-lo. Nós, prontamente, mandávamos que entrassem na sala de casa, onde o Menino ria, de pernas cruzadas, num altar improvisado por mamãe. A bolsa generosa se abria e o dinheiro era depositado num pires, de onde recolhíamos a nossa percentagem, a taxa ou lei de incentivo à cultura.
Houve furos vexatórios no processo de captação de recursos para o exercício teatral. Trocávamos as festas dos santos e pedíamos esmolas nos meses errados.
– Que enrolada é essa, meninos, esmola para o Menino Jesus no mês de setembro? Deixa eu ver ele?
Logrados, fugíamos correndo para casa.
Mas graças ao artifício religioso, encenamos um bom número de espetáculos. Até que decidi rifar um estojo de canetas Parker, com detalhes dourados que pareciam ouro. O premiado sempre morava num lugar distante e as canetas permaneciam comigo. Lançando mão do artifício, pude rifá-las muitas vezes, até ser desmascarado por um tio. Quando isso aconteceu, eu já montava peças no colégio e o dinheiro vinha por outro caminho, menos sinuoso, mas igualmente difícil.
Há 17 anos, a produtora Carla Valença, da Relicário Produções, capta recursos através das leis de incentivo à cultura para o espetáculo Baile do Menino Deus, encenado na Praça do Marco Zero. As dificuldades da produção são comparáveis às de minha infância. Não é fácil conseguir patrocínio, embora a celebração seja para o Menino Deus, meu antigo parceiro. Os artistas, sejam os poetas do século de ouro espanhol, como Lope de Veja, ou o russo Dostoievski, são relegados ao lugar de pedintes.
Cerca de 300 artistas e técnicos trabalham na encenação do Marco Zero. Para muitos deles, a remuneração representa a maior fonte de subsistência. Esperam ansiosos o ano seguinte. Em 2020, por conta da pandemia, não haverá Baile no Marco Zero. O que fazer?, nos perguntamos. Um filme, foi a resposta. E realizamos, em grande estilo, dando trabalho a 200 pessoas. O resultado será visto a partir do dia 23 de dezembro, em cinema, redes sociais e televisão. Sintam-se convidados a assistir (saiba mais).
Terei de acertar no céu as minhas contas de infância com o Menino Jesus. As do Baile do Menino Deus do Marco Zero são escrupulosamente prestadas aqui na Terra, pela Relicário. Há dois tipos de contas: as subjetivas artísticas, representadas em três noites de puro encantamento. As outras contas são venais, mas garantem a vida desse Baile, que teima em ser encenado há 37 anos, em todo o Brasil.
Na última fala do Mateus ele afirma:
...o baile aqui não termina, o baile aqui principia do mesmo jeito que o sol se renova a cada dia, da mesma forma que a lua quatro vezes se recria, do mesmo tanto que a estrela repassa a rota e nos guia.
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