Entremez

Os números perversos do Carnaval

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

07 de Março de 2023

Ilustração Rafael Olinto

[conteúdo exclusivo Continente Online] 

Já fui tão apaixonado pelo Carnaval. Imaginava que, sem a minha presença, nem haveria festa. Ainda não tinham inventado os absurdos dois e meio milhões de foliões no Galo da Madrugada. A contagem é verdadeira? Aposto que não. Ou talvez eu a recuse para não me sentir insignificante, unzinho entre milhões. 

As cifras que alimentam o Carnaval me desagradam, ninguém diz mais “a festa foi boa” sem citar números e valores, famosos e influencers. Máscaras escondendo rostos, disfarces camuflando identidades são coisas do passado. Agora vale se mostrar, lançar mão de todos os recursos e aparecer em trios elétricos, camarotes, escolas de samba, por nudez, extravagâncias, beijaços, brigas, tapas, escândalos, casamentos em trios, traições, cornos... 

Cornos? Os ursos do Recife tornaram-se inocentes, nem compensa sair dentro de uma fantasia de pelo sintético, cinquenta graus à sombra. 

Mané morreu
Amanhã eu chego lá
Vou levar Urso Teimoso
Pra viúva não chorar.

Quem ainda apela ao consolo de um Urso?

Ninguém.

Carnaval, carnavale, a carne vai.

Porém é bem melhor e mais lucrativa a grana que rola nos bastidores.

Para Gisele Bündchen, rolaram dois milhões de dólares, bastando aparecer vinte minutos em um camarote. Mais de dez milhões de reais em nossa moeda frágil. Ela tinha cobrado cinco vezes o valor para esticar o tempo e ampliar o espaço de aparição. Acharam caro e fizeram a contraproposta. 

O governo federal brasileiro repassou apenas dois milhões de reais para as vítimas do litoral de São Paulo. Se a Gisele estendesse a bacia, talvez conseguisse mais grana.  

– Chuva fora de hora! 

Como se não bastasse a tragédia dos Yanomami, o oito de janeiro e algumas dezenas de massacres e crimes bárbaros. Felizmente, ninguém se deixou contaminar pelo baixo astral e o Carnaval bombou. Esqueceram o quebra-quebra de Brasília, a tentativa de golpe, os Yanomami, o litoral paulista. Somos um povo de memória fraca, igual àquele do romance Cem anos de solidão. Lembram Macondo? Aposto que esqueceram. 

Sem missa de sétimo dia, nem tristeza obscurecendo a animação, o Carnaval se prolongou por quase uma semana, alguns trios elétricos precisaram ser cancelados pelo excesso de foliões. Compareceram duzentas mil pessoas, quando eram esperadas apenas cinquenta mil. 

Mais números. 

Evoé, evoé! 

Nada pode ser criticado. Tudo se justifica em ser. Existo, logo sou perfeito e irretocável. Não se pode mencionar critério estético e técnico. Qualquer avaliação se confunde com censura. 

— Que coisa antiga esses desfiles!
— Sei, o Carnaval agora se brinca assistindo a shows em palcos, nem precisa de música própria.
— E há música imprópria no Carnaval?
— Hum...
— Você é do tempo em que se pensava assim.
— Não, não, juro, tô ligado.

Fiz a besteira de comentar em voz alta, o caboclinho que se apresentava no palco da Praça do Arsenal era muito ruim. E o lugar inadequado. Falei que, na década de 1970, eu e um amigo tínhamos registrado 114 passos e manobras da brincadeira, bem diferente da pobreza coreográfica de agora. Um rapazinho ao lado ouviu e não gostou. 

— Você não pode fazer comparação, estabelecer valores numa perspectiva de cinquenta anos atrás. É nostalgia.
— Mantenho os meus critérios de qualidade. Esse grupo tem cocares bonitos, mas não dança nada. Os músicos da gaita, caixa e caracaxá só tocam o ritmo de guerra. Cadê o perré e o baião?  
— Considere que para eles tornou-se mais importante expor a nudez (estavam quase todos nus). Mudamos.  
— Poxa, aprendi a avaliar caboclinhos por dança, ritmo, manobras, evolução, música...
— Precisa atualizar, boy.
— Também precisa mudar a miséria que recebem, acabar o limite de tempo para desfilarem. Só têm vinte minutos de apresentação, não ensaiam e trazem qualquer porcaria à rua. E embolsam a merreca.
— Dê um tapa e relaxe. Os caboclinhos tão aí brincando, deixe que façam qualquer merda. Problema deles.

Saí de perto.

O Marquês de Sade anteviu a perversidade dos números, a deformação que provocam nas mentes, os distúrbios acarretados para os nossos valores. A psicanálise diagnosticou a deformidade. Com a maxi valoração numérica, entramos na economia de mercado, na coisificação humana, no sadismo, na histeria e na ânsia por um cálculo visível e elevado.    

Cento e vinte dias, seiscentas paixões. Quatro meses de libertinagem, quatro classes de vícios. A cada dia, cinco modalidades, somando cento e cinquenta por mês. Para dar conta dessas cifras, uma comitiva formada por quarenta e seis pessoas, distribuídas em oito categorias distintas, das quais sete pertencem à classe dos súditos. Oito meninos, oito meninas e oito fodedores. Quatro criadas e seis cozinheiras. Quatro esposas. Quatro narradoras. Por fim, na classe dos senhores, os quatro libertinos que sempre merecem designação individualizada: Curval, Durcet, Blangis e o Bispo. A esses números — que apresentam ao leitor “a narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe” —, somam-se outros tantos que servem invariavelmente para precisar, com a maior exatidão possível, as atividades levadas a termo no castelo de Silling. (...) Vale lembrar que, assim como o sexo, os números são inequívocas fontes de prazer no mundo do deboche. (Eliane Robert Moraes, no prefácio de Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade)

Desde Sade e do desembestado capitalismo, o Carnaval deixou de ser uma festa para se transformar na aritmética de lucros. 

Ou de perdas?

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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