Entremez

Os nordestinos para o bolsonarismo são iguais aos judeus para o nazismo

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

10 de Outubro de 2022

Ilustração Rafael Olinto

Depois dos resultados das eleições no primeiro turno, em que o Nordeste brasileiro deu maioria esmagadora ao candidato Lula, começaram as perseguições a nordestinos que moram no Sul e Sudeste. Escancaradas ou sutis, elas se manifestam em demissões no emprego ou negativas de trabalho. O preconceito é antigo, sempre existiu e se camufla em cordialidade e tapinhas nas costas. Com o fascismo se instalando ou já instalado no país, o que muito preocupa aos brasileiros mais conscientes e ao restante do mundo, proponho uma reflexão a partir de um dos livros formadores de nossa nacionalidade, Os sertões, de Euclides da Cunha. Percebam como já havia rupturas entre as regiões do Brasil, desde os primórdios da colonização.

Mesmo não havendo nascido no sertão de que trata em sua obra, Euclides foi quem mais contribuiu para codificar o que lhe pareceu sertão, guiando leitores e gerações futuras a buscarem o modelo estabelecido de semiárido habitado por bárbaros, num processo semelhante ao dos orientalistas em relação ao Oriente. Da mesma maneira que o Oriente é corrigido e penalizado por estar fora dos limites da Europa e América do Norte, o sertão do Nordeste brasileiro sofre processo semelhante por se encontrar fora dos limites da sociedade do Sul e Sudeste. É igualmente “sertanisado” por acadêmicos e cientistas, tornando-se propriedade de um conhecimento nem sempre verdadeiro.

A partir do genocídio praticado contra os conselheiristas de Canudos – recuso a denominação de jagunços –, retratado com parcialidade pelo geógrafo, engenheiro, militar e jornalista, se evidenciam as incompatibilidades entre os vários sertões. As sociedades heterogêneas possuem valores culturais, econômicos e religiosos desiguais. Os sertanejos são tratados como menores, raças submetidas a um “poder civilizatório” que se apresenta benigno e altruísta, mas que traz apenas mais miséria, destruição e morte. Acontece a guerra, uma coisa horrível de se testemunhar, um choque implacável, irremediável, como tem sido o embate de todos os dias no Brasil.

Nos primeiros tempos de nossa história, tudo o que não fosse litoral era sertão, independente de condições climáticas, relevo, cobertura vegetal, presença ou não de rios, tipo de solo. Assim, o estado de São Paulo para além da Capitania de São Vicente era todo sertão, como também o eram Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e até Paraná e Rio Grande do Sul. Na primeira metade do século XX, Manuel Bandeira ainda se referia ao que hoje é um bairro recifense, à margem do rio Capibaribe, no poema Evocação do Recife, desta forma: “Lá longe o sertãozinho de Caxangá, banheiros de palha”.

O próprio Euclides, numa das passagens de seu livro, descreve diferente o sertão dos primórdios da nossa colonização: “... Constituiu-se, dessa maneira favorecida, a extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século XVIII ao das raias setentrionais de Minas e Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, e às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e vice-reis. Não produzia impostos ou rendas que interessassem ao egoísmo da coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, ‘o quase único aspecto tranquilo da nossa cultura’. À parte os contingentes de povoadores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos que ali se formaram, vinha do sul, constituída pela mesma gente entusiasta e enérgica das bandeiras”.

As migrações e os entrelaçamentos dos sertanejos se faziam intensos, de sul a norte e de norte a sul, a ponto de um decreto real do século XVIII proibir que os do norte buscassem as terras do sul, onde havia mais promessas de riqueza. Paulista não se referia apenas aos naturais do estado de São Paulo, sendo uma denominação genérica para sertanejos também de Goiás, Mato Grosso, Minas e outras regiões.

Interessa investigar quando e de que maneira o devaneio sobre o que é sertão o transforma em paisagem semiárida, hostil, com o sol inclemente, confundido com o que se estabeleceu ser o Nordeste. Gilberto Freyre recusa essa imagem de deserto. Para ele, o lugar também é uma terra de fartura, de águas abundantes, onde, como no poema de Carlos Pena Filho, “nunca deixa de haver uma mancha d’água, um avanço de mar, um rio, um riacho, o esverdeado de uma lagoa...”.

Em Os sertões é fácil enxergar os erros de Euclides, a antropologia e a sociologia impregnadas de cientificismo, consonante com a época em que o livro foi escrito. Teorias de inspiração europeia e americana, racistas, supremacistas, cientificistas, que defendem a eugenia e são contrárias ao hibridismo, atribuindo ao cruzamento das raças formadoras do Brasil todos os nossos males.

Riobaldo, personagem narrador do Grande sertão: veredas, pergunta ao escutador Compadre meu Quelemém: “Como vou contar e o senhor sentir em meu estado? O senhor sobrenasceu lá? O senhor mordeu aquilo?”. A pergunta não precisaria ser feita ao nascido no Rio de Janeiro, Euclides da Cunha, nem a qualquer intelectual que se aventurasse a escrever sobre o episódio de Canudos, desde que mantivesse isenção e imparcialidade. Por mais que tenha estudado a geografia, a história, a cartografia, a formação do lugar e do homem sertanejo, Euclides olha de fora, se dói de fora, denuncia de fora e, na hora do julgamento final, toma um partido: “Não tive o intuito de defender os sertanejos, porque este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque”. Diferente de Guimarães Rosa falando através de Riobaldo Tatarana: “O sertão me produziu, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração?”.

Euclides nunca se avistou com o Conselheiro, nunca o entrevistou em conversa de homens pisando mundos diferentes. Do beato, viu o resultado do exame realizado pelo médico Nina Rodrigues, partidário da pseudociência da frenologia, que defendia que a estrutura do crânio determinava o caráter das pessoas e sua capacidade mental. Responsável por equívocos e crimes, o exame frenológico foi realizado na cabeça do beato, concluindo-se pela normalidade do mesmo, o que só expõe a barbárie e o abuso da ciência da época.

Na nota preliminar à primeira edição de Os sertões, Euclides assume postura sobre o lugar e os personagens da sua epopeia:

“Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil, e fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexo de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir nossa terra”.

Apesar das denúncias feitas e registradas, da comoção diante do massacre, de afirmar que o sertanejo é antes de tudo um forte, Euclides se mantém firme, como observa Leopoldo M. Bernucci: “O narrador toma partido na defesa dos conselheiristas, mas a escolha final, a que determina verdadeiramente a decisão inexorável de combater o fanatismo religioso, a ‘selvatiqueza épica’, em uma palavra, os nossos ‘bárbaros patrícios’, recai nas mãos de um juiz implacável. E nem mesmo o esforço para construir uma frase imparcial e justa, que defina o seu duplo ataque, aos sertanejos e aos ‘singularíssimos civilizados’ nas Notas à 2ª Edição, consegue no final retraí-lo da sua cega fidelidade ideológica ao republicanismo progressivo”.

Os sertões prevaleceu como obra monumental pela sua linguagem, mesmo que Euclides tenha escrito “num estilo não só barroco – esplendidamente barroco – como perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos. Deixando-se apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de extremos de má eloquência que o teriam levado à desgraça literária e ao fracasso artístico”, como anotou Freyre.

Lamentarei se o tom da homenagem a Euclides da Cunha na Flip tenha sido somente apologista. Vou convencer-me de que a etiqueta com que rotularam os sertanejos continua valendo.

O tempo passou, mas o modelo de violência da nossa sociedade permanece o de sempre, desde a colônia. A República defendida por Euclides nunca se consolidou. Nem mesmo a democracia. Soldados e conselheiristas se irmanam. Os que restam vivos, ao retornarem às cidades grandes, irão morar em morros ou periferias que receberão o nome de favelas, em memória às favelas de Canudos. A história se refaz e se complementa. Agora os “civilizados” tomam o lugar da sub-raça, e passam também a ser exterminados. O sertão se desloca com os homens, sem a liderança social ou espiritual do Conselheiro. Seu novo lugar na periferia das cidades grandes representa um risco maior do que o Arraial de Canudos. A guerra se mantém: sistemática, predatória, manipulada, irmãos contra irmãos. Os poderosos jogam com os mesmos princípios do início da colonização.

Mas, felizmente, no Quilombo de Palmares, no Arraial de Canudos, na Revolução Pernambucana de 1817, na Confederação do Equador, nas pelejas de Paulo Freyre, Josué de Castro, Dom Helder Câmara e de muitos outros nordestinos permanecem um exemplo de resistência e luta, a esperança de que o Nordeste com seus personagens políticos e históricos manterão vivos os sonhos de liberdade, democracia e república em nosso país.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam necessariamente a opinião da revista Continente.

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