Entremez

Orun Santana dança Meia-Noite

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

08 de Fevereiro de 2018

O bailarino Orun Santana

O bailarino Orun Santana

Foto Rogério Alves/Divulgação

Havia espada-de-São Jorge na porta de acesso ao teatro, e espada-de-Iansã, aquela de franja amarela, que também chamam de Oxossi em alguns rituais. Sobre os assentos das poltronas, arruda macho e fêmea. Algumas pessoas olhavam os ramos, cheiravam, punham no bolso ou prendiam à orelha. Orun já estava no meio do palco, quando entrei. Começou a desenhar uma espiral com farinha de trigo, extenso labirinto crescendo de dentro para fora. Ao término, fez o caminho de volta e se posicionou no centro. O branco do trigo se ressaltava no linóleo preto, à luz dos refletores. Vestido em calção largo e simples, que lembrava o dos meninos jogadores de bola da periferia, o bailarino principiou o seu ritual.

– Começo com o orixá Exu. Busco a memória de imagens que estruturam a criação. Meus pés amassam o trigo, comprimem-se um sobre o outro, se esmagam. Escorrego, brinco com a estabilidade.

O que é mais antigo, a espiral ou o círculo? Os dois se complementam. O círculo é um ponto estendido, simboliza o mundo e a ausência de distinção ou de divisão. É o próprio céu, invisível e transcendente. Já a espiral manifesta a aparição do movimento circular saindo do ponto original: mantém e prolonga esse movimento ao infinito. Possui linhas sem fim, que ligam as duas extremidades do futuro.

– Cheguei à espiral a partir das rodas de capoeira, onde me formei com o meu pai, o Mestre Meia-Noite. A espiral me possibilita apreender as imagens de ida e volta, dentro e fora, expansão e contração, e outras pequenas sutilezas.

Os gregos fundam o teatro ocidental girando em círculos. Um lagar na praça de uma vila. Despejada a uva madura no seu interior, homens e mulheres entravam no tonel de madeira e pisavam o fruto, espremendo-o até que largasse a polpa líquida. Enquanto faziam o trabalho, cantavam, dançavam e batiam palmas embriagados. Em torno deles e do lagar, as pessoas também giravam, respondiam aos cantos dos esmagadores, possuídas pelo mesmo deus Dioniso.

A espiral plana desenhada para o ritual de Orun remete ao labirinto. Retas galerias que se curvam em círculos secretos ao cabo dos anos, diria Borges. A expiração do bailarino que forceja sozinho prevalece sobre a inspiração, embora seus olhos estejam sempre voltados para dentro. Gestos e movimentos precisos parecem obedecer a uma métrica cósmica. Zeus não poderia desatar as redes de pedra que o cercam. Delicadeza se alterna com ríspida brusquidão, a força masculina com a graça feminina.

– Meia-Noite, qual é o santo de Orun?
– Pergunte a ele. O nome que pus nele é Orunmilá.
– Percebi que você dança atuado, Orun.
– Atuado? O que é isso.
– A pessoa que recebeu no espírito ou no corpo uma entidade, um orixá ou a alma de um morto.
– Ah!
– Vi Ogum e Iansã em você.

O bailarino, cantor, ator e músico percute três berimbaus pendentes das engrenagens do teto. O primeiro deixa sua música no espaço, o segundo também, o terceiro idem. A melodia dos instrumentos se harmoniza num pequeno concerto dançável. Orum dança. Agora toca um berimbau falo ameaçador. Arremessa a arma ao chão, pisa o saco escrotal da cabaça de plástico. Apodera-se de dois chocalhos unidos e separados por uma longa corda. Agita os chocalhos com violência, toca o rebanho de badalos, gira, se agita, roda, executa círculos, círculos, círculos. Os metais assustam a plateia. E se os chocalhos se desprendem e desembestam? São chifres de bois e vacas de um rebanho. Uma cena pastoril africana arcaica. Os primórdios de uma roda de capoeira.

O intérprete, criador e diretor senta-se na frente de uma cuia com água. Será a fonte de Oxum? Reverencia a orixá da mãe. Mergulha a cabeça, os cabelos volumosos, ergue o corpo na vertical, se sustém por um tempo, salta.

Oxum entrou no mato e se aproximou do sítio onde Ogum costumava acampar. Usava apenas cinco lenços transparentes, presos à cintura em laços, como esvoaçante saia. Os cabelos soltos, os pés descalços, Oxum dançava como o vento e seu corpo desprendia um perfume arrebatador. Ogum foi imediatamente atraído.

Orum dança com gestos femininos arrebatadores. Joga a cabeça para os lados, os cabelos aspergem a água que se guardaram neles, uma fonte inesgotável. No lugar dos lenços transparentes, uma masculina calça de capoeirista, branca, engomada, de linhagem. Depois, ele veste uma camisa branca imaculada. Gestos de sacerdote iniciado nos mistérios.

O espetáculo ganha tom coloquial. Os olhos do atuado se abrem para fora e ele contempla o pai homenageado. A espiral mágica se desfaz por instantes. O trigo foi espalhado no terreiro, a uva pisada na praça se transformou em vinho. É hora de partilhar a dádiva recebida do pai. O vinho produzido pelos pés esmagando a uva. Cantos se improvisam, nomes são pronunciados, os rostos se tornam comuns numa luz neutra.

Aplausos. O encantamento se adia. Os orixás deixam o cavalo em sossego. O celebrante anuncia ite, missa est. Sigam em paz, o Senhor vos acompanhe. Em paz? É possível depois de vivenciar a experiência do sagrado, de reconhecer no artista o poder espiral da dança?

Um eleito a serviço da arte.

Me aproximo do rapaz risonho e magro, os aparelhos ortodônticos atrapalham sua fala e seu canto. Ele sorri, eu não sei o que diga. Estou comovido.

– Posso te dar um abraço?, pergunto.

E sigo para casa pensativo, em dúvida se conseguirei dormir.

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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