Entremez

O generoso coração dos ricos

TEXTO Ronaldo Correia de Brito

06 de Agosto de 2020

Foto Márcio Pannunzio/Fotoarena

(Diário do isolamento, 25. Terça-feira, 5 de agosto)

A cena se repete todas as semanas, nos finais de tarde, e agrava minha angústia pelo isolamento. Assisto-a do décimo primeiro andar, escondido na varanda. Nem preciso ver, a voz forte sobe aos prédios, me acusa de embuste. Noutro dia, fiz um movimento em falso e ele descobriu meu esconderijo, me chamou de irmão. Corri para dentro do quarto, tremia. Quando o escuto clamando, imagino que usa megafone. Ninguém possui voz tão poderosa.

No teatro de Dioniso, em Atenas, os atores eram ouvidos por dezessete mil pessoas.

No começo, pensei que fosse louco, talvez seja apenas um farsante. Brada como o Conselheiro, se queixa e se diz porta-voz das comunidades onde mora, pede donativos. Nunca vi um carro atrás dele, ninguém recebendo doações. Ligo à portaria, os funcionários não o conhecem. A voz se afasta pelas ruas, torna-se imprecisa e some. O louco prega no deserto da indiferença. Ontem apelou ao generoso coração dos ricos. Senti-me um fariseu. Trazia uma criança pequena, quase bebê. Lembrei as mães judias. Antes de serem fuziladas dentro de valas, elas erguiam os filhos nos braços e imploravam aos alemães que as salvassem.

Tolstói largou o conforto de casa e morreu anônimo numa linha de trem, coerente com suas ideias. Culpar-se e não agir é pior que morrer.

Precisamos de dez mil homens como o Conselheiro, de nenhum Euclides da Cunha. Chega de ensaios sociológicos, filmes e livros sobre a miséria. Se não reagirmos, também seremos exterminados na vala comum.

O novo Messias monta um jumento, numa cidade do Piauí. Oh, Jerusalém! As esmolas de seiscentos reais arrastam multidões atrás dele. A velha fórmula do populismo, o derradeiro estágio da cartilha fascista.

Trabalhadores saem das construções, olham o miserável pregador e a criança, se compadecem, doam trocados. No velho prédio onde moro, amplo como as casas antigas, os moradores fazem reformas que se arrastam por meses. Imprimem os seus gostos de novos ricos, substituem as pedras cerâmicas Brennand do piso por mármore italiano ou porcelanato. Arquitetos e engenheiros se esforçam em inventar mirabolâncias, balangandãs que orgulhem os jovens proprietários. Fortunas são gastas, valores mais altos do que o imóvel. Cercam o bunker de vidros blindados, instalam ar-condicionado central, câmeras de vigilância e portas eletrônicas. Se isolam, se protegem da cidade e das pessoas.

Outro dia, pararam os elevadores por quatro horas. Os novos moradores revestiam as portas dos mesmos, no andar onde moram, com uma fórmica diferente das outras portas. Ser diferente é lei na ascendente burguesia. Quem precisava subir a algum dos 27 andares, ou descer ao térreo, que usasse as escadas. Os ricos nunca pensam no bem coletivo, mesmo entre os seus pares.

Pares?

Ímpares.

Há desigualdade de classe no edifício. Professores e médicos assalariados convivem com milionários. 

– Bom dia.

(silêncio)

Lição primária de boas maneiras.

– Bom dia.

(silêncio)

Eles fingem que não ouvem. Ou talvez só escutem a eles mesmos. Acostumaram-se a nada ouvir dentro dos carros blindados, dos apartamentos blindados, das casas de praia blindadas.

– Apelo ao generoso coração dos ricos, o homem grita, expondo a criança.

No prédio, teve vazamento de gás, num apartamento reformado. Havia risco de explosão. Nele moram três crianças – uma delas recém-nascida –, dois adultos, e trabalham alguns funcionários. Os bombeiros identificaram o local do vazamento, no piso da cozinha. A proprietária não autorizou arrancarem o mármore, não havia pedras para substituição. Vinham da Itália, demoravam a chegar.

Consultou a arquiteta. Fica feio, muito feio, a arquiteta falou.

Mesmo durante o isolamento, quando ninguém visita a família ou os amigos, o estrago incomodava a jovem senhora. Vai ficar feio, muito feio, ela fez coro à arquiteta.

– O apartamento pode explodir.

Buuuuummmmmm!!!...

O miserável com a criança nos braços desiste de apelar ao generoso coração dos ricos. Agora vocifera. Mas de nenhum prédio desce um quilo de farinha ou feijão.

Os bombeiros e a empresa fornecedora de gás retornam diversas vezes ao apartamento da jovem senhora e de seu belo esposo e alertam sobre o risco das crianças se intoxicarem. O condomínio pressiona, ameaça com uma ação na justiça.

O Brasil é uma panela de pressão, mas não explode – a jovem senhora pensa dizer. Tem mestrado de história em Harvard, os filhos estudam numa escola bilíngue. O Brasil esmola, faz continência à bandeira norte-americana, segue o Messias escanchado em um jumento, agita chapéus de palha. O povo se conforma com duas esmolas de seiscentos reais – a ironia não lhe escapa, aperfeiçoou-se em autocontrole nas aulas de ioga. Cinco séculos de colonialismo, escravidão e patriarcalismo não se corrigem da noite para o dia – ela quase diz, como se fosse apenas observadora do processo, alguém de fora, que não se queima, nem chamusca.

Buuuuummmmmm!!!...

Depois de uma semana de muita pressão, o vazamento foi corrigido, as pedras de mármore estão a caminho. Vêm da Itália, do antigo império romano, para alegria da jovem senhora e do seu generoso coração de rico. 

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*As opiniões expressas pelos autores não representam
necessariamente a opinião da revista Continente.

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